Na Idade das Trevas , quando o
espírito repressor de quem detinha o poder podia atingir limites inimagináveis,
uma terrível Cruzada irrompeu no sul da Europa. As vítimas foram membros de um
pequeno grupo religioso, conhecido posteriormente como “Catarismo”. Tal
movimento, cuja origem e evolução ainda não foram satisfatoriamente explicadas,
deixou como legado um grande exemplo de luta e coragem, raramente visto em
outros momentos.
Vamos realizar, ao longo deste
trabalho, uma breve viagem no tempo. Voltaremos até o final do século XI e
início do XII, em uma área situada ao sul da atual França. Esta região, de
grande beleza natural, era povoada por uma comunidade feliz, tranqüila e
extremamente avançada para a época, em termos de bem estar e harmonia social.
Havia riqueza abundante e fartura material, raras na Europa medieval. Em termos
políticos era um oásis de liberdade, pois se tratava de um território
praticamente independente de qualquer poder central. Alguns autores acreditam
que ali os Templários iriam fundar seu Estado, se não tivessem sofrido os
reveses do início do século XIV.
Tudo caminhava em paz, até que
a extrema arrogância de poucos acabaram com este paraíso na Terra. Disfarçados
de defensores de Deus, os algozes na verdade queriam a incorporação política da
região ao reino da França. Ao lançarmos luzes sobre os meandros que envolveram
este triste capítulo, uma certeza inquestionável nos é apresentada: os
fundamentos doutrinários de nossa Ordem foram fortemente influenciados por toda
esta complexa situação e posteriores desdobramentos advindos desta experiência
histórica. Portanto, ao estudarmos este assunto, estaremos entendendo um pouco
mais o próprio fenômeno maçônico.
ANTECEDENTES HISTÓRICOS
A Igreja de São Pedro surgiu
por volta do século I na região da Palestina, como uma derivação do Judaísmo.
Rapidamente se espalhou por todo Oriente Médio e demais áreas do Império
Romano, como Ásia e norte da África. Em cada região a mensagem de Jesus era ligeiramente
adaptada às crenças e tradições locais.
Nas diversas comunidades em
que a nova religião começava a aflorar, a hierarquia e administração eram
relativamente independentes umas das outras, mas sempre era possível observar a
influência de Roma sobre todas. Após a legalização do Cristianismo realizada
por Flavius Marcellus Constantino I, por volta do ano 320 d.C., a pressão sobre
os grupos chamados não-cristãos passou a ser exercida de forma severa, com
perseguições, destruição de sítios sagrados e demolição moral dos símbolos das
seitas concorrentes.
No início, a doutrina cristã
era parte fundamental da luta das minorias contra o poder estabelecido,
almejando a quebra do “status quo”. Este perfil se alterou em um período
relativamente breve de tempo. De seita proscrita, com grande sucesso entre as
classes populares - pois defendia a igualdade de todos perante Deus, incluindo
mulheres e escravos – passou a englobar as castas mais nobres. O grande
incentivo seria a asseguração da salvação eterna através da simples declaração
de aceitação dos dogmas apregoados. Com a entrada das elites na nova ordem, e
com o enriquecimento da cúpula, o movimento se transformou: de instrumento de
combate à hegemonia dos mais fortes, tornou-se ele próprio um agente de
dominação. Esta guinada na forma de atuar criava o ambiente ideal para que
descontentamentos surgissem em certas comunidades mais esclarecidas. A semente
da inquietação já estaria em franca germinação.
OS CÁTAROS
Em meados do século XI, ao sul
da atual França, na região antigamente conhecida como “Ocitânia” e que hoje é
denominada “Languedoc” – ambos os termos significando “terra da língua do sim”
- surgiu um movimento fundamentalista cristão, pacífico, que via no exemplo de
vida de Jesus, simples e sem luxo algum, a base de sua doutrina. Acima de tudo,
a palavra de ordem era humildade - desprezando a soberba, a arrogância e os
valores mundanos.
Os integrantes deste movimento
foram chamados, pelos historiadores eclesiásticos, de “Cátaros” - derivação de
“katharoi”, puro em grego. Considerado uma heresia pela cúria romana, tal
movimento agregava integrantes de todas as classes sociais, sem distinção entre
os sexos. Uma vez que o termo “heresia” deriva do latim “haerenses”, que por
sua vez veio do grego “hayreses”, que significa “capacidade de escolher”.
“Herege” tornou-se sinônimo de Cátaro.
