Por
Fred Navarro
“São
coisas da vida”, dizem alguns.
Dresden,
cidade da Saxônia às margens do rio Elba, então uma das poucas zonas
desmilitarizadas da Alemanha, tinha cerca de 600 mil habitantes no início de
1945. Ela foi escolhida como teste para responder a uma dúvida militar. Não era
uma dúvida qualquer. Ela tirava o sono do alto comando aliado em dezembro de
1944, depois de cinco anos de uma guerra que devastou o continente europeu e
envolveu quase todas as nações do planeta: e se a bomba atômica não
funcionasse?
Há
meses em construção nas mãos de uma equipe liderada por J. Robert Oppenheimer,
com o nome de Projeto Manhattan e ao custo sideral de US$ 2,6 bilhões, ela em
breve entraria em fase de testes no deserto do Novo México, o mais tardar em
três meses,. Mas, ainda que aprovada nos testes, os comandantes se perguntavam:
e se ela falhar na hora H, sobre a cidade alemã ou japonesa escolhida? O que
fazer? Eles sabiam a resposta: a guerra acabaria através dos métodos
tradicionais, como de costume. Neles, os bombardeios aéreos se destacavam pela
quantidade exemplar de escombros e cadáveres que deixavam nos lugares que antes
abrigavam meras construções e pessoas comuns. O bombardeio em massa,
ininterrupto, era uma das opções à disposição dos comandantes.
No
dia 13 de fevereiro de 1945, 70 anos atrás, às 22h09, teve início o teste sobre
a capacidade letal do método convencional de assassinato em massa. Ao longo de
doze horas e vinte e dois minutos, esquadrilhas em três ondas formadas por
cerca de 3.600 aviões bombardearam Dresden. O escritor americano Kurt Vonnegut
Jr. estava lá como prisioneiro de guerra e afirma que havia tendas da Cruz
Vermelha espalhadas pela cidade, que não se via um tanque ou tropas nas ruas.
Não era um ataque, era um massacre. No romance “Matadouro nº 5” (Slaughterhouse
Five), ele recriou de forma dantesca e surreal aquele 13 de fevereiro e o
horror dos dias seguintes.
A
cidade, por ser zona desmilitarizada, tinha recebido há pouco uma formidável
massa de 300 mil refugiados do leste europeu, que fugiam da força avassaladora,
e também da crueldade, do Exército Vermelho comandado com mãos de ferro por
Stalin, de Moscou, e na frente de batalha pelo general Zukhov, conhecido
posteriormente como “o carniceiro da vitória”. Desses refugiados, a maior parte
era de inválidos de guerra, mulheres com filhos pequenos, velhos e doentes.
Em
Dresden, os soldados alemães cumpriam apenas tarefas de polícia e de guarda de
trânsito. Nas ruas, prisioneiros de guerra, médicos, enfermeiros, um número
incalculável de mulheres e crianças. Foi escolhida pelos generais e comandantes
dos exércitos aliados por isso. Não tinha forças armadas. Não tinha como se
defender. Não tinha fogo antiaéreo. Os aliados precisavam testar seu poder de
destruição aérea convencional sem o risco de seus bravos pilotos serem
abatidos. Precisavam também mandar um recado claro e objetivo para o Exército
Vermelho, que avançava com velocidade e fúria na frente oriental: a Rússia
poderá ter a honra militar de chegar primeiro a Berlim e acabar com Hitler e o
alto comando nazista, mas não conquistará a Alemanha, nós não deixaremos.
24
horas depois do início do bombardeio, ao final do dia 14, a cidade ardia como
uma enorme fogueira, ou para sermos mais exatos, como uma gigantesca pira
funerária. A contabilidade posterior registrou mais de 260 mil mortos. Ao final
do dia 15, depois do último bombardeio, a cifra atingiu o dobro, 522 mil
mortos. Mais de 30% deles não puderam ser identificados, tinham se tornado
pedaços de carvão, restos calcinados antes pertencentes a pessoas comuns. Por
questões sanitárias, dezenas de milhares foram enterradas às pressas, sem
identificação, em valas comuns. Não havia um único sobrevivente em condições
físicas para escavar escombros, localizar e enterrar os mortos. Depois de 72
horas sob a chuva de bombas, centenas de edificações e dezenas de igrejas
medievais foram reduzidas a amontoados de detritos.
