pelo Ven.’.Ir.’. William
Almeida de Carvalho 33
Orfeu (descendo
do morro para a cidade [o inferno]) :
“Não sou
daqui, sou do morro. Sou o músico do morro. No morro sou conhecido – sou a vida
do morro. Eurídice morreu. Desci à cidade para buscar Eurídice, a mulher do meu
coração. Há muitos dias busco Eurídice. Todo mundo canta, todo mundo bebe:
ninguém sabe onde Eurídice está. Eu quero Eurídice, a minha noiva morta, a que
morreu por amor de mim. Sem Eurídice não posso viver. Sem Eurídice não há
Orfeu, não há música, não há nada. O morro parou, tudo se esqueceu. O que resta
de vida é a esperança de Orfeu ver Eurídice nem que seja pela última vez”.
Orfeu
da Conceição – Vinícius de Moraes
I Introdução
O
mito de Orfeu exerce uma atração fascinante no imaginário da cultura ocidental,
tanto no passado como no presente. A primeira ópera conservada até hoje em sua
totalidade é o L’Orfeo de Cláudio Montiverdi, estreada em Mântua em
1607. O primeiro balé alemão – Orpheus und Eurydice foi criado por
Heinrich Schütz em 1638. Glück, no século XVIII, criou Orfeo ed Eurídice.
No século XIX, Offenbach, não nos legou somente Os Contos de Hoffmann,
mas também um Orfeu no Inferno. Orfeu foi tema para os seguintes
musicistas: Liszt, Benda, Paer, Milhaud, Malipiero, Casella, Krenek, Birtwistle
e Stravinsky. O cinema, no século XX, apresentounos os dois Orfeus (Orpheus [1949]
e Le Testament d’Orphée [1959]) de Jean Cocteau e o carnavalesco Orfeu
Negro (1959) de Marcel Camus, premiado com a Palma de Ouro em Cannes e o
Oscar em Hollywood, baseado na peça de Vinícius de Moraes Orfeu da
Conceição, testemunhando a modernidade do tema. Folheando-se os jornais hoje
(maio/1999), depara-se com o último filme de Cacá Diegues Orfeu e o
último livro de Salman ”Versos Satânicos” Rushdie O Chão Que Ela Pisa
que, segundo a crítica, é um mergulho no universo pop e traz à tona o mito
de Orfeu. Já que se passou para a literatura, não se pode deixar de citar o
maior poeta lírico grego – Píndaro; Platão na República, no Górgias e
no Banquete; as Geórgicas de Virgílio (principalmente o Livro
IV); o Paradise Lost (Canto VII) e o L’Allegro (145) de Milton;
as Pastorals de Pope; o romântico Novalis e o nosso brasileiríssimo e
monumental poema barroco (no dizer de Murilo Mendes) de Jorge de Lima: Invenção
de Orfeu (1952). Na pintura, o poeta Guillaume Apollinaire, em 1912, criou
um termo cubismo órfico que influenciou Robert Delaunay, Fernand Léger, Francis
Picabia e Marcel Duchamp.
O
porquê desta orfeumania é o que se tentará enfocar neste artigo.
II Lendas sobre
Orfeu
Numerosas
fontes históricas relatam a existência dos mitos órficos. Tudo leva a crer que não
era conhecido de Homero (antes de 700 a. C.) mas, já no século VI, aparece em
algumas tradições. O primeiro escritor grego a fazer menção ao “célebre Orfeu”
foi Ibykos em meados do século VI. a. C. A lenda de Orfeu coloca o como um dos
principais poetas e músicos da época heróica, ao lado de Homero e Hesíodo.
Determinou a existência de uma religião especial – o orfismo – e de uma seita –
os órficos – que se expandiu por todo o mundo grego e a Itália meridional.
Encontram-se
alusões ao mito em Píndaro, Esquilo, Eurípedes, Empédocles etc. É, contudo, o
já citado Platão que o entroniza na República em plena época clássica
(século IV a. C.). Ele e os neoplatônicos influenciaram vigorosamente o
pensamento cristão. A humanidade herdou três obras completas, numerosos
fragmentos e uma longa lista de obras, efetuadas pelo lexicógrafo grego Suidas,
atribuídas ao próprio Orfeu.
