Por
Ir.’. João Anatalino
OS EVANGELHOS
PERDIDOS
Acabo
de ler o livro "Os Evangelhos Perdidos" de Barth Herman,
publicado pela Editora Record, São Paulo, 2008. É um livro que comenta os
chamados livros apócrifos do Novo Testamento, particularmente aqueles
encontrados em 1945 em Nag Hamadi, Alto Egito, em 1945. Trata-se de um conjunto
de escritos que foram censurados pela Igreja nos primeiros séculos do
cristianismo como sendo falsificações produzidas por escritores heréticos, com
a finalidade de difundir estranhas práticas da doutrina cristã e denegrir
aquelas que eram recomendadas e aceitas pela verdadeira Igreja, ou seja, a
de Roma.
Entre
esses escritos estão vários Evangelhos, supostamente produzidos por discípulos
de Jesus, entre eles Filipe, Pedro, Tomé, Judas, Maria Madalena etc. A Igreja
oficial os chama de apócrifos, pois afirma que eles são falsificações, ou seja,
trabalhos escritos por pessoas não autorizadas, as quais deram a esses
trabalhos nomes de apóstolos ou de pessoas que viveram e conheceram Jesus. Isso
era comum naqueles tempos. Mesmo os chamados Evangelhos canônicos (Marcos,
Mateus, Lucas e João), bem como as cartas escritas pelos apóstolos, que a
Igreja reconheceu como documentos autênticos e únicos registros autorizados do
ministério de Jesus e da sua doutrina, não podem ser hoje referendados como
produtos dos apóstolos de quem levam o nome. Salvo algumas das cartas de Paulo,
e o Evangelho de Lucas, os demais evangelhos e cartas dificilmente se provariam
ter sido realmente escritas pelos referidos apóstolos.
Acho
que isso não importa muito para a questão de fundo que é a fé. Afinal, sempre
se soube que a vida de Jesus e a sua doutrina nunca foram uma questão mansa e
pacífica, e que ela e seus ensinamentos não se resumem à pequena sinopse que a
Igreja liberou na forma dos quatro Evangelhos canônicos. Muitas seitas que
sobreviveram ao expurgo feito pela Igreja de Roma nos primeiros séculos, e à
inquisição que ela promoveu contra os dissidentes da sua doutrina e orientação
durante a Idade Média, nos mostram que o entendimento da doutrina cristã sempre
foi muito complicado. A biblioteca de Nag Hamadi nos prova que nos anos que se
seguiram à morte de Jesus, e até a Igreja de Roma colocar, finalmente, um ponto
final na questão, determinando o que e como deveria ser a fé cristã, havia
muitos “cristianismos" e muitos retratos de Jesus, alguns deles os mais
bizarros que se pode imaginar.
Já
ouvimos muita gente dizer que os dias atuais são os últimos, conforme Jesus
declarou, já que há tantos falsos profetas, tanta gente tentando corromper a
verdadeira doutrina, tanta gente tentando desconstruir o que a Igreja construiu
nesses séculos todos. Isso, a par das catástrofes, das guerras e rumores de
guerra, da corrupção dos costumes e outros sinais mais, seriam o prenúncio do
Apocalipse anunciado.
Porém,
quando se recua aos próprios dias em que Jesus andou pela terra, vê-se que
naquele tempo a bagunça doutrinária era bem maior do que a que temos hoje, e os
conflitos e a corrupção dos costumes nas sociedades daquela época davam de dez
a zero no que temos hoje.
Nos
dias atuais, em que a liberdade de pensamento e a tolerância são como deuses
que merecem ser defendidos com a própria vida, o que a Igreja de Roma fez soa
como um absurdo politicamente detestável, pois ela suprimiu, a ferro e fogo,
como faz as piores ditaduras, toda e qualquer voz discordante contra a sua
orientação. Mas, conquanto isso possa ser condenável, e é, não podemos deixar
de reconhecer que o que ela fez salvou o cristianismo da extinção pura e
simples. Pois é isso que teria acontecido aos ensinamentos de Jesus se todas as
versões de sua doutrina tivessem sobrevivido e prosperado como confissões
religiosas de importância.
Aliás,
ainda hoje, o cristianismo continua a ser a religião mais cismática e polêmica
do mundo. Por isso ela também é a mais seguida e a mais resistente entre todas.
Já resistiu a vários cismas – temos hoje a igreja católica, a ortodoxa grega, a
ortodoxa russa, a siríaca, as diversas confissões protestantes, a mórmon, etc –
e certamente resistirá a toda e qualquer cisma que porventura ainda vier. Isso
mostra que hoje, como ontem e sempre, haverá muitos “cristianismos” e não será
a diversidade de opiniões a respeito de Jesus e sua doutrina que o prejudicará.
UM EVANGELHO GAY?
Hoje,
todas as minorias sociais – minorias sociais aqui são os grupos que praticam
comportamentos considerados estranhos para a sociedade organizada− tais como os
homossexuais, os hippies, as comunidades naturalistas, etc., procuram
justificar seus comportamentos com argumentos lógicos, extraídos dos grandes
sistemas filosóficos e das próprias construções doutrinárias veiculadas pelas
diversas religiões do mundo. Está em moda, por exemplo, a valorização das
doutrinas e práticas orientais, bem como uma reconstrução do gnosticismo dos
primeiros séculos do cristianismo, principalmente nas suas visões cosmológicas,
que segundo os adeptos do gnosticismo moderno, estão muitos próximos das
descobertas da moderna ciência atômica e astrológica.
Que
achado não seria, por exemplo, para a comunidade gay, um evangelho que
mostrasse que Jesus era tolerante com o homossexualismo ou mesmo praticante?
