por Francis Moray - Tradução J. Filardo
A temática da viagem tem uma
importância fundamental na maçonaria. O compromisso maçônico é visto como um
percurso. E sem grande exceção, não de grau, de lendas aferentes, sem ideia de
encaminhamento, de viagem em stricto sensu, de busca … O maçom, especialmente a
partir do segundo grau é convidado a ir ao encontro do outro, que muitas vezes
é apenas ele mesmo. Mas é toda a vida que passa por uma grande jornada desde o
nascimento até a morte … e talvez além. Uma grande viagem com suas provas, seus
objetivos, suas alegrias, suas dores, respondendo a esquemas narrativos
constantes cuja consideração assegurará o sucesso do percurso: o confronto consigo
mesmo provavelmente passando por uma – ou várias – transformação).
Alguns puderam fazer da viagem o primeiro –
se não único – modelo do mito. Este é notavelmente o caso conhecido do
mitógrafo Joseph Campbell e seu conceito de monomito (1), que ele desenvolveu
em seu best-seller O herói de mil e um rostos (2). E mesmo que seu esquema
possa às vezes ser contestado, ele não deixa de ser uma referência e sua
estrutura será um bom ponto de partida para abordar o lado
iniciático-transformador da viagem.
Sobre a ideia da viagem em maçonaria …
e em outros lugares
Essa dimensão transformadora da viagem é,
logicamente, um elemento importante da maçonaria, em cada acesso a um novo
grau, como ela o é de quase todas as mitologias ou lendas fundadoras do mundo.
Vale a pena mencionar, entre muitas outras histórias de jornadas iniciáticas, o
livro bíblico de Êxodo, a Odisseia de Homero – cujos nomes são agora sinônimos
de grandes viagens – mas ainda a viagem de Bran / Saint Brendan, as sagas
escandinavas, o épico de Gilgamesh, as grandes viagens ao mundo dos mortos
(Osíris, Orfeu, Enéias, Balder …), o asno de ouro de Apuleio, as histórias do
Caminho de Santiago ( o “Campo da Estrela”), as gestas Arturianas com sua busca
pelo Graal, até o Mapa de Tendre do século XVII, de Gulliver e Pinóquio, vem
como contos de fada, a Viagem ao centro da Terra de Verne, ao Senhor dos Anéis
de Tolkien, à Viagem profundamente iniciático-transformadora ao Oriente de
Herman Hesse, até mesmo ao Alquimista de Paulo Coelho e mesmo Tintin (3)? Se encontramos
em algumas dessas histórias, um eco das grandes migrações originais de povos
nômades de caçadores-coletores, elas são principalmente evocações de
metamorfoses de personagens em busca de algo para finalmente encontrarem a si
mesmos. Será que nos surpreenderá que a maioria dos maiores “iniciados” –
alguns dos quais são exaltados na maçonaria – sejam também caminhantes: Jesus,
Buda, Maomé, Aristóteles … Este processo de transformação não é sem paralelo
com a abordagem hermético-alquímica, que subjaz a certos ritos maçônicos.
“Sobre a tradição hermética, escreve J.E. Bianchi, reteremos o significado que
nossos ancestrais nos deram desde a Antiguidade até a Renascença incluída.