Orfeu,
do grego OrjeuV, é um
herói lendário grego dos tempos antigos com extrema habilidade na música, no
canto e na poesia e que se tornou o patrono de um movimento religioso ritualizado
por um corpus de escritos sagrados que teria sido composto pelo próprio.
Remanescem
dúvidas se Orfeu teria sido um personagem histórico. A lenda, contudo, reza que
teria nascido na Trácia e era filho de uma Musa (provavelmente Calíope, patrona
da poesia épica e a mais importante das musas) e Eagros, rei da Trácia. Outra
versão, apresenta-o como filho do próprio Apolo. Orfeu é considerado como o maior músico da antiguidade, não só pela música como pelo canto. Todos os poetas antigos
celebraram sua lira e sua cítara, pois, até mesmo esta, teria sido inventada ou
aperfeiçoada por ele, pois aumentou-lhe o número de cordas, de sete para nove,
numa homenagem às Nove Musas. Seus acordes eram tão melodiosos que os homens e
os animais quedavam paralisados para o escutar. Os animais ferozes deitavam-se a
seus pés como cordeiros; as árvores vergavam para melhor escutá-lo; os homens
mais coléricos sentiam-se penetrados de ternura e bondade. Educador da
humanidade, conduziu os trácios da selvageria para a civilização. Iniciado nos
‘mistérios’, completou sua formação religiosa e filosófica viajando pelo mundo.
Ao retornar do Egito, divulgou na Hélade a idéia da expiação das faltas e
dos crimes, bem como os cultos de Dioniso e os mistérios órficos,
prometendo, desde logo, a imortalidade a quem neles se iniciasse.
Juntou-se
à expedição dos Argonautas, assim chamados por causa do navio Argos no
qual embarcaram para a Cólquida em busca do Tosão de Ouro. Este célebre navio
transportou a fina flor da mocidade grega, cerca de 55 heróis, dos quais cita-se:
Jasão, promotor e chefe da empresa, Héracles (que participou só no começo da
missão), Argos, Castor e Pólux, Deucalião, Glauco, Laertes, pai de Ulisses,
Oileu, pai de Ajax, Peleu, pai de Aquiles, o nosso poeta Orfeu e muitos outros.
Teve participação expressiva, pois salvou-lhes a vida em diversas oportunidades:
seja acalmando o mar encapelado; seja dando cadência, com a sua música, aos
remadores; seja entorpecendo o dragão da Cólquida, o guardião do Tosão de Ouro,
ao som de sua cítara; seja recobrindo a música maléfica das Sereias com o som
de seu instrumento. Passaram pelo Helesponto, pelo Ponto Euxino, pelas Ciâneas
(recifes móveis) também chamadas de Simplégades, por Cila e Caribdes etc. No
tocante as Simplégades, seria interessante relacionar seu simbolismo com os
ritos de iniciação. Spencer diz que “as Sympleglades, eram duas rochas
em luta, na entrada do Mar Negro, e por entre as quais Jasão e os Argonautas
tinham de passar em seu barco. As Sympleglades simbolizam a passagem
para um outro mundo e têm uma tripla significação: elas representam o guardião
do umbral; representam o terror do umbral e a ameaça de deixar a familiar condição
mundana; quando a passagem é realizada, elas representam a união dos opostos.
Quando o homem deseja transferir-se deste mundo para outro, ele deve passar
através de um intervalo sem dimensão e sem tempo, que divide duas forças
relacionadas porém contrárias. No momento real da passagem, o herói abraça ambas
as forças e deste modo anula os opostos. Nesse preciso momento ele se encontra
no outro mundo” (Spenser, pg.31). Mircea Eliade também dedica grandes parágrafos
ao simbolismo iniciático das Simplégades (Eliade, 1975, pg. 108).
