Da Redação
O cenário político da Bolívia mudou
radicalmente neste domingo (17/8). Após quase duas décadas de hegemonia, o
Movimento ao Socialismo (MAS), partido fundado por Evo Morales, sofreu uma
derrota histórica nas eleições presidenciais. Os resultados preliminares
divulgados pelo Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) colocam o país, pela primeira
vez em sua história, diante de um segundo turno.
O
colapso do MAS
Fragmentado entre as alas de Evo Morales e do
atual presidente Luis Arce, o MAS chegou às urnas dividido e enfraquecido. O
candidato oficial do partido, Eduardo del Castillo, obteve apenas 3,2% dos
votos, enquanto Andrónico Rodríguez, pupilo de Evo e presidente do Senado,
somou 8,15%. A soma de ambos foi incapaz de levar a esquerda para a disputa
final, um reflexo da cisão interna que minou a força política construída ao
longo de 20 anos.
Evo Morales, símbolo da ascensão indígena ao
poder, adotou uma postura de boicote: pediu votos nulos ou brancos, em protesto
contra sua exclusão da disputa após decisão judicial. Já Luis Arce, desgastado
pela crise econômica, sequer concorreu. O resultado foi o enfraquecimento total
do MAS, que deixou de ser protagonista para se tornar coadjuvante.
Os protagonistas do segundo turno
A disputa de 19 de outubro será entre Rodrigo
Paz Pereira, senador do Partido Democrata Cristão e considerado centrista, e
Jorge “Tuto” Quiroga, ex-presidente e representante da direita tradicional. Paz
Pereira obteve 32,08% dos votos, contra 26,94% de Quiroga.
A entrada dos dois no segundo turno sinaliza
uma reconfiguração do tabuleiro político boliviano, marcada pelo declínio da
esquerda e pela ascensão de propostas mais moderadas, em contraste com o
radicalismo que marcou outras experiências recentes na América Latina.
Do “milagre econômico” à crise
O declínio do MAS não pode ser entendido sem
considerar o esgotamento do modelo econômico que sustentou o partido por quase
duas décadas.
Durante os anos de Evo Morales (2006-2019), a
Bolívia viveu um ciclo de crescimento médio de 5% ao ano, impulsionado pela
exportação de gás natural ao Brasil e à Argentina. Esse “milagre econômico
boliviano” financiou políticas de redistribuição de renda, subsídios e
infraestrutura.
No entanto, a dependência excessiva do gás
revelou-se fatal. Com a redução das reservas, a falta de investimentos e a
diversificação energética dos principais parceiros comerciais, as exportações
despencaram de US$ 6,6 bilhões em 2014 para apenas US$ 2 bilhões em 2023.
A crise cambial, a inflação e a escassez de
dólares corroeram a popularidade do governo Arce. Sem respostas internas, o MAS
não promoveu um debate estratégico sobre alternativas econômicas. O resultado
foi uma percepção generalizada de estagnação e falta de futuro.
Divisão e personalismo
Outro fator decisivo para a queda do MAS foi a
disputa interna entre Evo Morales e Luis Arce. A falta de sucessão clara, o
personalismo político e a disputa sobre o destino das reservas de lítio —
nacionalização total defendida por Evo versus abertura a parcerias
internacionais proposta por Arce — escancararam a fragilidade de um partido
mais voltado a lideranças individuais do que a um projeto institucional.
“Essa divisão drástica foi como uma pá de terra
no caixão do MAS”, resume o jornalista boliviano Fernando Molina.
O
impacto regional e o avanço da direita
Embora os candidatos que lideram a disputa não
representem a direita radical, o movimento segue a tendência regional. O avanço
de Javier Milei na Argentina e a influência do bolsonarismo no leste boliviano,
especialmente em Santa Cruz de la Sierra, ecoam no atual processo.
Ainda assim, a Bolívia possui particularidades.
Segundo a cientista política Moira Zuazo, as conquistas sociais e
constitucionais dos governos do MAS — sobretudo a inclusão indígena — não têm
volta. A direita boliviana é menos radicalizada, mais oligárquica e dependente
do Estado, diferindo do modelo liberal extremo visto em países vizinhos.
E
o futuro de Evo Morales?
Apesar da derrota, Evo Morales ainda é uma
figura central. Rejeitado pela maioria, mas apoiado em regiões como Chapare,
onde mantém forte influência, Evo pode tentar capitalizar futuros fracassos
econômicos. Enfrenta, contudo, não apenas barreiras políticas, mas também
judiciais, incluindo investigações delicadas.
Para analistas, o futuro do MAS dependerá de
sua capacidade de se reconstruir como um movimento plural e menos personalista.
Caso contrário, corre o risco de desaparecer como força dominante no cenário
político boliviano.
Um ciclo encerrado
As eleições de 2025 na Bolívia simbolizam o fim
de um ciclo político que marcou a América Latina no século XXI. Do auge
econômico à derrocada interna, o MAS deixa como legado tanto conquistas sociais
quanto a lição amarga de que personalismo e falta de renovação podem corroer
até os movimentos mais sólidos.
O país entra agora em um novo capítulo, em
busca de estabilidade e de alternativas capazes de enfrentar uma crise
profunda. O desafio é monumental — e, como sempre na história boliviana, cheio
de incertezas.
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