Pregando o retorno ao
Cristianismo primitivo, desprezavam a intermediação de qualquer instituição
terrena nas questões de fé, defendendo a ligação direta dos servos com o
Divino. Argumentavam que não se apregoa, em nenhum momento nos evangelhos, a
existência da Igreja ou de qualquer autoridade regulatória da espiritualidade
das pessoas. A salvação viria em seguir o exemplo de Jesus, com uma vida
serena, livre de qualquer vaidade relativa ao mundo material. De nada
adiantaria a existência de uma igreja como forma de canalização da vontade de
Deus em relação às questões seculares – esta talvez fosse a maior das heresias:
afirmar que não haveria justificativa para a existência da estrutura
eclesiástica. A busca do divino através de experiências místicas diretas era
uma das suas principais características. Desejavam uma comunhão direta com o
Criador, transcendendo o campo pessoal. Para isso teriam que atingir a sabedoria
superior – a chamada “Gnose”.
Como principal texto
doutrinário utilizavam o Evangelho de São João e o chamado “Evangelho do Amor”,
texto não reconhecido pela Igreja. Realizavam obras sociais concretas, ajudando
os necessitados de diversas maneiras, pois acreditavam que a fé só seria uma
experiência válida se exercida na prática. Investiam, por exemplo, em campanhas
de promoção à saúde e educação, sempre gratuitas. Neste ponto percebemos que a
preocupação com a filantropia, tão em voga atualmente, já existia nesta época.
Seria uma forma de busca da perfeição com ser humano, ou de aproximação com o
divino.
Por não exercerem nenhuma
forma de hierarquia, respeitando os credos diversos e pela união sincera entre
todos, podemos afirmar que exerciam fielmente os princípios de liberdade,
igualdade e fraternidade. Em relação à Arquitetura, deixaram um grande legado.
Construíram castelos maravilhosos e abadias grandiosas em regiões de difícil
acesso, nos cumes de montanha e perto de precipícios. Além de proteger contra
ataques, possibilitava aos fiéis observarem vistas maravilhosas das paisagens,
a partir de suas sacadas. Hoje, tais obras são famosos pontos de turismo e
visitação.
Revestido pelo caráter
humanístico, aceitando todos indistintamente e pelo exercício pleno da
filantropia, tal movimento crescia vertiginosamente e começava a incomodar as
autoridades eclesiásticas.
A CRUZADA ALBIGENSE
Pelo conjunto de idéias em
franca disseminação e pelas ações junto às comunidades, os chamados heréticos
se tornaram alvo da atenção do Papado e da coroa da França. Em 1.165 houve a
primeira condenação formal, realizada na cidade de Albi, localizada no
Languedoc. Deste fato deriva o termo “Albigense”, utilizado para denominar a
Cruzada e também o próprio movimento.
O Papa Inocêncio III convocou
os fiéis para uma ação religioso-militar, conhecida como Cruzada Albigense. Sob
a liderança de Simon de Montfort, no período de 1.209 a 1.224, e depois
comandada pelo rei Luis VIII, de 1.226 a 1.229, foi a primeira a combater apenas
no continente europeu. Outra particularidade era que o alvo se constituía não
por mouros invasores da Terra Santa, mas por uma pacífica comunidade cristã. O
absurdo da situação espelhava o caos que imperava nas colunas paulinas, e o
total desprezo à dignidade humana.
No primeiro ano, um
contingente de trinta mil cruzados se lançou rumo ao Languedoc, não apenas
combatendo os Cátaros, mas todos aqueles que se encontravam pela região. Quem
surgisse pela frente, sofreria as ações violentas mesmo sendo católico fiel. Os
“cavaleiros” foram alistados dentre os piores tipos disponíveis, como
condenados, desordeiros e mercenários. A violência contra a população foi
extremamente severa e os registros da época nos mostram um horror e uma
carnificina sem igual na História Ocidental. A turba feroz e enlouquecida,
fortemente armada, arrasava tudo que se mexesse perante os sabres. A Ordem do
Dia era ataque primeiro, e pergunte – ou ore – depois.
Apenas na cidade de Bèziers,
em 1.209, mais de sessenta mil sucumbiram queimados ou esquartejados. Existe a
lenda de que, às portas da cidade, os cruzados relutaram por um momento antes
do confronto, ao perceberem que haviam muitos católicos e pessoas comuns pela
cidade . Mas foram incentivados ao massacre pelo prelado do Vaticano, ali presente,
o arcebispo de Narbonne. Arnaud Amaury tranqüilizou os atacantes afirmando que
matassem todos, “pois Deus iria cuidar dos seus, posteriormente”.