Ao
regressar da expedição dos Argonautas, casou-se com a ninfa Eurídice a quem
amava perdidamente. Acontece que no dia de suas núpcias, o apicultor Aristeu
tentou violar a esposa de Orfeu. Eurídice, ao fugir de seu perseguidor, pisou
uma serpente que a picou, causando-lhe a morte. Possuído por um desgosto
inconsolável, o poeta deixa de cantar e tocar e permanece em silêncio soturno
pela morte da esposa. Resolveu, então, descer às profundezas do Hades, para
trazê-la de volta ao mundo dos vivos. Orfeu desce aos infernos, nos versos
imortais de Virgílio e, com sua cítara e sua voz divina, encantou de tal modo o
mundo plutônico que a roda de Exíon parou de girar; o rochedo de Sísifo deixou
de oscilar; Tântalo esqueceu a fome e a sede e as Danaides descansaram
de sua faina eterna de encher os tonéis sem fundo. Às margens do Styx, tange de
tal modo sua cítara que Caronte e Cérbero deixam-no atravessar o rio. Comovidos
com tamanha prova de amor, Plutão e Perséfone concordaram em devolver-lhe a
esposa. Impuseram-lhe, contudo, uma condição penosa: ele seguiria à frente e
ela lhe acompanharia os passos. Enquanto caminhassem pelas trevas infernais,
acontecesse o que fosse, Orfeu não poderia olhar para trás, até que o
casal transpusesse os limites do império das sombras. Orfeu aceita a imposição
e inicia a sua peregrinação. Estava quase alcançando a Luz quando uma dúvida
lhe assalta o cérebro: e se tudo não fosse uma enganação dos deuses? E se sua
amada não estivesse atrás dele? Acutilado pela incerteza, olhou para trás,
transgredindo a ordem dos deuses. Ao voltar-se, viu Eurídice, esvaindo-se para
sempre, “morrendo pela segunda vez...” Tentou ainda retornar, mas o barqueiro
Caronte foi implacável na sua recusa.
Inconsolável,
tomado de amor pela sua musa, o vate passa a repelir todas as mulheres da Trácia.
Por causa disso, uma vertente da lenda rezava que Orfeu foi estraçalhado pelas
enfurecidas mulheres do seu torrão. A outra vertente, afirmava que tinha sido
esquartejado pelas Mênades por ter abandonado o culto de Dioniso pelo de
Apolo. Sintomático é que em ambas as versões, nota-se uma certa similaridade
com o esquartejamento de Osíris e a junção dos pedaços por Ísis no Antigo Egito.
É o tema da degradação do ovo original.
Sua
cabeça foi lançada ao rio Hebro, cantando e recitando em versos órficos, o nome
de sua amada. Desgostosos com esse crime, os deuses resolveram castigar o país
com uma grande peste. Consultado o oráculo de como acalmar a ira divina, foi
dito que o flagelo só terminaria quando se encontrasse a cabeça de Orfeu e lhe
fossem prestadas honras divinas. Após longas buscas, um pescador encontrou a
cabeça na embocadura do rio Meles, na Jônia, onde foi erguido um templo em homenagem
a Orfeu, cuja entrada era proibida às mulheres. Se a lira do poeta foi parar na
ilha de Lesbos, berço principal da lírica grega, pespegaram-na também no
firmamento onde se tornou a Constelação da Lyra, que tem Vega como uma das
estrelas de primeira grandeza.
III – Comentários
sobre o Mito
Orfeu
dirigiu-se ao Hades para buscar Eurídice morta. E aqui convém salientar que
pela cultura cristã, imagina-se o Hades, o mundo inferior, como o inferno. No
orfismo, a topografia do Hades está divida em três regiões: i) o Tártaro,
a parte mais abissal, profunda, ou seja, infernal, pois os castigos eram cruéis
e violentos; ii) o Érebo, com castigos não tão horrendos como o Tártaro
e iii) os Campos Elísios, destinados àqueles que, tendo passado
pelos horrores dos dois primeiros, aguardavam o retorno.
Ao
descer à mansão do Hades, Orfeu teria trazido Eurídice de volta ao mundo
dos vivos se não tivesse olhado para trás, ou seja, mostrou estar ainda,
preso ao passado, à matéria, enfim, a Eurídice. “Um órfico autêntico, segundo
se verá mais adiante, jamais ‘retorna’. Desapega-se, por completo, do viscoso
do concreto e parte para não mais regressar. Certamente o citaredo da Trácia ainda
não estava preparado para a junção harmônica e definitiva com sua anima Eurídice.
