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Por Paulo Urban
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Fernando Pessoa |
Quando
morreu no Hospital de São Luís dos Franceses, em Lisboa, vitimado por cirrose
hepática, em 30 de novembro de 1935, Fernando Antônio Nogueira Pessoa era um
nome quase por todos desconhecido. "I know not what tomorrow will
bring" (Eu não sei o que o amanhã irá trazer); foi a última frase do
poeta, escrita num pedaço de papel abandonado à beira do leito em que sofreu
sua derradeira noite. Não tendo alcançado o sucesso financeiro nem abraçado
carreira alguma de destaque, o familiar que na véspera o entregara ao médico, a
ele se referiu como "um inútil".
Pessoa
editara até então apenas um livro em português, Mensagem (dezembro, 1934), que
lhe rendera um modesto segundo prêmio do Secretariado de Propaganda Nacional.
Em que pese a publicação de Antinous and 33 Sonnets (1918), reeditado às custas
do autor em três fascículos, em 1921, sob o título English Poems I, II e III, e
algumas centenas de poemas e ensaios que o poeta fez circular em diversos
jornais e revistas literárias de sua época, o fato é que por ocasião de sua
morte, a grande maior parte dos exatos 27.543 textos em prosa e verso, também
as milhares de cartas que compõem sua Obra, estavam inéditos. O espólio, à moda
dos grandes tesouros, permaneceu durante décadas numa arca de madeira, cuja
guarda foi confiada à Fundação Gulbenkian, e hoje encontra-se todo catalogado
em pastas na Biblioteca Nacional de Lisboa.
Nascido
aos 13 de junho de 1888, num simples apartado de Lisboa (4º andar - esquerdo,
no Largo de São Carlos, nº 4), aos 6 anos o menino perderia o pai, o crítico
musical Joaquim Seabra Pessoa. Sua mãe, Mª Madalena N. Pessoa, contrairia novas
núpcias com João Miguel Rosa, que, nomeado cônsul em Durban (África do Sul)
mudar-se-ia em 1896 para lá com a família, onde Pessoa, dos 7 aos 16 anos
receberia a mais britânica educação. Quando, em 1905, retornou sozinho à cidade
natal para cursar Letras (curso que abandonaria dali a dois anos) o poeta já
havia lido Shakespeare, Milton, Byron, Shelley, Keats, Carlyle e Poe. Em Lisboa
dedica-se ao estudo da filosofia clássica e contemporânea, encanta-se com a
torrente de poetas portugueses desde Camões até Antônio Nobre, e passa a
escrever prosa e poesia em português, inglês e francês, inicialmente sob
influência baudeleriana e de todo o movimento simbolista. Pessoa sobrevive
fazendo traduções literárias e assume a correspondência comercial de várias
firmas estrangeiras, a constituir o ganha pão ao longo de sua modesta
existência.
Sabidamente
imenso foi seu interesse pelo ocultismo que, a propósito, é uma das chaves
mestras sem a qual mal podemos acercar-nos dos intrincados enigmas e paradoxos
que se encerram por toda sua Obra. "Há três caminhos para o oculto, diz
Pessoa, o caminho mágico (...), extremamente perigoso, em todos os sentidos; o
caminho místico, que não tem perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o
caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve a
transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes
com defesas que os demais caminhos não têm".
A
cosmovisão esotérica está tão presentemente perpassada pela Obra pessoana, e
(re)vela-se por quase todos seus heterônimos, 72 ao todo, que resta impossível
interpretar o poeta sem levarmos em conta sua afinidade visceral e filosófica
com as questões fulcrais do hermetismo, incluindo aqui sua atração pelo
movimento rosa-cruz, pela maçonaria (pela qual não somente se interessou como a
defendeu publicamente) pela teosofia, pela alquimia e, sobretudo, pela
astrologia, arte na qual foi profundamente versado. Curiosidade, raros sabem
que Pessoa foi o responsável pela introdução do planeta Plutão, descoberto em
1930, nas cartas astrológicas. Santa sincronicidade! Plutão, deus do mundo
inferior, é astro regente do ocultismo e de tudo aquilo que é velado, incluindo
os conteúdos inconscientes; e é dotado de um caráter revolucionário profundo;
nada mais justo, portanto, que entrasse para os anais da astrologia pela pena
de um gênio poético que, adepto do mais sábio conhecimento esotérico, cumpriu a
sina de revolucionar mais que a literatura inteira, toda uma época.