Pois tal evangelho existiu, e esse não era um assunto tabu nos primeiros
séculos do cristianismo. Uma ligeira alusão a esse tema é encontrado no próprio
evangelho canônico de Marcos, onde se informa que na noite em que Jesus foi
preso, no Horto do Getsmani, estava lá com ele um jovem envolto num lençol, o
qual saiu correndo quando os soldados betusianos prenderam Jesus. Tendo um dos
guardas tentado segurá-lo, ele largou o lençol nas mãos dele e saiu correndo
pelo horto, completamente nu.
O
que fazia um jovem vestido nessas condições, naquela hora fatídica, tem sido
motivo de especulações há quase dois mil anos. Mas segundo Morton
Smith, um professor de História antiga da Universidade de Colúmbia, Nova
Iorque, ele, quando estudante de graduação, fez um estágio num mosteiro
ortodoxo de Mar Saba, em Jerusalém, nos anos cinqüenta. Lá ele teve a
oportunidade de ler uma carta do famoso Bispo Clemente de Alexandria, grande
teólogo da Igrejá Católica, que viveu no século II, e escreveu importantes
tratados teológicos, entre os quais alguns ainda preservados. Era uma carta
onde o famoso teólogo desanca o pau numa seita chamada de carpocratianos,
fundada e liderada por um tal Carpócrates, que segundo ele, eram praticantes de
licenciosidades sexuais em seus ritos, como forma de prática doutrinária. Essas
práticas incluíam sexo livre, homossexualismo e toda experiência carnal
possível, pois o corpo,segundo a doutrina carpocrática, deveria experimentar todas
as experiências possíveis, como forma de libertação da matéria.
Essa
doutrina seria fundamentada num Evangelho Secreto de Marcos, o qual o
próprio Clemente já teria lido, que mostra o grupo de Jesus como uma espécie de
seita praticante de rituais iniciáticos, entre eles o homossexualismo. Em um
dos fragmentos desse suposto evangelho, há um estranho trecho em que a chamada
ressurreição de Lázaro, milagre informado somente no Evangelho de João, é
descrito como sendo um ritual iniciático: Eis o que diz esse fragmento: "E
eles [Jesus e os Apóstolos] vieram até Betânia, e uma certa mulher, cujo irmão
havia morrido, estava lá. E vindo ela, prostou-se diante de Jesus e lhe disse,
“Filho de Davi, tende misericórdia de mim.” Mas os discípulos a repreendiam. E
Jesus, ficando zangado com isto, foi junto com ela até o jardim onde o túmulo
estava, e imediatamente um grande grito foi ouvido do túmulo. E aproximando-se,
Jesus rolou da frente a pedra da porta do túmulo. E imediatamente, indo até
onde estava o jovem, estendeu a sua mão e o levantou, tomando-o pela sua mão.
Mas o jovem, olhando para ele, o amou e começou a implorar-lhe para que ele
pudesse permanecer com o Senhor. E saindo do túmulo vieram eles até a
casa do jovem, pois era rico. E após seis dias Jesus lhe disse o que deveria
ser feito e no fim da tarde o jovem veio até Ele, vestindo uma roupa de linho
[branca] sobre seu [corpo] nu. E ele [o jovem] permaneceu com ele [Jesus]
durante aquela noite, pois Jesus lhe ensinou os mistérios do reino de Deus.”
O
Bispo Clemente, naturalmente, afirma que esse suposto evangelho secreto de
Marcos foi falsificado pelos carpocratas para dar suporte às suas práticas
detestáveis. Mas que ele se desse ao trabalho de escrever uma carta a um
confrade seu para contestar tais informações, é porque tal documento existia e
certamente essa seita incomodava muito a recente formada Igreja de Roma.
Para que esse Secreto Evangelho de Marcos tenha sido citado
por Clemente, no mínimo ele já existia antes de 150 AD, sendo portanto,
contemporâneo dos canônicos. Morton Smith dá evidências convincentes de que
ele pode ser datado do fim do primeiro ou início do segundo século, uma
hipótese que é geralmente aceita hoje. Estudiosos afirmam que se foi realmente
escrito por Marcos, não poderia ter sido escrito muito mais tarde do que 80 AD.
Outros há que acreditam que esse evangelho seria o verdadeiro evangelho de
Marcos, o qual teria expurgado de suas passagens comprometedoras (para a
doutrina cristã oficial).
Imaginar
um Jesus homossexual é demais até para um livre pensador do século XXI. Isso
seria levar muito longe a licenciosidade que a heterodoxia dos nossos dias nos
permite. Mas isso também não tem importância nenhuma em termos do que
entendemos como questão de fé. Hoje, o que parece mais importante discutir é o
que a doutrina de Jesus nos ensina em termos de pedagogia para uma vida
saudável. Vida saudável , não em termos de bem estar material, como ensinam
certas igrejas supostamente evangélicas, cujos líderes são verdadeiros
estelionatários, que defraudam os pobres e ignorantes fiéis que freqüentam seus
cultos. Mas sim, uma vida equilibrada, guiada por uma doutrina sadia e
motivadora, que estimula os valores humanos sem desprezar as verdades do
espírito. Nesse sentido, é confortador saber que a nossa época não é pior nem
melhor do que nenhuma outra em termos de diversidade de pensamento e opinião.
Era até pior nos dias em que Jesus andou pela terra. E a sua missão foi
exatamente uma tentativa de sanear a mente da humanidade, para que ela pudesse
construir um mundo mais feliz. Se ele conseguiu é questão que eu não sei
julgar, mas de qualquer modo, me dá muito mais confiança no futuro saber que a
humanidade nunca foi melhor do que é hoje. Cabe a cada um de nós promover os
saltos qualificativos que a melhoram. Como Jesus fez.
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