Por Arnaldo Jabor
O
Brasil está sem assunto. O governo nos surripiou, entre outras coisas, o
“assunto”. Tirando a tragédia da água que pode nos secar, estamos condenados a
comentar apenas essa crise política e institucional que vivemos. Descobrimos,
de boca aberta, a falência múltipla dos órgãos públicos. O Brasil está sendo
destruído diante de nós e não podemos fazer nada. Os petistas no poder roubaram
os melhores conceitos de uma verdadeira esquerda que pensa o Brasil dentro do
mundo atual e se obstinam em usurpar um genuíno progressismo em nome de uma
“verdade” deformada que instituíram. Quem quiser alguma positividade é “traidor
neoliberal”, termo muito usado pelos “mestres” militantes que doutrinam
milhares de jovens nas universidades.
A
academia cultiva a “desigualdade” como uma flor. A miséria tem de ser mantida in
vitro para justificar teorias velhas e absolver incompetência.
Orgulham-se de um maniqueísmo esquemático, como se a verdade morasse no mais
raso reducionismo. O capitalismo explica tudo e é tratado como uma pessoa:
“Ihh... Parece que hoje o capitalismo acordou de mau humor” ou “esse
capitalismo é mesmo cruel e incorrigível — não para de explorar os pobres”.
O
filósofo João Pereira Coutinho disse outro dia na “Folha” uma frase ótima:
“Oprimido e opressor não esgotam as relações humanas possíveis, mesmo as
desiguais. A luta de classes é uma escolha política, não um dado natural” — na
mosca. Somos tecnicamente uma “democracia”, que aliás é vivida como porta
aberta para o oportunismo: “Ah... Na democracia tudo pode, é mais fácil roubar
numa boa”. Achávamos a corrupção uma exceção, um pecado, mas hoje vemos que o
PT transformou a corrupção em uma forma de gestão, em um instrumento de
trabalho. Várias vezes citei uma frase do Baudrillard, que explica a esquerda
radical, e repito-a: “O comunismo hoje desintegrado tornou-se viral, capaz de
contaminar o mundo inteiro, não através da ideologia nem do seu modelo de
funcionamento, mas através do seu modelo de ‘desfuncionamento’ e da
desestruturação da sociedade” — vide o novo eixo do mal da América Latina.
Essa
zona geral do país começou com o nefasto Lula (o grande culpado de tudo) que
teve a esperteza de transformar nossa anomalia secular em projeto de governo.
Essa foi a realização mais profunda de seu governo: a adesão sem pudor do
patrimonialismo burguês e o desenho de um novo e “peronista” patrimonialismo de
Estado. Essa gente desmoralizou o escândalo, a indignação e a ética (essa
palavra burguesa e antiga para eles). A maior realização deste governo foi a
desmontagem da Razão.
Não
é sublime tudo isso?
Nunca
antes em nossa história alianças tão espúrias tiveram o condão de nos ensinar
tanto. A cada dia, nós nos tornamos mais desesperados, porém mais sábios, mais
cultos sobre essa grande chácara de oligarquias. Em nome da esperança, talvez
tudo o que ocorre hoje nos ensine muito. Estamos progredindo, pois estamos
vendo melhor a secular engrenagem latrinária que funciona nos esgotos da
pátria. Há qualquer coisa de novo nesta imundície. A verdade está nos intestinos.
A
verdade está sempre no avesso do que dizem. São hábeis em criar um labirinto de
desmentidos, protelações e enigmas que vão desqualificando as investigações de
coisas como a Petrobras e todos os crimes de seus aliados. E a mentira vai se
acumulando como estrume durante anos e acaba convencendo muitos ingênuos de que
“sempre foi assim” ou de que “erraram com boa intenção”.
Não
só roubaram cerca de R$ 10 bilhões (até agora) desviados da Petrobras e de
outros aparelhos do Estado, mas roubaram também nossos mais generosos
sentimentos — não arredaram os pés dos velhos dogmas da era stalinista, como
aliás os antigos comunas fizeram desde que se recusaram a votar nos
social-democratas alemães, fazendo o Hitler subir ao poder. Já em 1924, Stálin
chegou a afirmar: “O fascismo e a social-democracia não são inimigos, mas
irmãos gêmeos”. A verdade é que os petistas nunca acreditaram na “democracia
burguesa” — eles se orgulham de se fingir de democratas para apodrecer a
democracia por dentro. Um professor emérito da USP “se entregou” e disse:
“Democracia é papo para enrolar o povo”. Se bem que o “povo” nem sabe o que é
isso e prefere mesmo um autoritarismo populista. Um país de analfabetos sempre
espera um salvador da pátria. Estamos prontos para ditadores e demagogos; para
administradores e reformadores racionais, não. Enquanto isso, intelectuais
sonham com um socialismo imaginário, pois têm medo de ser chamados de
reacionários ou caretas. Continuam ativos os três tipos exemplares de
“radicais”: os radicais de cervejaria, os radicais de enfermaria e os radicais
de estrebaria. Os frívolos, os loucos e os burros. Uns bebem e falam em
revolução; outros alucinam, e os terceiros zurram. Que cenário maldito...
A
“presidenta” está pagando pelo erro de querer ser socialista-brizolista e
dirigir um país, ah... capitalista. Ignorou Davos na reunião da cúpula da
economia e foi à Bolívia se vestir de inca na posse do Morales. Dilma perdeu o
controle da zona geral que Lula sabia “desorganizar” com esmero e competência.
Dilma não é competente nem para desorganizar. Não é apenas o fim de dois maus
governos; é o despertar de um caos institucional que será mais grave do que
pensávamos. Estamos diante de um momento histórico gravíssimo, com a união dos
dois tumores gêmeos de nossa doença: a direita do atraso e a esquerda do
atraso. Como escreveu Bobbio, se há uma coisa que une esquerda e direita é o
ódio à democracia.
O
Brasil evolui pelo que perde e não pelo que ganha. Sempre houve no país uma
desmontagem contínua de ilusões históricas. Com a história em marcha a ré,
estranhamente, andamos para a frente. Hoje, sabemos que somos parte da
estupidez secular do país. Assumir nossa doença talvez seja o início da
sabedoria. O Brasil se descobre por subtração, não por soma. Chegaremos a uma vida
social mais civilizada quando as ilusões chegarem ao ponto zero.
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