Seu despedaçamento pelas Mênades, supremo rito iniciático, o comprova. Como
Héracles, que, apesar de tantos ritos iniciáticos e até mesmo uma catábase
[ida] ao mundo das sombras, somente escalou o luminoso Olimpo após uma morte
violenta numa fogueira no monte Eta. Orfeu olhou para trás,
transgredindo o tabu das direções. Estas, bem como os lados e os pontos
cardeais, possuíam, nas culturas antigas, um simbolismo muito rico” (Brandão,
vol.II, pg. 144).
Convém
comparar essa parte do mito com o Gênesis (19, 1726) quando os dois anjos recomendam
a Lot que não olhasse para trás quando fugisse com sua família da
destruição de Sodoma e Gomorra. Ao fugirem, a esposa de Lot olhou para trás e
foi transformada numa estátua de sal. Este olhar para trás dela
representa a volta ao passado, o apego a uma cidade do pecado. A desobediência,
tanto a Javé como a Plutão, causa a desgraça do infiel.
Na
macumba, após o despacho na encruzilhada, quem elabora nunca deve olhar para
trás. As culturas tradicionais sempre privilegiaram o silêncio e o
interdito do olhar para trás: seja o agricultor ao plantar; a mulher ao
fiar o tecido; o coveiro ao abrir a sepultura; os desfilantes ao acompanhar o
cortejo fúnebre.
Com a harmonia (em grego, harmonia
significa junção das partes) perdida ou rompida, Orfeu não mais podia
tanger a lira e o seu canto perdeu a magia. Perdeu tudo: Eurídice, a música, o canto,
ele mesmo.
O
despedaçamento de Orfeu está ligado a ritos antiquíssimos, pois como se sabe, o
neófito ou iniciado, despedaçava um animal e o comia, para significar seu
renascimento em Dioniso ou algum deus tribal. O rito frenético de Dioniso,
executado pelas bacantes, reflete a originalidade do deus no panteón bem
comportado da religião estatal grega. A participação das bacantes demonstrava
que Dioniso era um deus das mulheres. Tanto assim que uma delegação de mulheres
atenienses, a cada três anos, se dirigia ao campo para serem possuídas pelo
charme e a folia’ do deus, longe das cidades, corriam e dançavam ao som de uma
flauta, sobre as montanhas e as florestas.
A
cabeça de Orfeu sendo lançada ao rio Hebro, também tem um significado lapidar.
A cabeça sempre foi considerada, nas mais diversas culturas, como uma das
partes mais nobres e sagradas do ser humano, pois hospedava a alma. Possuir a
cabeça de um inimigo, quanto maior a hierarquia maior a honra; era um troféu
digno de um rei ou de um chefe tribal. Os deuses somente deram descanso aos
mortais depois que foi encontrada a cabeça de Orfeu e lhe foram prestadas honras
fúnebres. Mesmo decapitada, a cabeça continuava a viver, pois é o símbolo da
voz, do verbo, da imortalidade.
III – Orfismo
Possui-se
hoje uma visão razoável do orfismo através dos diversos escritos,
principalmente os textos de Platão e Virgílio que o integraram no seio de suas
obras. O orfismo é um movimento religioso complexo onde se detectam influências
dionisíacas, pitagóricas, egípcias, apolíneas e obviamente orientais.
O
orfismo oscila entre Dioniso, que sempre desejou romper a camisa de força da
religião tradicional da pólis grega, e Apolo, que corrigia os excessos e
os desvairios dionisíacos. Esta aproximação que Orfeu faz dos dois deuses
antagônicos tem um certo sentido: segundo Eliade, o espírito grego exprime por
ela sua esperança de encontrar uma solução às crises desencadeadas pela ruína
dos valores das religiões homéricas.
Rejeita
daquele os ritos, nos quais os iniciados despedaçavam a vítima viva e ainda palpitante,
e a consumação imediata da carne e do sangue do animal, pois eram radicalmente vegetarianos.
