Por Arnaldo Jabor
Estou
no Egito em 1995 - como contei aqui uma vez. Arrasto-me por dentro de um túnel
estreito, em direção ao remoto fundo da pirâmide, o túmulo do faraó Quefrem.
São 50 metros a percorrer nesse buraco de tatu milenar. Um mendigo rasteja
atrás de mim gemendo "batkisk, batkish!" - que quer dizer
"esmola". Sou tomado pelo pânico da morte, mas não tenho volta. Há
que se rojar na pedra suja até a cripta do faraó, com o coração disparado, o
terror de não ter escape a não ser cair no túmulo do rei, onde a morte se abrigou
há 4 mil anos. O mendigo me implorava ajuda até quando chegamos à cripta vazia:
"Batkish! Eu e o mendigo me olhando no buraco do fim. Ele rosnava uns
lamentos melódicos e eu pensei que fosse enlouquecer, mas fui salvo por uns
americanos que saíram bufando do buraco também.
Arnaldo Jabor |
A sensação de insignificância era
letal, debaixo de milhões de toneladas de pedras - não havia luz no fim do
túnel.
Voltei de quatro para o deserto e
minha angústia aumentou quando saí ao sol e vi (juro que é verdade) um pobre
cameleiro de camisola suja, usando um boné do Banco do Brasil, que me sorriu:
"Brasil? Bebeto e Romário". Leia mais
O irreal me tomou de vez; ali,
entre camelos, na vertigem de fatos simultâneos, sem continuidade: Bebeto,
Romário, Quefrem e a Esfinge me olhando. Senti-me um mendigo, pedindo a esmola
de algum Sentido.
Em torno das pirâmides, vi o
Egito bem antes do 11 de setembro, antes da internet e redes sociais. Eu vi o
Egito como o grande museu de uma paralítica sociedade, as casas do Cairo com o
lixo no teto, os gritos dos "muezzins" nas mesquitas, os rostos da
miséria, a zona geral do país sem rumo sob a ditadura; eu vi a espantosa
civilização de milênios no Vale dos Reis, seis meses antes de um grupo
terrorista degolar 60 turistas alemães em frente à casa da faraó-mulher
Hatshepsut, onde estive. Poderia ter sido degolado ('não faria falta', rosnam
meus inimigos).
Eu fui ao templo de Ramsés II em
Abu Simbel e vi sua mulher Nefertari num baixo-relevo rendado, que era a
própria Naomi Campbell, uma núbia negra deslumbrante e tudo começou a pesar na
minha cabeça: a manequim de 4.000 anos, o milênio junto com a modernidade e
tudo pesou como uma pedra que cresce e me lembrei do conto de Camus com esse
nome, A Pedra Que Cresce, no Brasil, Iguape, onde se passa o relato de um
absurdo mistério brasileiro.
Aí, quando eu escrevia esse
artigo que lês, caro leitor, me chegou a notícia de que o Mubarak tinha
renunciado. E dos milênios a.C. pulei para 2011. Na TV, milhões de pessoas
celebravam o feito extraordinário: um povo sem líderes fizera uma revolução
sozinho e, sem Lenines ou Guevaras, mudou a história de 6 mil anos - pensei,
entusiasmado.
Há muito tempo esperávamos uma
boa notícia, alguma imagem de vitória, neste mundo empacado em impasses, na
crise financeira na América e Europa, na falta de solução para o terror. E, de
repente, essa notícia gloriosa diante de mim. Parecia que a revolta e a luta
vieram de dentro dos corpos, insuflados por um grande Ser que vive e respira
nas redes sociais. A sociedade não estava mais sozinha; havia para mim e para
os otimistas do mundo, um novo link entre os cidadãos.
Mas, como dizem: "Um
otimista não passa de um pessimista mal informado". Eu era um deles. Um
amigo francês, vivido e culto, arrefeceu meu entusiasmo com aquele típico
muxoxo francês para baixo, aquele rugido triste de descrença: "Pourvu que
ça dure...".
O eterno retorno. O
resto vimos nos últimos dias. Depois da previsível tentativa da Irmandade e
Mursi de criarem um país islamita, com "sharia" e burka, o Exército
interveio com uma brutalidade espantosa. Mata-se sem pena ali; não há
indivíduos - só uma massa a ser punida, no interesse do poder. E aí, acabou a
ilusão de um final feliz. Não há mais happy end.
Antes, quando o Exército
interveio e depôs o Mursi, houve a esperança de que fosse um "golpe
militar liberal".
Mas isso é uma contradição em
termos. Isso não existe. Não existe na mente dos muçulmanos a ideia de
democracia nem de individuo. Não adianta - vejam o Iraque e o Afeganistão. Eles
sempre retornarão à submissão, a Alá e Maomé. No Egito, os militares sempre
foram uma elite privilegiada. Os bilhões de dólares que os USA enviavam, eram
sua cama de luxo. Por outro lado, a Irmandade Muçulmana metralhou o presidente
Sadat diante das câmeras do mundo todo e pariu a Al-Qaeda. A irmandade foi a
maternidade dos homens-bomba.
E agora? Somos a favor de milicos
massacradores ou de islamitas de uma irmandade pré-medieval, terrorista e
maluca?
Duas barbáries se defrontam. O
Egito virou a Síria. Como atacá-la se os generais viraram o Assad? Acaba de ser
lançada uma nova onda de suicidas jihadistas que, agora, além do ódio aos cães
infiéis, terão uma injustiça terrível a vingar. Nada mais estimulante para eles
do que o martírio. E não haverá mais eleições, porque o Exército não tolerará a
Irmandade concorrendo.
E aí? Os ocidentais estão
divididos entre princípios e interesses. Haverá a condenação ao massacre do
Exército que assassina o povo ou vão apoiar sutilmente os golpistas para não
prejudicar seus interesses estratégicos? O irracionalismo sempre surge nos
impasses sem solução. Pois é... já começou.
E vai contaminar todo o
"equilíbrio desequilibrado" do Oriente Médio. A Síria deve adorar
isso e já expande sua mortalha para o Líbano.
Ninguém sabe o que vai acontecer.
Todas as análises são adivinhações.
Ao menos, já sabemos que
"democracia" empurrada pela garganta dos países árabes ou a aliança
de paz espúria com ditadores vão agonizar e morrer. Mas, mesmo que haja
catástrofes políticas, creio que a verdade da tragédia é melhor que a
continuação dessa ópera-bufa. Qualquer verdade será bem-vinda, porque é melhor
a roda da História girando do que esta época encalacrada em que vivemos.
Fonte: O Estrado de São Paulo
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