Por
João Anatalino
Em
Gênesis 11:1;9, encontramos a informação de que a diversidade de línguas
existente na terra tem origem em uma malograda obra de maçonaria operativa.
Essa teria sido uma obra intentada pelos descendentes de Cam, um dos filhos de
Noé, após o dilúvio. Essa obra, que teria sido iniciada num lugar chamado
Senaar, supostamente no sítio onde hoje se localizam as ruínas da antiga cidade
da Babilônia, foi idealizada por um rei chamado Nenrod, referido na Bíblia como
sendo o “grande caçador perante o Senhor” (Gênesis 10; 9). Era uma enorme torre
escalonada, construída bem no meio da cidade, feita de tijolos de barro
cozidos, usando betume por argamassa. Essa torre, segundo os cronistas
bíblicos, revelaria uma intenção vaidosa dos seres humanos, pois estes queriam
“tornar célebres seus nomes”.
Bem
antes dos templos em que a Bíblia começou a ser compilada (provavelmente no
século VII a.C, no reinado do Rei Josias, de Judá), [1] os povos
habitantes da Mesopotâmia, região compreendida entre os rios Tigre e Eufrates
(atual Iraque), já ostentavam uma adiantada civilização. Lá havia cidades
bastante urbanizadas e populosas, tais como Ur, Eridu, Uruk e a famosa
Babilônia, que já nos tempos de Heródoto era considerada a maior e mais bela
cidade do mundo. Segundo esse historiador, em 440 a C, ele viu em Babilônia os
restos de “uma torre sólida, feita de tijolos cozidos, de 201 metros em
comprimento e largura, sobre a qual estava erguida uma segunda torre, e nessa
uma terceira, e assim até oito. A ascensão até ao topo é feita pelo lado de
fora, por um caminho que rodeia todas as torres. Quando se está a meio do
caminho, há um lugar para descansar e assentos, onde as pessoas podem senta-se
por algum tempo no seu caminho até ao topo. Na torre do topo há um templo
espaçoso, e dentro do templo está um sofá de tamanho invulgar, ricamente
adornado, com uma mesa dourada ao seu lado”.[2]
De
uma forma geral, os historiadores concordam que a inspiração bíblica para a
história da Torre de Babel deve estar nos famosos “zigurats”, enormes torres
que os povos dessa região construíam para servir de templos e observatórios
astrológicos, e que ainda estavam em voga nos tempos de Heródoto e Alexandre.
Na literatura encontrada na famosa Biblioteca de Assurbanipal, rei assírio do
século VII a C., que sitiou e destruiu o reino de Israel, são encontradas
muitas referências a esse tipo de construção e sua utilização. Ali estão
registradas várias lendas da literatura suméria que se referem a esse assunto.
Uma delas, por exemplo, diz que Amar-Sin (2046-2037 a.C.), o terceiro monarca
da Terceira dinastia de Ur, tentou construir um zigurat na cidade de Eridu, o
qual nunca foi terminado. Ali se encontra também outra informação que pode ter
servido de inspiração para os cronistas bíblicos, não só para o episódio da
Torre de Babel, como também para a criação do personagem chamado Ninrod, que
por suposto teria sido o idealizador da Torre de Babel. É a história do rei
Enmerkar (conhecido como Enmer, o Caçador) rei de Uruk, que teria construído um
grande “zigurat” naquela cidade. Essa história também se refere á briga entre
dois deuses rivais, Enki e Enlil, que disputam as honras desse templo
construído porEnmerkar, o Senhor de Aratta, e em razão disso acabam por
confundir a línguas dos povos que trabalharam nessa construção.
Existem
vários registros na literatura suméria e babilônica sobre esse assunto, os
quais levaram os estudiosos a pensar que a inspiração bíblica vem dessas
fontes. O rei Nabopolassar, por exemplo, também citado na Bíblia pelas
incursões que realizou contra os judeus, é referido como sendo um grande
construtor e um dos principais reis a fazer da Babilônia a cidade mais
importante do mundo em seus dias. Ruínas do magnífico palácio residencial que
ele construiu e do suntuoso templo para o deus Ninurta, podem ser vistas ainda
hoje. Porém o seu mais ambicioso empreendimento arquitetônico foi a
reconstrução do zigurat Etemenanki, conhecido como “Fundação do Céu
e da Terra”, gigantesca torre escalonada que servia de templo e observatório
astrológico.