Dresden,
chamada “a Florença do Elba”, era uma cidade onde a história fazia parte da
paisagem. Sua fundação se perdia na memória dos homens e do continente europeu.
Quase nada ficou de pé, inclusive o palácio real e a igreja Frauenkirche,
idealizada e construída entre 1726 e 1743 pelo mestre barroco George Bähr, com
sua cúpula de pedra se impondo sobre a silhueta da cidade e atraindo a atenção
de moradores e visitantes. Viraram poeira também as centenárias ópera
Semperoper e o teatro Schauspielhaus, mesmo destino reservado ao famoso templo
luterano, sem mencionar as casas e sobrados, avenidas e ruelas, parques e
praças, museus e palácios, escolas e bibliotecas, essas coisas banais que
permanecem e guardam o pouco que restou da nossa história.
Depois
das bombas, tudo isso foi ao chão e virou entulho. Dresden era apenas mais uma
cidade destruída, entre tantas na Europa e no mundo. Num único dia, teve mais
pessoas assassinadas (260 mil) do que a soma dos mortos em Hiroshima e Nagazaki
(150 mil e 75 mil, respectivamente, com uma diferença de três dias entre os
ataques). Num único dia, perderam a vida estupidamente mais pessoas do que em
qualquer lugar, antes ou depois, durante toda a trajetória humana. Num único
maldito dia.
Homens
treinados para a morte em larga escala tomaram a decisão de tirar a vida de
mais de 500 mil mulheres, velhos, crianças, adolescentes, médicos, paramédicos,
enfermeiras, soldados, refugiados e prisioneiros de guerra. Na maioria, mulheres,
pré-adolescentes e idosos alemães que apoiavam sem restrições a guerra infame
liderada pelo governo nazista. Seus maridos, pais, tios e irmãos tinham matado
impiedosamente quem puderam durante os cinco últimos anos, nas frentes de
batalhas ou nos fornos crematórios. Em nome de um projeto fascista e racista,
mataram soldados e civis, sem distinção, russos, poloneses, húngaros, romenos,
judeus, ingleses, finlandeses, franceses, marroquinos, libaneses, egípcios,
tunisianos, australianos, americanos, canadenses, eslovacos, e outras dezenas
de nacionalidades e raças.
O
negócio da guerra é a morte. Armas não são fabricadas e vendidas para ficarem
guardadas. Elas imploram para serem utilizadas. Quem as maneja quer usá-las na
primeira oportunidade. Valem muito dinheiro e por isso, na contabilidade final
de qualquer guerra, o destaque vai para os números. Depois de tantas décadas,
os mortos da 2º Guerra Mundial perderam a fisionomia e a humanidade, são
sombras de um passado que quase todos insistem em esquecer. Eles se tornaram
números de um balancete macabro.
Entre
setembro de 1939 e dezembro de 1945, foram enterrados ou dados como
desaparecidos 17 milhões de soviéticos, 6,5 milhões de alemães, 5,5 milhões de
judeus desarmados, 4 milhões de poloneses, 2 milhões de chineses, 1,6 milhões
de iugoslavos, 1,5 milhões de japoneses, meio milhão de franceses, meio milhão
de italianos, 400 mil britânicos, 300 mil americanos e mais 2 milhões de
pessoas de outras nacionalidades. As estatísticas variam de país para país, de
fonte para fonte, e são atualizadas de tempos em tempos, mas os números reais
não devem estar, não estão longe desses. No total, mais de 40 milhões de
mortos, o dobro de feridos e inválidos, e a humanidade traumatizada, com a
notável exceção dos fabricantes de armas e de sacos para embrulhar cadáveres.
Os
assassinados em Dresden estão perdidos no meio desses números. Estavam no lugar
errado, na hora errada, como todos os civis assassinados.
“Coisas
da vida”, quem diz e repete a toda hora é o mencionado Kurt Vonnegut Jr., em
seu “Matadouro nº 5”, que todos deviam procurar correndo num sebo ou na
internet, e ler, para aprender a ter a ojeriza certa contra as guerras, não do
ponto de vista teórico ou militar, não do ponto de vista ideológico ou
político, e sim das pessoas que estavam lá nas casas e ruas, procurando se
esconder como ratos nos esgotos para tentar sobreviver aos três dias mais
infames da história das guerras promovidas pelo bicho-homem.
FONTE:
REVISTA BULA
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