*Por Edival Lourenço
Edival Lourenço |
Nosso
processo civilizatório vem se dando ao longo dos séculos numa relação de
dominadores e dominados (a elite sobre a massa) com maior ou menor grau de
arrocho. Há, num extremo, momentos de relativa liberdade e democracia e no
outro o domínio ditatorial e até mesmo de escravidão, a tal ponto de um ser
humano se submeter ao outro e se tornar coisa ou semovente. No Brasil colonial
houve até o chamado Imposto sobre Venda de Seres Humanos.
Uma
das mídias mais persistentes e poderosas da história da civilização ocidental é
sem dúvida a Bíblia Sagrada. Dela constam vários momentos de submissão extrema
de um povo a outro, como é o caso do Cativeiro da Babilônia. Os judeus (povos
do Reino de Judá) foram vencidos pelas tropas de Nabuconodossor II e levados
para a Babilônia e ali serviram por 70 longos anos, como escravos. As primeiras
gerações que nasceram no desterro morreram sem conhecer a liberdade. Foram
nesse período reduzidos à condição de objetos de venda e troca. Coisa que se
pode usar, abusar e dispor. Vivendo em condições humilhantes, todo mundo era
mão de obra cativa e até objeto de degustação sexual. Sobretudo as mulheres e
as crianças. Pedofilia não é uma invenção dos padres do pós-revolução sexual. Leia mais
Mas
os judeus, detentores de elevada auto-estima, identidade cultural e uma crença
inabalável de que Jeová haveria de retirá-los do jugo babilônico e devolvê-los
ao antigo reino, criavam problemas de subversão a seus opressores. A estratégia
dos babilônicos foi conceder uma parcela do poder de araque aos judeus. Assim,
um dos supostos líderes dos escravos, um certo Zedequias , foi nomeado Rei
Vassalo, para ajudar no controle dos escravos mais nervozinhos.
Há
muitas formas de uma turma, mais favorecida circunstancialmente, subjugar a
outra. Normalmente é um pequeno grupo dominando grandes massas. Pequenos grupos
pensantes sobre grandes levas de pessoas acéfalas. A ameaça e a intimidação e
até mesmo a agressão física têm se constituído instrumentos eficazes de
dominação. No entanto, a tentação e a dissuasão psicológica existem desde
tempos remotos.
Uma
tradicional oração cristã acerta na mosca quando diz “livrai-nos das
tentações”. A tentação é uma das formas mais eficazes de subsunção e domínio.
Ulisses, na Odisseia de Homero, só conseguiu transpor a Ilha das Sereias,
porque tapou o ouvido de seus marinheiros com cera e exigiu que ele próprio
fosse amarrado ao mastro do navio, com ordem de não ser solto, mesmo que viesse
a exigir a soltura. E de fato Ulisses, ao ouvir o canto mavioso das tais
sereias, exigiu que o soltassem. Mas os marinheiros, de ouvidos tapados, não
ouviram seus clamores. Continuaram
remando e assim a embarcação não se espatifou na pedreira, que era para onde a
tentação das sereias atraia os navegantes.
No
filme “Vida de Insetos” (supostamente infantil), em que há várias conotações da
relação dominantes X dominados, há uma cena antológica em que uma mariposa
grita para outra: “resista, resista, não olhe para a luz!” A mariposa que cedeu
à tentação foi atraída pelas chamas e morreu chamuscada. A mariposa mais bem
pensante saiu-se ilesa.
O
domínio pela força de um grupo exercida sobre outro vem perdendo espaço nas
sociedades contemporâneas. O hard power dos antigos vem sendo gradativamente
sendo substituído pelo soft Power. Hoje é muito mais com jeito do que com
força. Muito mais tentação do que imposição.
Se
formos olhar, com as devidas licenças poéticas (ou com os mutatis mutandis dos
latinos e dos rábulas), nós, brasileiros do século 21, não seríamos muito menos
escravizados do que o povo de Judá, ao reino da Babilônia, por volta do século
6 antes de Cristo. Mas hoje a nossa escravidão é exercida sem o uso de funda,
flecha ou arma de fogo. Tudo na base da estratégia, da tentação e do
convencimento. Penso que hoje existem três elementos que sobressaem na vida
cotidiana a nos manter no cativeiro, sem reclamar: 1) a lábia dos políticos; 2)
a tentação do consumo (por desejo e não por necessidade); e 3) a telemática (informática, telefonia,
videofonia, redes sociais e todos os engenhos que brotam em profusão). A
telemática pode parecer um instrumento assessório das duas primeiras
categorias. Mas na verdade, em razão de sua pujança, ela assume a condição de
uma categoria autônoma.
Os
políticos, com seu marketing estupefaciente, conseguem fazer com que repassemos
a eles a maior parte da força de nosso trabalho, com retorno reles. Segundo
alguns tributaristas, 73% do ganho de nosso trabalho vão para o Estado. Ou
seja, para um grupo que tem a expertise de conquistar e se manter no poder, sem
que contra isso rebelemos.
A
tentação do consumo, esse desejo que nos faz consumir não para viver, mas viver
para consumir; a razão que nos leva a comprar uma roupa não para nos agasalhar,
mas para humilhar o próximo que não pode ter uma roupa de grife, nos corrói as
fibras do coração e boa parte de nossa alegria de viver sem malícia. Não somos
nós que escolhemos as marcas; mas as marcas que nos escolhem. E ainda achamos
bonito que isso seja chamado de “liberdade de escolha”.
O
tempo livre, que nos sobrara dessas duas pragas, veio a telemática e nos
roubou. Toda a parafernália eletrônica que compõe a vida contemporânea acabou
por nos surrupiar os instantes de lazer e liberdade de que dispúnhamos. Os
laptops, os iphones, os ipads, os celulares, as redes sociais não nos dão
sossego nem para dormir. Um aparelhozinho dá um trinado e a gente acorda no
meio da noite e levanta para ver de que ordem é a última mensagem. Não há tempo
para o filho, para o cônjuge, para os amigos.
Os
capitães dessa indústria converteram o resíduo de liberdade de que dispúnhamos em faturamento. Cada
mensagem é um cisco de dólar que cai na conta de algum nerd do Vale do Silício.
É como os banqueiros da Idade Moderna (na época da Renascença) que toda moeda
de ouro que passava por seus cofres era lixada cuidadosamente e pequenas partes
de ouro em pó passavam a fazer partes de suas fortunas.
Estão
lixando a nossa alma para ampliar a fortuna dos magnatas contemporâneos. Para
nós das massas, fazer sucesso nessas condições é como o antigo Zedequias da
Bíblia que se sentiu bestamente envaidecido com a sua nomeação de “Rei Vassalo
dos judeus na Babilônia”. O cativeiro da
Babilônia é aqui e agora.
* Edival Lourenço é escritor
Fonte: R. Bula
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