Em
termos linguísticos o nome Babel é o correspondente grego do termo acadiano
Bãb-ilu, que significa o “Portal de Deus”. Dai vem a conotação luciferina que a
Bíblia dá á essa obra. Como pode ser constatada pela leitura da crônica
bíblica, a postura adotada pelos cronistas judeus e aceita pelos comentadores
da Bíblia, especialmente os compiladores da Mishná, conjunto de comentários
rabínicos à Bíblia, é a de que a Torre de Babel está na raiz de uma rebelião
contra Deus. Em alguns desses mishnás encontramos inclusive a idéia de que
a Torre de Babel foi construída para desafiar não só o poder de Deus, mas
também para contrariar Abraão, um dos principais sacerdotes da Caldéia, na
época. Este vivia criticando seus pares e concitando-os a reverenciar Deus ao
invés de desafiá-lo. Uma passagem da literatura rabínica que se refere a esse
assunto diz que os construtores falavam palavras afiadas contra Deus. Essas
palavras não foram registradas na Bíblia, mas os comentaristas informam que
nessa época o céu era sacudido por Deus para provocar chuva, por isso eles iram
construir essa torre e suportá-la com colunas fortes, para que ela fosse capaz
de resistir a qualquer outra inundação que Deus quisesse mandar sobre a terra.
Também os cronistas do Talmud e o historiador Flávio Josefo se referem á essas
tradições em seus comentários à Bíblia, se referindo a Ninrod como o principal
articulador dessa obra.[3]
A
Torre de Babel também é referida no Apocalipse de Baruque, livro
apócrifo da Bíblia, onde esse visionário profeta, á semelhança de Dante em sua
Divina Comédia, vê os construtores da Torre de Babel, na forma de cães,
sofrendo o castigo que Deus lhes infringia.[4]
Em
antigas tradições místicas os zigurats eram vistos como portais por onde os
deuses poderiam entrar na terra e pelos quais o homem poderia também entrar no
céu. Eram consideradas “escadas” que ligavam a terra ao céu. Da mesma forma que
os habitantes do céu poderiam vir á terra através desses portões, os homens
poderiam também entrar no céu por eles, daí o temor dos Elhoins ( os
verdadeiros construtores do universo e criadores do homem), de que o céu fosse
invadido por essa raça degenerada, que eram os humanos gerados pelos arcanjos
rebeldes que haviam sido expulsos do céu. Por isso se diz na Bíblia “vinde
pois, e confundamos de tal sorte sua linguagem, para que um não compreenda o
outro”. Essa fala, no plural, mostra que não foi Deus quem confundiu as
línguas, mas sim um grupo de arcanjos (Elhoins), como sugere a tradição
cabalística.
A
ideia da existência de uma língua única na terra, nos tempos em que a Bíblia
identifica a construção da Torre de Babel não é aceita pela maioria dos
estudiosos. A tendência é ver esse mito como memórias de um processo de
organização dos reinos mesopotâmios, os quais passaram por uma série de
ascensões e quedas, com diversos povos se sucedendo no poder e as dinastias
reais, cada uma procurando superar as anteriores em fausto e grandeza. Daí a
construção de obras suntuosas, que, aliás, era comum entre todas as grandes
civilizações do passado. Assim, um megaprojeto de construção na
Mesopotâmia pode ter usado trabalho forçado de diversas populações
escravizadas, pois a Babilônia, no apogeu da sua história de conquistas,
dominava a maioria dos povos do Oriente médio, com suas diferentes línguas.
Algumas delas eram, inclusive, não semitas, tais como a Hurrita, a Cassita, o
Sumeriano, e o Elamita, que eram línguas cananeias. Provavelmente foi o
desmoronamento do grande império babilônico, conquistado pelo rei persa Ciro, o
Grande, em 525 a.C,. que proporcionou a derrocada da “Torre” (a Babilônia) e a
dispersão dos povos que a constituíam. Dessa forma, a história da Torre de
Babel teria sido inserida na Bíblia após a volta dos judeus do cativeiro da
Babilônia e o chamadoEtemenanki, o zigurat dos reis babilônicos,
principal santuário da “abominável religião de Babel”, foi estigmatizada pelos
cronistas judeus como sendo responsável pela grande confusão de línguas
existente sobre a terra.