A antropologia órfica tem como consequência o crime dos Titãs, contra Zagreu, o
primeiro Dioniso, a mando da ciumenta Hera. A mitologia conta que Dioniso-Zagreu
era filho de Zeus com Sêmele, uma mortal que, aconselhada pela deusa esposa
Hera, pediu a Zeus que o queria ver com os olhos mortais, o que era um
verdadeiro suicídio. Ao se apresentar a Zeus, a mortal não pôde suportá-lo em
toda a sua radiante epifania. Morreu carbonizada e o feto foi recolhido por
Zeus e agasalhado em sua coxa até o nascimento. Mais tarde, os Titãs, ainda a
mando de Hera, após raptarem Zagreu, mataram-no e cozinharam-no num caldeirão.
Em seguida, o devoraram-no. Zeus, possesso, fulminou os Titãs, transformando-os
em cinzas. Dessas cinzas, nasceram os homens, com sua dupla natureza: o mal
advindo de sua natureza titânica e o bem, representado pelo menino Dioniso Zagreu
que os Titãs tinham devorado. A chispa do divino, que o homem carrega dentro de
si, advém pois de Dioniso, deus da fertilidade e também da morte. Na religião dionisíaca,
inexiste, contudo, esperança escatológica, enquanto o orfismo é essencialmente soteriológico.
Além do mais, o êxtase dionisíaco manifestava-se de modo coletivo tanto
quanto o orfismo é, por princípio, individual.
De
Apolo, herdou uma componente da catarsis, ou seja da purificação, tão praticada
no oráculo apolíneo de Delfos, mas era radicalmente contra a weltanschauung de
Apolo. Este comandou a religião estatal com mão-de-ferro, freando qualquer
inovação que significasse um rompimento com o métron, tão conhecidos na
lição apolínea por excelência: ‘conhece-te a ti mesmo’ e ‘nada em demasia’. A
inteligência, a ciência e a sabedoria são consideradas pelos epígonos de Apolo
como modelos divinos. A serenidade apolínea tornou-se, para o homem grego, o
emblema da perfeição. A divergência residia até mesmo na catarsis, enquanto em
Apolo, esta visava prioritariamente a purificar o homicídio. Os órficos
purificavam-se nesta e na outra vida, visando libertar-se do ciclo das
existências. A religião apolínea era o bem viver; a órfica, o bem morrer.
Os
órficos substituíram a ‘folia’ dionisíaca pela catarsis apolínea. Através da
prece e da oferenda, a purificação – catarsis – é um dos ritos principais das
religiões antigas. Tudo que é impuro provoca a repulsão dos deuses e, por
impuro, entende-se tanto a alma quanto o corpo. Convém notar que, por purificação,
entende-se tanto a individual como a coletiva. Na antiguidade grega, quando se
cometia um crime, o castigo recaía não só sobre o criminoso como sobre todo o
seu clã. Assim, uma pretensa purificação de um crime, tinha que ser não só
individual como coletiva. Ao contrário dos cultos dionisíacos, os apolíneos
eram públicos, pois rejeitavam os mistérios das iniciações e dos ritos
secretos. Por sinal, conhece-se muito pouco destes ritos secretos e destas
iniciações órficas. Eliade nota uma semelhança entre os ritos apolíneos e os
xamânicos, pois ambos procuram o conhecimento, a sabedoria e a exaltação do
espírito, ao contrário das histerias (no sentido grego) e das possessões
dionisíacas. Os órficos resolveram o problema da culpa de forma original na
cultura grega: a culpa é sempre de responsabilidade individual e por ela se
paga aqui; quem não conseguiu purgar-se nesta vida, pagará por suas faltas no
além e nas outras reencarnações até a catarsis final.
A
semelhança entre o orfismo e o pitagorismo, nos aspectos religiosos, é por
demais sintomática: o dualismo corpo-alma, a crença na imortalidade da alma, a
metempsicose, a punição no Hades, a glorificação final da psiqué nos
Campos Elíseos, o vegetarianismo, o ascetismo e a importância das purificações.
Por outro lado, o orfismo era menos elitista do que o pitagorismo, menos
esotérico e não se imiscuia em política.