Trata-se de um ensinamento secreto, iniciático, conhecido até na China, já praticado
pelos gregos e os árabes, esse ensinamento veio até nós sob a forma de uma
“técnica”: a Alquimia, onde o Aprendiz Maçom encontra os símbolos pela primeira
vez na câmara de reflexão [pelo menos no Rito Escocês Antigo e Aceito]. (4) E
mais adiante: “A alquimia não pode ser classificada como ciência física, mas
(…) deve ser entendida antes como um conhecimento estético da matéria, situado
entre a poesia e a matemática. Ela empresta seus princípios da metafísica e,
tradicionalmente, também encontra seu lugar entre o universo dos símbolos e o
mundo dos números sagrados. Simbolicamente, pode-se dizer que os materiais
reais teriam se transformado em ouro se tivessem permissão para “crescer”, à
medida que o iniciado crescesse espiritualmente através do trabalho sobre si
mesmo. “(5)
Seguramente, com a alquimia, é uma questão de
ciência, mas também, conforme observa Bianchi, de “poesia”. E alegorias de
viagem não faltam, seja em formas literais ou sob o véu de algumas imagens
subliminares, às vezes transmitidas por aquilo que muitos – a começar pelos
alquimistas – chamavam de “linguagem dos pássaros” – a linguagem do céu na
terra ou da terra ao céu (não podemos deixar de ver aqui uma correspondência
direta com a sentença fundamental da Mesa de Esmeraldas de Hermes Trismegistus,
“O que está em baixo assim como o que esta em cima”). Esta linguagem
“hermética” joga com as palavras. Há exemplos bem conhecidos, como o famoso “O
Mercúrio é um Sal” de Fulcanelli, que, por trás dessa evidência química, pode
ocultar uma fórmula espagírica “Mercúrio-estanho-sal” ou um igualmente
explícito e inspirador “The Mercúrio brilha”. Quanto a Compostela como o
objetivo da voagem sagrada, a peregrinação, ela se transforma em
“componst-asa”: o composto de matéria-prima se transforma em volátil (pela
alquimia da estrela). E já que estávamos falando sobre A Mesa de Esmeralda
acima, essa linguagem volátil facilmente nos impressionará – e, com relação a
nosso assunto – um “aime – (la) rode”, um apetite por rondar, navegar, buscar …
(os jogos de palavra somente têm sentido em francês).
Para esta “linguagem secreta” os trovadores
occitanos tinham um termo: trobar clus, a arte de trovar – sua arte poética –
“fechada”. Mas se, para os linguistas, o termo trovar – que deu “trovador” –
pode ter significado, a partir do século XII, “compor [em verso]”, “inventar”,
originalmente, e como seus equivalentes do Norte, os “Trouvères”, esse nome
veio da raiz latino-occitana de “encontrar”, “descobrir” …
É aqui que, na nossa peregrinação poética e
hermética, voltamos ao nosso tema da viagem. Porque a origem mítica desta
sociedade de trovadores – que quase nos sentiriamos tentados a chamar de
“alquímico-especulativa”, mas isso é ainda outra história – nos remete a uma
das grandes narrativas de viagem: a de Jason e os Argonautas partindo em busca
do Velocino de Ouro. Segundo sua lenda, o primeiro trovador da história teria
se chamado “Salvador”, que não é nada mais que o significado do nome grego,
Jason (ou ainda “Curandeiro”).
O velocino de ouro teria sido o supremo
segredo iniciático que os trovadores, os “buscadores de ouro” da Occitânia, iam
buscar e cujos mistérios eles ocultavam sob a alegoria de sua linguagem
secreta. “A fábula do Velocino de Ouro”, escreveu Fulcanelli, “é um completo
enigma do trabalho hermético que deve terminar na Pedra Filosofal. Na linguagem
dos Adeptos, chama-se Velocino de Ouro o material preparado para a obra, assim
como o resultado final. (6) Em o Asno de Ouro de Apuleio (século II), já
mencionado acima, esta verdadeira viagem iniciática mascarada sob um passeio
libertino, Psique é ordenada por Vênus a se apossar do velocino de ouro de
ovelhas assassinas. Quanto a Newton, ele considerava em A Cronologia dos
antigos reinos corrigida que muitas das constelações refletiam uma evocação da
epopeia dos Argonautas. O que está acima é como o que está abaixo…
A viagem como elemento transformador
A lenda de Jasão, em seu aspecto
particularmente arquetípico, fornece uma boa oportunidade para retornar a
Campbell e seu monomito. Se seus trabalhos “narratológico”, baseados no estudo
de diferentes mitologias, inspiraram muitos autores, contadores de histórias e
cineastas, de Georges Lucas para sua série Star Wars a Spielberg, passando por
Coppola ou Georges Miller e muitos outros, ele mesmo se inscreve na esteira de
Carl-Gustav Jung e sua psicanálise dos arquétipos.