A
Bíblia não menciona o que aconteceu á Torre de Babel, mas escritores antigos de
várias procedências informam que Deus a teria destruído. Relatos contidos
no Livro dos Jubileus, em obras de Cornelius Alexandre, de Abydenus, e
principalmente Flávio Josefo (Antiguidades Judaicas 1.4.3), e os Oráculos Sibilinos
(iii. 117-129) informam que Deus teria derrubado a torre com um grande vento.
Isso mostra o quanto esse relato foi apropriado pelos cronistas judeus para
justificar a sua teologia e a sua ideologia racial, sendo a primeira
consubstanciada na idéia da existência de um único Deus e que seria Israel o
único povo a adorá-lo. E a segunda para afirmar a supremacia do povo de Israel
sobre seus vizinhos. Pois segundo os cultores dessa tradição, a língua de
Israel, e o seu alfabeto, o hebraico, é uma língua criada no céu, falada pelos
Elohins, os arcanjos que fizeram o homem á sua imagem e semelhança. As outras
línguas seriam todas bárbaras, nascidas da “confusão” provocada pela derrocada
pela Torre de Babel.
A
história da Torre de Babel, como as demais lendas e tradições referidas na
Bíblia, não é exclusiva dos povos mesopotâmicos, nem é a literatura bíblica a
única a se referir a ela. Entre os povos da América Central existem várias
histórias similares. Entre os astecas temos a história de Xelhua, um dos sete
gigantes que se salvaram do dilúvio, construindo a Grande Pirâmide de Cholula
para desafiar o Céu. Os deuses a destruíram com fogo e confundiram a linguagem
dos construtores. Também os toltecas, povo anterior aos astecas no rol das
civilizações que povoaram o antigo México, tinham uma lenda similar que
dizia que os homens se multiplicaram após o grande dilúvio e começaram a
erguer um alto zacuali (torre), para se abrigarem caso os
deuses mandassem outro dilúvio sobre a terra. Dizem também que a torre não foi
acabada porque suas línguas foram confundidas e eles foram espalhados para
diferentes partes da terra.
Também na Índia, no Nepal, entre os habitantes da Estônia e os aborígenes da
Austrália e da Nova Zelândia já foram recenseadas histórias similares, que
mostram ser a Torre de Babel um arquétipo compartilhado pela memória comum da
humanidade.
E
como tudo que se refere á Bíblia, essa história também se tornou um artigo de
fé. Não são poucos o que defendem a literalidade do episódio da Torre de Babel
como origem das diversas línguas falada na terra. E como se diz, a história
pode ser discutida, mas a fé não.
Na
antiga maçonaria operativa, era Ninrod e não Hiram Abiff o patrono da
Maçonaria. A arte da construção tinha nesse mitológico rei a sua figura mais
representativa. Foi provavelmente a influência da Reforma Protestante, com sua
aversão a tudo que, na leitura protestante, contaminava a doutrina
cristã, que apeou Ninrod desse pedestal, substituindo-o por Hiram Abiff, o
suposto arquiteto do Templo do Rei Salomão. No entanto, as referências ao
construtor da Torre de Babel são encontradas em várias Old Charges, antigos
manuscritos dos maçons operativo ingleses, mostrando que entre os antigos
maçons, construtores de catedrais, o mitológico rei sumeriano era uma figura de
muita proeminência.[5]
Por
fim, cabe lembrar que na mística maçônica, o episódio da Torre de
Babel é uma alegoria de grande significado iniciático. Ele se conecta, de um
lado, á arte do maçom, que se refere ao seu ofício de construtor, e de outro ao
significado esotérico da “Escada de Jacó”, já que esta é, na mística da
Maçonaria, uma “via” pela qual os anjos descem á terra e os homens ascendem ao
céu. Na simbologia da Arte Real ela significa a escalada do espírito humano
pelos degraus do aperfeiçoamento espiritual. Por isso ela será invocada no
catecismo maçônico dos graus superiores como designativo de um importante
ensinamento.
[1] Bíblia
não Tinha Razão- Finkerman e Asher, Ed. Girafa, 2003
[2] Heródoto-
História- Editora Edições 70
[3] Talmud
Sanhedrin 109a. Sefer ha-Yashar, Noah, ed. Leghorn, 12b
[4] Apocalipse
grego de Baruque, 3:5-8
[5] Especialmente
o Manuscrito Dunfries. Ver, a esse respeito, Alex Horne- O Templo do Rei
Salomão na Tradição Maçônica- Ed. Pensamento, 1986
0 Comentários