Em
1916, Pessoa pensava seriamente em estabelecer-se como astrólogo em Lisboa.
Embora desistisse da idéia, seus estudos permitiram-lhe fazer considerações
messiânicas a respeito do futuro literário e político de sua pátria, e uma de
suas notáveis proezas foi prever acertadamente a Revolução dos Cravos, que se
deu 4 décadas após sua morte. Pessoa legou-nos ainda um Tratado de Astrologia,
assinado pelo sub-heterônimo Raphael Baldaya, que durante anos repousou
intocado no citado baú, aguardando pelo oportuno momento em que foi descoberto.
Tal
era a fama do poeta nessa área, que o mago inglês Aleister Crowley, ao receber
das mãos de um editor londrino certas correções feitas por Pessoa em seu mapa
astral, que vinham acompanhadas de uma cópia dos English Poems, não hesitou em
alardear ao mundo que iria a Lisboa visitar o "maior astrólogo do
mundo". A entrevista, a causar visível desconforto no poeta, que sempre
preferiu a misantropia aos encontros sociais, deu-se em 2 de setembro de 1930.
Um denso nevoeiro, porém, havia retido a embarcação Alcântara, atrasando em
mais de um dia o desembarque de Crowley, que, tão logo viu Pessoa em terra,
exprimiu-se mesclando o humor inglês a um tom de respeito: "Mas que idéia
foi essa a sua de me mandar um nevoeiro lá de cima?".
Desse
contato surgiria a versão para o português do Hino a Pã, poema de Crowley, que
seria publicado na revista Presença em 1931, texto que serviu de inspiração
para O Último Sortilégio, poesia ortônima pertencente ao Cancioneiro, cuja
estranha particularidade, despercebida pelos críticos, é a de ser expressão de
uma voz feminina, a própria anima do poeta, uma alma bruxa iniciada, que se
revela essencialmente mística, enquanto se lamenta de si mesma ao ver diminuído
seu dom de fazer imprecações e exortar os elementais da natureza. Acompanhemos
partes do texto:
"Já
repeti o antigo encantamento,
E
a grande Deusa aos olhos se negou.
Já
repeti, nas pausas do amplo vento,
As
orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada
me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só
o vento volta onde estou toda e só,
E
tudo dorme no confuso mundo.
Outrora
meu condão fadava as sarças
E
a minha evocação do solo erguia
Presenças
concentradas das que esparsas
Dormem
nas formas naturais das coisas.
Outrora
a minha voz acontecia.
Fadas
e elfos, se eu chamasse, via,
E
as folhas da floresta eram lustrosas".
A
sacerdotisa desses versos, nas estrofes seguintes mostra-se perplexa, posto que
sua varinha já não fala às existências essenciais, e queixa-se também de que
uma vez traçado o círculo, nada acontece, em franca alusão às práticas de magia
ritualística que o poeta bem devia conhecer e possivelmente praticar. Numa
seqüência de imagens metafóricas, a protagonista ainda se assombra: "A música
partiu-se de meu hino./Já meu furor não é divino/nem meu corpo pensado é já um
deus". E mais adiante, admitindo sua impossibilidade de ora alcançar a
transmutação que antes sabia operar, implora ao casal alquímico, ícones da
transcendência que lhe escapa, a fim de que lhe dividam o corpo carnal, do qual
seu ser essencial possa pleno libertar-se:
"Tu,
porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Tu,
Lua, cuja prata converti,
Se
já não podeis dar-me essa beleza
Que
tantas vezes tive por querer,
Ao
menos meu ser findo dividi -
Meu
ser essencial se perca em si,
Só
meu corpo sem mim fique alma e ser!"