De acordo com Campbell, é através do monomito
da viagem que a transformação – até poderíamos dizer transmutação – do herói
deve vai se manifestar. É um verdadeiro processo alquímico que ele define: “A
aventura mitológica do herói segue um itinerário típico que é uma ampliação da
fórmula expressa nos ritos de passagem: separação-iniciação-retorno, uma
fórmula que poderia ser definida como a unidade nuclear do mito. (7) Separação
(ou partida) – iniciação-retorno … Tem-se aí quase o ternário alquímico da
Grande Obra entre Putrificação / Dissolução-Purificação-Rubificação /
Sublimação (ver quadro). Mas, de uma maneira quase praticamente prática, também
se pode imaginar a viagem através de um modelo simples soprado pela busca
arturiana: 1. Identificar o objetivo da busca. 2. Armar-se bem [encontrar um ou
mais guias e adquirir qualidades físicas ou psíquicas usadas como armas ou
armaduras]. 3. Partir [esperar o momento certo]. 4. A busca em si [associada às
viagens e provas em geral triplas, visando o autocontrole, frequentemente
apresentada em forma alegórica do domínio de um dragão [e claramente seu dragão
interior]]. 5. Encontrar.
A viagem do herói (+ imagem de
Ulisses)
Campbell decorticou a “viagem do
herói” em 17 etapas (que, mais ou menos, ecoam os mitemas de Claude
Lévi-Strauss), divididas entre essas três fases ou “atos” antropo-alquímicos:
Fase Partida: o herói
recebe o chamado; ele está relutante, mas receberá ajuda, particularmente de um
mentor, para cruzar o primeiro limiar e permanecer na matriz fundadora
1.
O
chamado da aventura (problema ou desafio a revelar) 2. A recusa da aventura
(medo do desconhecido); 3. A ajuda sobrenatural (geralmente um sábio mentor,
suprimento de armas mágicas); 4. A transição do primeiro limiar (ponto de não
retorno até o sucesso); 5. O ventre da baleia (pausa matricial antes da prova)
(8).
2.Fase Iniciação: depois de cruzar o
limiar, ele entra em outro “mundo”, onde enfrentará provas, com ou sem ajuda,
até a última prova, a Apoteose, na caverna central, para alcançar seu
propósito, sua transformação, seu “Elixir”, seu Graal.
6.
O
caminho das provas; 7. O encontro com a deusa (uma ajuda); 8. A mulher
tentadora (ameaça); 9. O encontro com o pai (outra imagem do mentor no “outro
lado”); 10. Apoteose (a prova final, enfrentando a morte); 11. O dom supremo (a
recompensa, o objeto da busca, o elixir ou uma resposta).
7. Fase Retorno: o herói deve agora
retornar com o conhecimento adquirido. Será que ele quer agora descobrir uma
outra realidade sublime? Por que retornar? Quais provas ainda lhe esperam,
inclusive no ponto de partida, como no caso de Ulisses?
12. A
recusa do retorno (hesitação em retornar a um mundo imperfeito); 13. A fuga
mágica (perseguida pelos guardiões do tesouro); 14. A libertação vinda de fora
(ajuda externa); 15. A passagem do limiar no retorno; 16. Mestre dos dois
mundos (herói realizado em duas dimensões, “o que está acima e o que está
abaixo”; Livre frente à vida (o herói transformado é capaz de melhorar a vida
de seu mundo original).
13.Para ter sucesso na busca, é preciso ter-se
transformado, corrigido, “curado”. Ao curar o rei mutilado [“ferido”], graças
às boas perguntas que ele lhe faz, Perceval deve se curar por um efeito de
espelho.
O fim do caminho?
“Visite o interior da terra e, por
retificação, encontrarás a pedra oculta”, diziam então os alquimistas [e agora
os maçons], que eles sintetizaram na sigla VITRIOL. Muitas buscas ou viagens
alegóricas partem do reino da morte, chegam lá ou pelo menos passam por ele. No
curso transformador da jornada, existe, em todos os sentidos, uma ideia de
morte e renascimento, sob uma forma ou de outra, que é também uma das fontes do
percurso maçônico, em diferentes estágios de progresso – da partida até os
cruzamentos de limite.