Arrasada a cidade de Bèziers,
os cruzados marcharam triunfalmente para Carcassone, onde Simon de Montfort se
apossou dos condados de Trencavel, Alzonne, Franjeaux, Castres, Mirepox,
Pamiera e Albi. Em todos a matança foi massiva e cruel. A área ao redor das
cidades de Carcassone e Toulouse foram completamente arrasadas. Muitos eram
queimados vivos, em fogueiras coletivas com até quinhentos indivíduos.
Mulheres, idosos, crianças e deficientes não eram poupados. O ânimo dos
guerreiros era estrondoso, pois sabiam que se combatessem fervorosamente por
quarenta dias teriam seus pecados perdoados e direitos legítimos às riquezas
originados dos saques.
Há de se registrar a postura
solene e tranqüila da maioria das vítimas ao se encaminharem para o sacrifício
, sem lamúrias nem choros, com sua fé inabalável servindo como sustentáculo
espiritual neste momento de horror. Mesmo quando a única certeza era de queimar
lentamente em uma fogueira humana.
Por volta de 1.224 o rei Luis
VIII, liderando os barões do norte, empreendeu uma nova cruzada, após a morte
de Montfort em 1.218. Esta empreita durou cerca de três anos e chegou até
Avignon, onde terminou o cerco aos hereges. Em 1.229 foi realizado um acordo,
conhecido como tratado de Meaux, entre o rei da França e os senhores feudais
das áreas conquistadas, passando o domínio completo para a coroa. Terminava
oficialmente a guerra. A anexação plena da região havia sido obtida.
No curto espaço de tempo que
durou o massacre, centenas de milhares tombaram. Os números são variados, e não
muito confiáveis, pois a única fonte de registro oficial pertence aos arquivos
dos vencedores. Alguns autores mencionam quase um milhão de vítimas, trucidados
diretamente em combate, ou nas fogueiras acesas após as conquistas das cidades.
Os poucos aprisionados terminavam agonizando em masmorras subterrâneas,
caquéticos pela fome ou consumidos por doenças. A morte, nestes casos, era
lenta e terrivelmente cruel.
O LEGADO HISTÓRICO
Após arrefecer a fúria
cruzada, os sobreviventes passaram a pregar como faziam os primeiros cristãos:
em catacumbas, cavernas e nas florestas. Isto porque a cruzada albigense,
apesar de sua brutalidade atroz, não fôra suficiente para exterminar todos os
indivíduos nem tampouco os seus ideais.
O fortalecimento da Igreja e
sua hegemonia como “representante único de Deus na Terra”, estavam garantidos,
mas ainda haviam reminiscências que deveriam ser resolvidas. A perseguição
deveria persistir, mas de forma pontual e constante. Alguns hereges haviam
escapado, e juntamente com outros que maquinavam contra a Fé Sagrada
necessitavam ser “corrigidos”. Não mais seria possível nem interessante
empreitar uma nova cruzada. Estava indicado o uso de métodos mais
“inteligentes” , sem grande estardalhaço, mas com a mesma crueldade dos
anteriores, marcando com sangue a vontade soberana do poder.
Em 1.231, já refletindo este
novo modus operandi, o Papa Gregório IX lança a bula “Excomunicamus”. Tal
documento estabelecia a nova forma de ação, buscando as confissões dos hereges
em julgamentos eclesiásticos. Encarregados de tais missões, surgiam as “cortes”
chamadas genericamente de Tribunal do Santo Ofício. Os que pensavam de forma
contrária ao “bom senso” reinante, estariam sujeitos à perda de propriedades,
da liberdade e da própria vida - sua e daqueles que os protegessem. A nova
diretriz aproveitava para proibir a manutenção de bíblias nas casas de pessoas
comuns.
Em 20 de abril de 1.233, o
mesmo Gregório IX lançou duas bulas que efetivaram as ações do Tribunal do
Santo Ofício. Destaca-se a bula “Licet et Capiendos”, dirigida aos Dominicanos.
Determinava que estes seriam os responsáveis pelas ações contra os suspeitos.
Ordenava que não poupassem métodos para obter as confissões. Exigia apoio do
poder secular, privando os pecadores dos benefícios espirituais com severas
censuras eclesiásticas.
No ano de 1.252, o Papa
Inocêncio IV publicou o documento “Ad Extirpanda”, autorizando o uso de tortura
física para se obter as confissões. Além de trazer uma série de orientações aos
inquisidores, continha uma frase que resumia bem os ânimos da época: “os
hereges devem ser esmagados como serpentes venenosas”. O conjunto de ações
direcionadas a inquirir, ou questionar o comportamento dos desgarrados, ficou
conhecido como “Santa Inquisição”, nome que se tornou sinônimo de tortura,
horror e irracionalidade.
