Por
Ir.’. Hélio Moreira
O Ir.'. Hélio Moreira com Dr. Joffre Marcondes de Rezende |
Todas
as quartas-feiras, depois da minha reunião na nossa Cooperativa Financeira –
Sicoob Unicentro Brasileira, tinha um encontro marcado com meu companheiro e
sobretudo amigo de longa jornada, Dr. Joffre Marcondes de Rezende, no
apartamento onde ele vivia, quase que
enclausurado, nos últimos quatro, seis meses que antecederam sua partida para o
Oriente Eterno.
Como
sempre acontecia, ele já me aguardava sentado à sua cadeira de rodas na saleta
quase que contígua à porta de entrada; recebia-me com o sorriso que ele
reservava para poucos interlocutores (dentre as suas características, acho que
em quase toda sua vida, Dr. Joffre pouco sorria); era tido por alguns de seus
clientes, principalmente se fosse a primeira consulta, como muito “fechado”,
porém, poucos o abandonaram, alguns por mais de cinquenta anos, como tinha a
oportunidade de conferir em nossos fichários (trabalhamos juntos, na mesma
clínica, por mais de 40 anos).
Naquela
especial quarta-feira, Dr. Joffre estava com ótima aparência, ameaçou,
inclusive, levantar-se para receber-me, porém, com a ajuda do seu enfermeiro
Toninho, contive-o sentado; beijei-o na fronte (como sempre fazia),
provocando-lhe, naquele dia, um comentário:
–
Poucos homens têm o costume de beijar outro homem, observei que você faz isto,
não somente comigo, mas também com outras pessoas, seria uma saudação maçônica?
Completou com um meio sorriso maroto.
–
Na verdade, Dr. Joffre, você é um dos poucos, não membros da Ordem
maçônica, que beijo na face ou na
fronte; temos o costume de saudar os irmãos maçons com um ósculo, que
representa enorme afeto e transmite sentimentos de grande fraternidade.
–
Tenho, acrescenta ele, muito respeito pela maçonaria, pelos seus feitos na
história do Brasil e pelo estoicismo dos seus antepassados que enfrentaram
perseguições e, no entanto, mantiveram
acesa a luz que continua a iluminar a humanidade contra o obscurantismo.
–
Você não gostaria de entrar para a nossa Ordem?
Provoquei-o!
–
Não tenho mais tempo e disposição, embora saiba que Voltaire fez isto quase que
com a minha idade; li muito sobre o iluminismo e sei da aproximação da
maçonaria com este movimento; aliás, gostaria que conversássemos hoje sobre
estas ideias que surgiram no final o século XVII, início do XVIII, após “A
Noite dos Dez Séculos” como ficou conhecida a idade média, pela prevalência de
ideias obsoletas.
Estava
dado o “mote” para nossa discussão do dia.
–
Acho, Dr. Joffre, que o assunto é
realmente assoberbante, porém, teremos que dividi-lo em vários capítulos; que
tal iniciarmos a discussão nesta quarta-feira enfocando a “Enciclopédia”
publicada entre os anos de 1751 e 1765 (os textos) por Diderot e d´Alembert e
com a colaboração de uma plêiade de pensadores (cientistas, filósofos,
historiadores, físicos, medicina, economia, literatura, artes, musica,
enfim, todos os ramos do saber humano) e
cerca de seiscentas pranchas (ilustrações) publicadas por Diderot entre 1765 e
É
considerada, ainda hoje, uma obra monumental e muitos dos colaboradores da
primeira hora, como d´Alembert, um dos seus organizadores, não participaram de
todo o projeto, que compreendeu 17 volumes (textos) com 70 mil verbetes e quase
3 mil ilustrações (11 volumes).
Como
você salientou acima, Dr. Joffre, o período que antecedeu a este
empreendimento, a chamada idade média, não coadunava com o pensamento dos
novos pensadores espalhados por quase
toda a Europa, que passaram a ecoar “luzes” contra o absolutismo e os benefícios
outorgados a realeza, bem como aos membros do clero.
O
homem, diziam aqueles pensadores, nasce puro, com bondade e é a própria
sociedade que o corrompe, e completavam, ele, o homem, precisaria ser guiado
pela razão, precisaria livrar-se dos resquícios da inquisição, em um dístico: –
Ser livre para pensar e agir!
Era
necessário um movimento para abrir caminho para uma Nova Era de
intelectualidade, gerando progresso material e moral, em oposição aos
mesquinhos tempos da Idade Média; em uma frase: – Livrar-se da Inquisição!
Poderia
acreditar naquilo que sua inteligência explicasse independentemente de
religiosidade ou mesmo fé. Teria liberdade de desacreditar naquilo que lhe foi
imposto outrora, ou, simplesmente, questioná-lo.