No paradoxal Atanor estático de transformação
do ser que é a loja, o maçom parte como o herói viajante passa por crises, provas
que ele deve vencer para se transformar… Mas de onde ele retorna depois seu
percurso? A viagem é uma jornada? Um retorno ao ponto de partida, o que
sugeriria uma abordagem alquímica?
“O grande princípio do ensino hermético é a
Unidade: “Um e Todo”, que contém em si o começo e o fim, que se opõe a qualquer
divisão como a de eu e não-eu ou o ser interior e o ser exterior. O símbolo que
a representa é o círculo, ou a cobra que morde a cauda: o “Ouroboros”, que ao
mesmo tempo representa a Grande Obra, em outras palavras, a realização total do
homem por meio da alquimia espiritual. (9) Essa singularidade
alquímico-espiritual está no coração da viagem, e em particular da grande
jornada vida-morte, que o mito de Er [narrado por Platão na República, Livro X]
traduz: “A história da Er nos diz que o cosmos é uma unidade e que somos parte
de um grande Todo que evolui de acordo com leis ordenadas e harmoniosas neste
vasto sistema organizado. A morte é apenas uma etapa no continuum do grande Um
“. (10)
Em muitas narrativas, o verdadeiro termo da
busca não é o sucesso da busca em si, a realização do objetivo, a aquisição do
tesouro visado [ou sua destruição, se é o propósito redentor invertido, como em
O Senhor dos Anéis], mas a capacidade de retornar ao ponto de partida. O
indivíduo deve ser transformado para voltar a transformar o aqui e agora de seu
mundo de origem. O mito de Er, precisamente, ilustra até que ponto, escalar e
ascendente ou descendente conforme possa ser o caminho, sempre se chega a um
momento em que o ser deve operar o caminho oposto.
Alegórica e literalmente, o significado da
viagem mudou hoje em dia. Agora em diante “ignora-se o que estamos almejando.
Ignora-se porque somos movidos. (11) Isto é explicado pelo fato de que “toda a
comunicação entre a zona consciente e a zona inconsciente da psique humana foi
quebrada e estamos cortados em dois”. Mas se o “sentido” da viagem mudou, sua
razão de ser fundamental permanece: “O ato a ser executado pelo atual herói não
é mais o mesmo que nos dias de Galileu. Lá onde reinava a escuridão encontra-se
hoje a luz; mas também lá onde a luz estava hoje se encontram as trevas. A
proeza do herói moderno é tentar trazer de volta à luz esta Atlântida perdida
que é a nossa alma reunida. » (12)
Notas:
1: Um termo emprestado de James Joyce, que
ele usa em Finnegans Wake.
2: Robert Laffont, 1977 (ed original: O Herói
com Mil Faces, 1949).
3: A misteriosa estrela, para citar apenas
uma, supostamente reproduz a lenda de Jasão e os Argonautas. Sobre esoterismo –
em particular alquímico – de Hergé, ver em particular Bertrand Portevin, O
mundo desconhecido de Hergé, Dervy, 2001, e O demônio desconhecido de Hergé,
Dervy, 2004, e Étienne Badot A chave alquímica do trabalho de Hergé, The
Philosopher’s Stone, 2016. https://bibliot3ca.com/arte-e-maconaria-as-viagens-alquimicas-de-herge-autor-de-as-aventura-de-tintim/
4: Jean-Émile Bianchi, Simbolismo Tradicional
e Busca Espiritual, Edições PF, 2017, p. 92
5: Ibid, p. 92-93
6: O Mistério das Catedrais, Pauvert [ed.
original, 1926] p. 194.
7: Op. Cit., P. 50 [paginações são levadas
aqui da edição de bolso J’ai Lu, 2014]
8: “A ideia de que a passagem do limiar
mágico permite o acesso a uma esfera de renascimento é representada pela imagem
simbólica do ventre, vasto como o mundo, da baleia” Campbell, p. 128.
9: Bianchi, op. cit., p. 93.
10: Liz Greene & Juliet Sharman-Burke,
Viagem ao coração dos mitos: mitos como guias da nossa vida, Dervy, Paris,
2013, p. 291
11: Campbell, p. 515
12: Ibid.
Publicado inicialmente na Revista
FM-Franc-Maçonnerie Magazine
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