Também
a disposição dos versos decassílabos heróicos, agrupados 7 a 7, a perfazer 70
sílabas poéticas por estrofe, permitem-nos suspeitar do não acaso desse
requinte obsessivo de Pessoa, a insinuar aqui uma correspondência entre a
seqüência de percepções que a bucólica feiticeira tem de seu tíbio estado
anímico e os degraus da alquimia que devem ser galgados, passo a passo em
direção à revelação que irá surgir, por meio de uma reviravolta de paradoxos
(característica fundamental de toda a Obra pessoana) sobre vida e morte, ser e
existência, que encerram com "nós de ouro" este poema:
"Converta-me
a minha última magia
Numa
estátua de mim em corpo vivo!
Morra
quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anônima
presença que se beija,
Carne
do meu abstrato amor cativo,
Seja
a morte de mim em que revivo,
E
tal qual fui, não sendo nada, eu seja!"
Estudos
recentes têm se debruçado sobre questões que envolvem Pessoa, sua intrínseca
relação com o ocultismo e suas possíveis aproximações com as chamadas
Sociedades Secretas. "Não sou maçom, nem pertenço a qualquer outra Ordem
semelhante ou diferente"; escrevera o poeta em sua citada defesa da
maçonaria, no Diário de Lisboa, de 4 de fevereiro de 1935. Ainda que a
afirmação seja de todo verdadeira àquela altura, o fato é que Pessoa e Crowley
haviam sido confrades da Golden Dawn, representante do rosacrucianismo
britânico, "única filiação externa à qual Pessoa esteve ligado entre os
anos 20 e 30, na qual conquistou todos os seus graus esotéricos, dela
afastando-se em seguida por incompatibilidade mental e espírito de
independência", segundo nos relata a historiadora Yvette Centeno, em seu
Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética, ed. Presença, Lisboa, 1985.
Outro
historiador português, Vítor Manuel Adrião, autor de História Oculta de
Portugal, ed. Madras, 2000; num de seus capítulos dedicados a destrinçar aspectos
ocultos do grande gênio literário, apresenta-nos uma prova cabal ainda pouco
conhecida: trata-se do Bilhete de Identidade de Fernando Pessoa, escrito pelo
próprio, de 30 de março de 1935, há poucos anos catalogado. Nessa espécie de
currículo mínimo com o qual o poeta pretendia apresentar-se e dar a conhecer em
curtas linhas seu posicionamento filosófico, político e esotérico, diz de si
mesmo: "Posição Iniciática: Iniciado, por comunicação direta de Mestre a
Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de
Portugal". Pessoa termina assim o documento: "Resumo de Estas Últimas
Considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos
Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos: a
Ignorância, o Fanatismo e a Tirania".
Outra
raridade pessoana é sua tradução de A Voz do Silêncio, de Mme. Blavatsky,
fundadora da Sociedade Teosófica, texto este de orientação budista, que a maga
russa afirma ter recebido e decorado quando de sua peregrinação pelo Tibete, em
cujos mistérios teria sido iniciada em 1870. Mas não pára aí a afinidade do
poeta com o pensamento teosofista, visto que se preocupou em traduzir diversos
volumes para a Coleção Teosófica e Esotérica, ed. Livraria Clássica, a partir
de 1915. Compêndio de Teosofia, de C.W. Leadbeater e Annie Beasant, faz parte
desta série.
A
propósito, há quem veja em Iniciação, um dos mais conhecidos poemas do
Cancioneiro, nítida alusão à concepção de Leadbeater de que o homem, antes de
ser um corpo dotado de alma, é uma alma revestida por sete corpos, a saber: o
físico, o emocional, o mental, o intuicional, o espiritual, o monádico e o
divino. Complexidade da doutrina teosófica à parte, transcrevamos o hermético
trabalho, escrito em redondilha maior:
Não
dorme sob os ciprestes,
Pois
não há sono no mundo.
..................................................
O
corpo é sombra das vestes
Que
encobrem teu ser profundo.
