*Por Ir.’. Anestor Porfírio da
Silva
As pessoas podem não acreditar
na maioria das histórias que ouvem. É certo que isso tem uma razão de ser
porque a inverdade e a fantasia são tônicas que se fazem presentes nos conteúdos
de muitas delas. Mas esta que vou contar está, há muitos anos, guardada no
diário de minha existência porque me levou a ter da vida um novo conceito e um
novo sentido, pelo simples fato de ter sido eu um espectador a curta distância
de dois de seus mais comoventes trechos.
Sintetiza-se esta história num
drama iniciado bem antes daquele inverno do longínquo ano de 1976, que jamais
se apagou em minha mente porque foi real e assim sendo, como é óbvio, nada teve
de ensaio, de fantasia, mas se constituiu de uma cena verdadeira, algo atípico
que se desdobrou por vários anos seguidos, porém, com um desfecho legal e muito
feliz.
Naquela época, era meu costume
ir para o trabalho sempre sozinho, no meu carro. Certo dia, antes que os
primeiros raios de sol aparecessem, eu transitava rotineiramente por uma via
que dá acesso ao centro de uma grande cidade, onde morei e trabalhei durante
algumas décadas. O trajeto que eu seguia indo para o trabalho era o mesmo de
sempre e a hora também. Mas naquele dia de muito frio e de céu encoberto, a
viagem foi um pouco diferente para mim.
Tudo parecia dentro da
normalidade desde que saí de casa quando, a certa altura do caminho, o motor do
carro começou a falhar e foi perdendo força, de sorte que, quanto mais eu pisava
no acelerador, mais ele dava sinal de que iria mesmo se apagar. Ao perceber que
o fato seria inevitável fui para a faixa lateral direita da pista de rolamento,
andando cada vez mais devagar e quando já estava prestes a alcançar um dos
vários viadutos daquela movimentada via o motor morreu de vez.
Por alguns instantes fiquei
estático sem saber o que fazer ou, por onde começar. Levei as mãos ao rosto,
debrucei-me sobre o volante e suspirei fundo. Eu precisava iniciar cedo o meu trabalho
para cumprir tarefas inadiáveis, mas percebi que, naquele dia, mesmo que eu me
valesse dos mais adequados expedientes para evitar demora, minha vontade
ficaria prejudicada. Mesmo assim, tinha que agir rápido.
Desci do carro, olhei para os
lados à procura de um telefone público, entretanto nada avistei. Mas percebi
que ali, a poucos metros à minha frente, encontrava-se um ancião acompanhado de
um garoto. Eles se abrigavam sob o elevado do viaduto. Fui até lá em busca de informações
a respeito de um aparelho telefônico mais próximo, de onde eu pudesse me
comunicar com alguma assistência técnica. Ao aproximar-me, vi que se tratava de
moradores de rua, maltrapilhos, sujos, descalços. O garoto se encontrava
envolto em um cobertor velho, rasgado, fétido e impregnado de densa camada de
sujeira. O ancião, encolhido, tremia de frio.
Cumprimentei-os e fui logo
perguntando se sabiam de um telefone público ali por perto. O ancião,
impassível, insensível, sequer olhou em minha direção. Tal não se deu com
aquela criança que, solícita, postou-se à minha frente disposta a ajudar-me. E
foi o que fez. Com o braço estendido na direção da outra via daquele viaduto, o
garoto me fez ver que, lá em cima havia um posto de atendimento em frente a uma
drogaria.
Feito o contato com uma
oficina mecânica de minha confiança, voltei rapidamente para o local onde o
carro se encontrava e ali, enquanto aguardava a chegada de um guincho, comecei
a conversar com o menino. Foi naquele instante que ele, em poucas palavras,
narrou-me o seu drama comovente, deixando-me a par de como e quando tudo teve
início até chegar ao ponto em que se encontravam.