Orfeu
é essencialmente um reformador. O orfismo quebra com a religião homérica, principalmente
no tocante à sua teogonia. Salienta-se que a teogonia de Homero foi transmitida
pelos rapso dos gregos. Sumariamente, a teogonia órfica afirma o seguinte: na
origem estava Cronos (o Tempo) e dele saíram o Éter e o Caos que geraram o Ovo
Cósmico, um ovo de prata imenso (daí a proibição de se comerem ovos). Desse Ovo
surgiu o deus andrógino Fanes, mais tarde chamado de Eros. Após seu nascimento,
a parte superior do ovo tornou-se o céu e a parte inferior, a terra. Fanes
criou a lua e o sol, o outros deuses e o mundo. Zeus, contudo, engole Fanes e
toda a criação. Houve a produção de um mundo novo, tornando-se, a partir daí, o
criador único. Um papiro, descoberto em 1962, revela uma teogonia ainda mais
radical: um verso, atribuído a Orfeu, proclama que “Zeus é o começo, o meio e o
fim de todas as coisas”. A seguir, Zeus criou um numeroso panteão no qual é
preciso salientar Dioniso-Zagreus que terá realce fundamental no culto do
orfismo.
É
importante aqui salientar o carácter monoteísta dessa teogonia que representa
uma ruptura importante com os mitos olímpicos advindos dos rapsodos homéricos.
O orfismo propugna por uma noção de um deus criador, soberano, simbolizando a
vida universal. Contudo, o rompimento mais radical com o mito homérico é na
parte escatológica, ou seja, na ciência dos fins últimos do homem, naquilo que
deverá seguir à vida terrestre. A descida ao Hades, simboliza a vida após a morte.
A concepção órfica da imortalidade advém de um crime primordial: a alma está
enterrada no corpo como se fosse um túmulo (soma-sema, que significa em grego corpo-túmulo). Como consequência,
a existência encarnada se assemelha mais a uma morte e o falecimento constitui
o começo da verdadeira vida. Esta verdadeira ‘vida’ não é obtida
automaticamente; a alma será julgada segundo as suas faltas e os seus méritos.
Após um certo período, ela reencarna. A influência egípcia – julgamento de
Osíris e reencarnação – é insofismável no orfismo. Nessa via crucis de
reencarnação em reencarnação, até mesmo em corpo de animais, a alma vai se purificando.
Nesses intervalos reincarnacionistas, a alma chega a demorar uns 1000 anos no castigo
do inferno, onde sofre um ciclo de pesadas penas. Quando completamente
purificada, sai desse ciclo de gerações para reinar entre os heróis. O destino,
obviamente, não será o mesmo para os iniciados órficos e os profanos. O mortal
comum profano deverá percorrer dez vezes o ciclo antes de escapar.
São
outro artefato importantíssimo no orfismo. As lamelas órficas ou
orfopitagóricas. Lamelas são pequenas lâminas ou placas de ouro,
descobertas na Itália meridional e na Ilha de Creta, e em túmulos órficos. São,
também, todas marcadas com o sinal secreto Y, até hoje um mistério. Delgadas e
elegantes, enroladas sobre si mesmas, eram depositadas em pequenas placas hexagonais.
Estas, presas a correntes de ouro, eram colocadas no pescoço dos iniciados,
como talismãs, à maneira de passaporte para a eternidade.
Numa
das lamelas encontradas, estão incrustados versos de aconselhamento à alma do morto
para sua viagem em direção ao Hades. Em lá chegando, deve escolher entre um
caminho da direita e um da esquerda. “À esquerda da morada do Hades, tu
encontrarás o Lago da Memória, e os guardiões estarão lá. Diga-lhes... eu sou o
menino da Terra e do Céu estrelado, mas estou morrendo de sede. Dá-me rapidamente
a água fresca que flui do Lago da Memória”. Para a alma que deve retornar a
terra para reencarnar-se, essa água do Lethes tem por função não esquecer sua existência
terrestre mas eclipsar a recordação do mundo pós-morte. O orfismo assim reverte
a função da água do Esquecimento pela nova doutrina da transmigração. O
esquecimento não simboliza mais a morte, mas o retorno à vida. A alma que teve
a imprudência de beber na fonte do Lethes reencarna e será novamente projetada
no ciclo do devir.