A
Enciclopédia, aduz Dr. Joffre, seria o corolário destas manifestações, tendo em
vista a listagem de seus colaboradores, todos imbuídos daqueles sentimentos e
muitos, além dos dois idealizadores (Diderot e
d´Alembert), como Voltaire, Rousseau e Montesquieu, tornaram-se arietes
das ideias iluministas na França e, por consequência, da própria revolução francesa de 1789.
É
claro, falamos os dois, quase que um completando o pensamento do outro, que a “Enciclopédia” provocou
grande controvérsia, tendo em vista as ideias dos seus idealizadores, com apoio
aos pensadores protestantes, desafiando os dogmas da Igreja Católica.
Essas
ideias que tomou o nome de iluminismo, tão contrárias ao absolutismo da
época, podemos dizer que foi capitaneada
pela “Enciclopédia” e que passou a ser conhecido como o “século das luzes”,
porque nos dizeres dos seus propugnadores, concedia luz à escuridão, como
contestação “A noite dos dez séculos”, alusão à pobreza cultural daqueles
tempos da idade média.
A
“Enciclopédia”, afirma Dr. Joffre, chegou a ser oficialmente banida ainda na
fase de impressão dos primeiros volumes e só conseguiu ser terminada graças aos
seus apoiadores e subscritores (pessoas que compravam os livros antes da
impressão), alguns deles com altos cargos políticos.
Sinto
uma pequena frustração pelo fato de não ter tido acesso a esta obra, viajei
algumas vezes para Paris e nunca tive oportunidade de procurá-la, até porque o
volume a ser transportado esmorecia qualquer tentativa, fala Dr. Joffre, com o
olhar perdido no horizonte e para encerrar nossa discussão desta quarta-feira.
Infelizmente
Dr. Joffre não viveu o suficiente para ter acesso àquela obra, pois, no apagar
das luzes de 2015, a Editora Unesp-SP lançou, pela primeira vez no idioma
português, uma tradução do que seria um “resumo” da “Enciclopédia”.
São
cinco volumes, traduzidos do original francês, com 298 verbetes (o original
tinha 70 mil), redigidos por 30 autores (140 no original).
Ao
folhear as páginas da coleção senti grande emoção, não só pelo fato de estar
manuseando a obra em si, mas
principalmente pela saudade que senti do Dr. Joffre.
Naquele
dia em que conversamos sobre a “Enciclopédia” senti que ele estava com grande
animação para discutir, parece que tinha pressa para esgotar todo o assunto que
iniciamos.
Lá
pelas tantas Dr. Joffre questionou: – Qual teria sido o verbete que causou
tanta indignação aos políticos da época e que incitou a revolução francesa?
Hoje,
com o livro aberto em minha frente, leio o que Diderot escreveu nos verbetes
“Autoridade política e opressor”:
–
“fundamento do poder político se estabelece
tão somente no consentimento daqueles que a ele se submeteram. Com isto
está afastada a possibilidade de fundar a autoridade política seja na delegação
divina, seja no direito de uma linhagem ou família e muito menos na força ou na
conquista.
Além
disso, Diderot, o autor, indiretamente justifica a resistência, mesmo violenta,
contra o poder que se exerce pela força. “O poder que é adquirido pela
violência não é, senão, uma usurpação e só dura enquanto a força daquele que
comanda for maior do que a dos que obedecem, de modo que, se estes últimos, por
sua vez, se tornarem mais fortes, eles se livrarão do jugo e o farão com tanto direito e justiça
quanto o outro que se lhes havia imposto.”
Quando
a opressão dura muito tempo, afirma Diderot: “Os povos se embrutecem e chegam
até mesmo a amar a tirania. Nesse caso,
o único recurso da nação será uma grande
revolução para se regenerar.”
Pena
que meu amigo Dr. Joffre não esteja mais entre nós, gostaria de discutir estes
verbetes que transcrevi (parcialmente) acima e muitos outros, alguns deles da
lavra de Voltaire, a quem ele tanta admirava; tenho certeza de que
discutiríamos, mais uma vez, o ingresso deste tão famoso filósofo e sobretudo
escritor na maçonaria.
Sei
que não discordaríamos quanto a razão daquele gesto, ocorrido já no ocaso da
sua vida, pois, dentre os seus postulados de conduta estavam a sua luta contra
a intolerância religiosa e de opinião, existentes na Europa no período em que
ele viveu e o dístico fundamental da maçonaria – Liberdade, Igualdade e
Fraternidade.
Fonte: Diário da Manhã
(*) O Ir.'. Hélio Moreira é membro da Academia Goiana de
Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico, Geográfico de Goiás e membro do Conselho Federal da Ordem do Grande Oriente do Brasil
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