Falou-me da ascensão
financeira de seu pai, um homem responsável, dedicado à família, comerciante
que começou quase do nada e chegou ao auge dos sonhos fazendo fortuna. Depois
de algumas décadas de esplendor financeiro e econômico, ele adoeceu, ficou muito
esquecido e foi preciso que a minha mãe assumisse os negócios dele, disse o
garoto. Daquela fase de muita fartura vivida pela família, o menino pouco se
recordava, mas afirmou-me que a ruína começou quando sua mãe faleceu, e
prosseguiu:
- Desde aquele dia, meu pai
que já estava ruim da cabeça, não foi mais o mesmo, e quando tudo acabou fomos
morar na rua. Agora, para piorar ainda mais a minha situação, meu pai está
doente e eu sei que ele vai morrer logo. Ele não reclama de nada, mas sei que
algo de grave está afetando a saúde dele. Ele não era assim. De uns meses para
cá parou de conversar, não reclama de nada, não pede comida e não se lembra nem
do meu nome. Quando ele se for vou ficar sozinho, sem destino, vagando por aí,
sabendo o quanto será difícil para mim na luta pela minha sobrevivência, pela
superação de todas as dificuldades que haverão de aparecer em meu caminho, mas
eu tenho uma arma infalível, um trunfo nas mãos que ele próprio me repassou.
Seu Martim (como era o nome de
seu pai) passou a viver desmotivado, pois, além de se encontrar doente, não
conseguiu assimilar o profundo golpe que sofrera com a perda de sua esposa. Em
sua companhia o único filho, Jeferson, pois não tinha outros parentes a não ser
um irmão, em idade avançada, residente em outra cidade.
Enquanto conversávamos, seu
Martim permanecia a alguns metros de nós, calado, em pé, com o olhar perdido no
horizonte, alheio e indiferente a tudo que se passava à sua volta.
Aquela criança conduzia um
pequeno embrulho em suas mãos e, segundo me disse, eram papéis importantes que
não podiam perder-se, dentre eles um que seu pai guardava cuidadosamente
enquanto tinha boa memória. Notando que fiquei curioso em saber que papel era
aquele, o garoto despejou tudo no chão.
- Veja: Certidão de casamento
dos meus pais, minha certidão de nascimento, certidão de óbito da mamãe,
identidade do papai, identidade da mamãe e este embrulho aqui que ele não deixava
ninguém ver o que tinha dentro. Agora, já sei que não é nada importante, só
papéis. Papéis sem valor, eu acho, mas é o que vai restar para mim quando ele
morrer.
Entre os ditos papeis estava
bem protegido um pedaço de folha de caderno onde haviaalgo escrito. Ele o
exibiu a mim dizendo:
- Leia! Este é bom! É o trunfo
que eu tenho para vencer.
Era um bilhete e nele seu pai
escreveu: “Filho, um dia vou deixá-lo. Você ficará sozinho e se tornará adulto.
Até lá terá que lutar para vencer, mas lute com lealdade e honestidade. Não se afaste
do caminho do bem. Seja um homem justo e perfeito.”
- Pode mostrar-me o resto?
Indaguei-lhe.
Balançando a cabeça
positivamente, ele não hesitou e cuidou de desembrulhar aquilo que eu chamei de
resto. Eram papéis expedidos pela maçonaria. Até então eu não era maçom e
também não sabia para quê serviriam tais documentos, mas fui em frente
analisando tudo. Um placet de iniciação (cópia), carteira de identificação
maçônica, diploma, quitte placet etc..
Antes de verificar o que mais
continha naquele pequeno embrulho, dei-me conta de que o guincho acabara de
chegar para levar o meu carro. O tempo foi suficiente apenas para despedir-me do
Jeferson e dizer-lhe que voltaria a revê-lo no dia seguinte. Eu pretendia levar
o seu Martin a um pronto socorro. Dei-lhes alguns trocados e, em seguida,
afastei-me preocupado com o destino daquele garoto de apenas treze anos de
idade.
Nos dias seguintes, continuei
passando pelo mesmo lugar à procura de um novo contato com o garoto, mas isto
não foi mais possível. Ele não permaneceu lá, conforme havíamos combinado.
Então, fiquei por entender: que destino teria tomado aquele garoto com o seu
pai? Para mim, estariam perambulando pelas ruas daquela enorme cidade. Mas não
foi isso o que aconteceu. Numa última tentativa no sentido de encontrá-los fui
a um pequeno restaurante a poucos metros de distância daquele local e lá fiquei
sabendo que, por causa do intenso frio, a saúde de seu Martim piorou bastante e
desde então ninguém mais o viu por ali. Meses depois, descobri que ele fora socorrido
e levado por uma viatura policial a um hospital onde veio a falecer. O menino,
ao ficar só, foi entregue ao Poder Judiciário e de lá conduzido a um orfanato.