Para
aquelas almas que não precisam mais se reencarnar, é aconselhado evitar a água
do Lago da Memória e passar ao caminho da direita. E esta escrito numa das lamelas:
“Venho de uma comunidade de puros, ó puro
soberano dos Infernos”. Ao que Persófone replica: “Saúdo-te, toma o caminho da
direita em direção aos prados sagrados e aos bosques de Perséfone”.
A
sede da alma, comum a tantas culturas, configura não apenas o refrigério, pelo
longo caminhar da mesma em direção a outra vida, mas sobretudo, simboliza a
ressurreição, no sentido da passagem definitiva para um mundo melhor. Se, para
os gregos “os mortos são aqueles que perderam a memória”, o esquecimento para
os órficos não mais configura a morte, mas o retorno à vida.
IV – Conclusão
Orfeu
não morreu com a Grécia antiga. A sua figura continuou a ser reinterpretada
pelos teólogos, tanto judeus quanto cristãos. Nos afrescos das catacumbas
romanas, encontram-se imagens de Orfeu, tangendo sua lira no meio de animais simbolicamente
cristãos: carneiros, ovelhas, cachorros, pombas. Noutros, encontram-se duas
ovelhas: uma simbolizando Orfeu e outra, o Cristo. Nos mosaicos do mausoléu de
Gala Placídia, em Ravena, é representado como Bom-Pastor. Uma antiga cena de
crucificação chega mesmo a chamar Cristo de “Orfeu báquico”.
A
semelhança dos simbolismos são flagrantes: o crime primordial dos Titãs e o
pecado original de Adão e Eva, a consumação do corpo do deus cristão e do deus
grego, Cristo como filho de Deus assim como Orfeu era filho de Apolo, são
pontos comuns entre as duas doutrinas religiosas, numa visão simplista.
Para
os filósofos da Renascença até Pope, para os poetas do seicento,
passando pelos hermetistas até os dias atuais, o Mundo Ocidental teima em não
esquecer Orfeu. Se pouco restou dos mistérios órficos, a figura de Orfeu tem
cadeira cativa no inconsciente coletivo de nosso mundo.
V
Bibliografia
BRANDÃO,
Junito de Souza, Mitologia Grega, 3 vols., Ed. Vozes, Petropólis, 1987.
COMMELIN,
P., Nova Mitologia Grega e Romana, Ediouro, Rio de Janeiro, s/d.
COSTA,
Hippolyto Joseph da, The Dionysian Artificers, London, 1820, reimpresso por
HALL,
Manly P.,
The Philosophical Research Society Press, California, 1936
ELIADE,
Mircea, Iniciaciones místicas, Taurus Ediciones, Espanha, 1975.
ELIADE,
Mircea, História das Crenças e das Idéias Religiosas, 4 vols., Zahar Editores,
2ª ed.,
Rio
de Janeiro, 1983.
ENCYCLOPAEDIA
BRITANNICA, 30 vols., University of Chicago, USA, 1982.
FILHO,
Zito Batista, A Ópera, Ed. Nova Fronteira, 1987.
LIMA,
Jorge de, Poesia Completa, vol. II, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1980
MAYNADE,
Josefina, Orfeo, Editorial Orion, México, DF, 1959.
MILTON,
John, Paraíso Perdido, Clássicos Jackson, vol. XIII, W.M. Jackson Inc. Editores,
Rio de Janeiro, 1952.
MOURÃO,
Ronaldo Rogério de Freitas, Dicionário Enciclopédico de Astronomia e
Astronáutica,
ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1987
PLATÓN,
Obras Completas, Ed. Aguilar, Madrid, 1990.
SADIE,
Stanley (ed), Dicionário Grove de Música, Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1994.
SHURÉ,
Édouard, Orfeu, Ediouro, Rio de Janeiro, 1987.
SPENSER,
Gertrude, O Drama da Iniciação, Biblioteca Rosacruz, Ordem Rosacruz – AMORC,
Grande
Loja do Brasil, Paraná, 1983.
VIRGIL,
Great Books of the Western World, vol. XII, Ed. Encyclopaedia Britannica,
Chicago, 1992.
0 Comentários