Vem
a noite, que é a morte,
E
a sombra acabou sem ser.
Vais
na noite só recorte,
Igual
a ti sem querer.
Mas
na Estalagem do Assombro
Tiram-te
os Anjos a capa:
Segues
sem capa no ombro,
Com
o pouco que te tapa.
Não
tens vestes, não tens nada:
Tens
só teu corpo, que és tu.
Por
fim, na funda Caverna,
Os
deuses despem-te mais,
Teu
corpo cessa, alma externa,
Mas
vês que são teus iguais.
..................................................
A
sombra das tuas vestes
Ficou
entre nós na Sorte.
Não
'stás morto, entre ciprestes.
....................................................
Neófito,
não há morte.
Então
Arcanjos da Estrada
Despem-te
e deixam-te nu.
Segundo
a teosofia, aos não iniciados, caberia no máximo atingir a consciência do 3º
corpo, nada podendo ser-lhes revelado a respeito dos demais corpos que, embora
igualmente nos revistam, somente seriam alcançados por uma consciência
evoluída, capaz de experimentar estados de alma mais profundos.
Numa
leitura esotérica, plenamente aceitável, a imagem poética parte do momento em
que o neófito, aguardando entre ciprestes (alegoria da vida e de nossa natureza
simples e terrena), é levado a sofrer gradativas mortes simbólicas,
correspondentes ao sucessivo despojamento de suas vestes, até que, atingindo
uma consciência mais profunda de si mesmo, possa reconhecer-se pleno entres
seus pares iniciados.
Desde
a morte física, anunciada nas estrofes de abertura, até a percepção última de
que a morte é, sobretudo uma ilusão, passa o neófito pela Estalagem do
Assombro, metáfora do transitório, onde os anjos retiram-lhe a capa emocional.
Aprofundando-se, são os Arcanjos, superiores aos anjos na hierarquia celeste,
que o deixam todo nu, isto é, despem-no do corpo mental, para que siga adiante,
envolto pelo corpo intuicional, que será retirado na Caverna. Lá os deuses o
obrigarão a despir-se mais, até ser-lhe possível, quando o corpo cessa,
enxergar sua alma externa, de natureza espiritual ou monádica. O poema culmina
quando o neófito se descobre iniciado, mesmo sem nunca ter deixado para trás o
ponto de partida, entre ciprestes, do qual partiu. Dá-se conta então, porque já
lhe caíram todas as vestes, de ser essencialmente divino, sem necessidade de
temer a morte.
Particularmente,
ao debruçar-me sobre o enigma da Obra pessoana, percebo que a leitura
existencialista que os críticos reiteradamente insistem em fazer dos
heterônimos todos, e particularmente do Cancioneiro, tal qual o gradativo
despojar das vestes, fica muito aquém do que se pode vislumbrar por uma
perspectiva esotérica, e não ultrapassa muitas vezes sequer a porta da
Estalagem do Assombro. Esta, se nos assombra, cumpre fazê-lo porque a dimensão
da poesia pessoana não cabe na palma da mão acadêmica. É preciso ter olhos
iniciados para perscrutar o transcendente, elemento esse de verdades que Pessoa
enuncia por seus paradoxos, e que intencionalmente deixa que escapem pelas
frestas da imponderabilidade poética.
"Desejo
ser um criador de mitos", exprimiu-se certa vez, "que é o mistério
mais alto que pode obrar alguém da humanidade". Pessoa o conseguiu;
curvo-me, pois, diante da complexidade mitológica dos heterônimos, que têm
realidade tanto quanto os deuses gregos. Neles se projeta a alma plural de
Pessoa, a refratar sua identidade última, comum a todas as pessoas.
"Porque há um mistério maior que Deus em tudo", e eu sou incapaz de
compreendê-lo, embora os heterônimos nos falem sempre disso.
Ademais,
nunca saberei outras coisas, nem mesmo sei o que o amanhã irá trazer...
(*)
Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento
Publicado
na Revista Planeta nº 381 / junho 2004
www.paulourban.com.br
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