Naquele mesmo ano, por
questões de ordem financeira e familiar, decidi voltar ao meu Estado de origem
de onde não mais saí e, desde então, mais quinze anos se passaram sem que eu soubesse
de qualquer notícia do Jéferson, até que um dia, a convite de minha Loja mãe,
retornei-me ao ninho antigo para matar a saudade, rever os irmãos e participar
de uma sessão magna de iniciação.
Aquele dia também foi marcante
e inesquecível para mim. Todos os membros daquela Loja se preparavam para o
início de uma sessão engalanada e eu não imaginava que algo de muito importante
estaria tão próximo de acontecer. Os trabalhos tiveram início na hora marcada
e, ao final do ritual, quando os três neófitos se recompuseram em suas vestes,
um rosto entre eles chamou-me a atenção. Seria aquele neófito de nome Jéferson
o mesmo garoto que eu conheci há mais de quinze anos em situação tão
deprimente? E quem poderia acreditar que um menino de rua, abandonado, sem pai
e sem mãe, como eu o vi, pudesse chegar à maioridade sendo integrante da maçonaria?
A possibilidade existia, embora fossem mínimas as chances.
A partir daquele instante,
despertou-me forte curiosidade. Eu não pensava em outra coisa. Queria saber se
ele era mesmo aquele garoto. Os momentos que se seguiram foram de acentuada hesitação
para mim até que decidi aproximar-me, cumprimentando-o e dando-lhe votos de
boas vindas.
No momento da modesta recepção
que foi dada aos presentes em um salão ao lado da Loja, eu me dirigi novamente
a ele, desta vez, para eliminar minhas dúvidas. Fiz-lhe algumas perguntas, às
quais prontamente respondeu-me:
- Sou daqui mesmo, da zona
sul.
E continuou:
- Sou ex-interno de um
orfanato de onde saí aos dezoito anos com o curso de técnico em eletrônica.
Hoje exerço a profissão de advogado. Meu escritório fica a menos de um
quilômetro daqui.
Bastaram estas respostas e eu
não tive mais dúvidas. Aquele neófito era mesmo o garoto do viaduto! Foi quando
rapidamente lhe perguntei:
- Você não se lembra de mim?
Eu fui o dono daquele carro que há mais de quinze anos enguiçou lá no viaduto
onde você se encontrava com seu pai!
Ele fitou meu rosto, deu um
passo para trás e disse-me, surpreso:
- Não acredito!
Arrebatados por contagiante
alegria, brindamos nosso encontro com momentos de rara felicidade. Permanecemos
juntos até o final da recepção conversando sobre o que se passou comigo e com
ele ao longo de tantos anos sem nenhum contato.
Algum tempo depois, nosso
encontro estava por terminar com alguns irmãos já se despedindo. Jéferson,
percebendo que logo iríamos nos despedir também, pediu-me licença para ir rapidamente
até ao seu carro e quando voltou trazia alguma coisa em uma de suas mãos.
Ao aproximar-se da mesa onde
nos encontrávamos ele disse:
- Lembra-se disto? Estes
conselhos deixados pelo meu pai foram o trunfo de que lhe falei naquele dia tão
distante, a vantagem que favoreceu minha vitória, lembra-se? Veja!
Aquele pedaço de papel
dobrado, amarelado pelo tempo não me pareceu estranho. De fato, eu já o tinha
visto e não tive dúvida de que, como a prever o futuro do filho, o senhor
Martin o havia escrito encerrando-o com a expressão do seu mais forte desejo, o
qual, pela imbatível força de vontade daquele jovem, acabava de ser consumado:
“seja um homem justo e perfeito!”
Instantes depois, nós nos
despedimos, mas, desta vez, seguros de que não nos perderíamos jamais. E assim
se deu. Nosso contato nunca mais foi interrompido. Este é o relato de uma linda
e inquestionável lição de vida, envolvendo um indefeso personagem que soube se
resguardar diante de tantos desafios, superando-os pelos seus próprios méritos,
mas tendo como escudo os conselhos de um pai que nem a morte conseguiu
impedi-lo de fazer do filho um “homem justo e perfeito.”
*Ir.'. Anestor Porfírio da Silva
M.I. e membro ativo da ARLS Adelino Ferreira Machado
Or.'. de HIDROLÂNDIA – GOIÁS
Conselheiro do Grande Oriente do Brasil/Goiás
Fonte: JB News
0 Comentários