O mundo ocidental atravessava
uma fase de trevas. Para nós, em pleno século XXI, é quase impossível imaginar
o grau de terror a que a população em geral estava sujeita. Qualquer denúncia
podia gerar os mais dilacerantes sofrimentos. Milhares foram torturados. A
criatividade humana projetava os mais engenhosos instrumentos, construídos
exclusivamente para causar dor. A confissão era essencial para que os bens do
infiel escoassem diretamente para os cofres do Clero. O medo se espalhava nas
pequenas comunidades. À chegada das comitivas da Inquisição, seguiam-se as
cenas de brutalidade, que culminavam com fogueiras humanas em locais públicos.
Os “julgamentos” eram aberrações jurídicas. Enquadrado por heresia, bruxaria,
ou qualquer outro comportamento não muito cristão, o infeliz não tinha qualquer
chance de escapar.
Estas manifestações tenebrosas
de autoritarismo teriam efeitos nas almas daqueles que não aceitavam este
desrespeito fragrante aos direitos humanos. Do campo teórico, estes bravos
partiram para a prática. Reunidos em associações secretas, começavam o trabalho
de resgate dos mais nobres valores, como integridade física, liberdade e
igualdade. Nestas entidades seria essencial a escolha criteriosa dos membros,
para evitar que maus elementos ou espiões se infiltrassem. Os segredos que porventura
existissem, deveriam ser garantidos mediante juramentos severos. A fraternidade
tinha que ser perfeita entre todos, como se fossem irmãos de sangue. O
objetivo, inicialmente, seria proteger os perseguidos pelos tiranos. Passada a
fase de mais sangrenta, as metas seriam ampliadas. A busca pela evolução geral
da Humanidade , até mesmo para evitar que catástrofes como estas se repitam,
passaria a ser a razão de existir destas sociedades esotéricas, cercadas de
símbolos e mistérios iniciáticos.
CONCLUSÃO
Para a maioria dos estudiosos,
as origens da Maçonaria se dispersam nos registros formais da historiografia.
Não temos uma única e definitiva versão deste processo. Os dados oficiais, em
grande parte, se perderam ao longo do tempo. Devido à perseguição visceral, os
antigos Irmãos se viam obrigados a, massiva e eficientemente, destruírem atas,
livros e todos os documentos que seriam tão valiosas aos estudiosos
contemporâneos.
O que existe de real e
inconteste é que no início éramos uma sociedade que visava proteger homens
perseguidos por qualquer forma de tirania. Os riscos a que todos estavam
sujeitos eram tão terríveis que juramentos e códigos severos de conduta se
tornavam essenciais.
Certamente, a aproximação
entre os Cátaros e nossa Sublime Ordem se estabelece de forma direta, em uma
relação simples de causa e efeito. Sem a existência de todos os eventos aqui
estudados, talvez faltasse motivação para que os Irmãos do passado se
dedicassem tanto à criação e fortalecimento das Colunas seminais da Loja. Os
germes das escolas iniciáticas, formadas por homens livres que necessitavam de
proteção mútua, se lançavam ao custo de muito trabalho, sangue e dedicação,
neste alvorecer da Humanidade.
Podemos afirmar que, se o
Catarismo não tivesse ocorrido - assim como sua aniquilação sangrenta posterior
- talvez a mais perfeita das associações humanas nunca tivesse existido. Foi
esta tese, perturbadora e fascinante , que nos levou a pesquisar sobre o
assunto.
Bibliografia:
“Dicionário Maçônico“ - Camino
R., Madras Editora, São Paulo , 2006
“O Santo Graal e a Linhagem
Sagrada” - Baigent , M ; Leigh R ; Lincoln H, Nova Fronteira , 1997.
“Os Cátaros e a Heresia Cátara”
- Miranda H C , Editora Lachâtre , 2002.
“A Evolução das Civilizações”
- Quigley C , Editora Fundo de Cultura, Rio de Janeiro , 1961
“Os Segredos Perdidos da
Maçonaria” - Robinson JJ , Editora Madras, São Paulo , 2005 ;
“Maçonaria: uma Jornada por
Meio do Ritual e Simbolismo” - MacNulty W K , Editora Madras , São Paulo , 2006
;
“Maçonaria – Escola de
Mistérios” - Veneziani Costa, Wagner, Editora Madras, São Paulo , 2006
“O Templo e a Loja” - Baigent,
M ; Leigh, R, Editora Madras, São Paulo, 2005.
CARLOS ALBERTO CARVALHO PIRES
M.'.M.'., A:.R:.L:.S:. Acácia
de Jaú 308, GLSP, Jaú/SP, Brasil
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