Da redação
Na manhã de 13 de maio
de 2025, o Uruguai e o mundo se despediram de José “Pepe” Mujica, uma das
figuras mais singulares e admiradas da política latino-americana contemporânea.
Aos 89 anos, o ex-presidente uruguaio faleceu, encerrando uma trajetória marcada
por coerência, coragem, humildade e uma obstinada defesa da liberdade.
De guerrilheiro a
presidente
Mujica nasceu em
Montevidéu e, ainda jovem, foi militante do tradicional Partido Nacional.
Porém, na década de 1960, influenciado pelo marxismo e pelo ideal
revolucionário da Revolução Cubana, integrou a fundação do Movimento de
Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T), uma guerrilha urbana de esquerda que
combateu a desigualdade por meio de ações armadas.
A repressão viria com
força. Mujica foi capturado quatro vezes, baleado com seis tiros, e sobreviveu
a quase 14 anos de cárcere sob tortura, isolamento extremo e ameaça de
execução. Foi um dos “nove reféns” dos militares durante a ditadura uruguaia,
libertado apenas com a anistia de 1985. “Esses anos de solidão foram os que
mais me ensinaram”, declarou mais tarde.
O político camponês
Após a
redemocratização, Mujica trocou a arma pelo microfone e ingressou na política
institucional pela Frente Ampla, coalizão de esquerda que reunia
ex-guerrilheiros e progressistas. Foi eleito deputado, depois senador, e chegou
a ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca em 2005. Cinco anos depois,
venceria as eleições presidenciais com quase 53% dos votos, governando o
Uruguai de 2010 a 2015.
Mas o que mais cativou
o mundo não foram apenas suas decisões políticas, mas seu estilo de vida.
Mujica recusou o palácio presidencial, preferindo viver com sua esposa, Lucía
Topolansky, em sua chácara modesta nos arredores de Montevidéu, sem luxo, sem empregados
e dirigindo um Fusca 1987. Doava a maior parte de seu salário e cultivava
flores.
Ao rejeitar o rótulo de
“presidente mais pobre do mundo”, afirmou: “Pobres são os que precisam demais.
Eu vivo com pouco. Isso é ser livre.”
Reformas ousadas,
críticas duras
Durante seu mandato,
Mujica governou com ousadia pragmática. Legalizou o aborto, reconheceu o
casamento entre pessoas do mesmo sexo e transformou o Uruguai no primeiro país
do mundo a legalizar e regular o comércio de maconha. Embora tenha afirmado
nunca ter fumado cannabis, disse que a guerra às drogas havia fracassado e que
o Estado precisava retomar o controle do mercado.
Suas reformas lhe
renderam admiração internacional. Foi apontado pela revista Time como
uma das 100 pessoas mais influentes de 2013, e o Uruguai foi nomeado “país do
ano” pela revista The Economist. O escritor liberal Mario Vargas Llosa
o elogiou, e sua fama alcançou países distantes como Irã, Indonésia e
Azerbaijão.
Contudo, nem tudo foram
flores. Internamente, Mujica enfrentou críticas por aumentar os gastos públicos
e não conseguir resolver os problemas estruturais da educação. Ao deixar o
cargo, admitiu: “Minha maior dívida com o país ainda é a pobreza. Mas a realidade
é teimosa.”
Filosofia de vida
O auge da popularidade
de Mujica veio com seu discurso na Rio+20, em 2012, no Brasil. Em poucas
palavras, questionou o consumismo e defendeu a felicidade simples e o amor
sobre a terra. O vídeo viralizou nas redes, apesar de Mujica nem sequer
usá-las.
“Desenvolvimento não
pode ser contra a felicidade. Tem que ser a favor do amor, da amizade, de
cuidar dos filhos”, disse. Foi um sopro ético e poético em um cenário político
cada vez mais cínico.
Com sua cadela de três
patas, Manuela, ao lado, Mujica recebia jornalistas do mundo inteiro em sua
casa. Falava do passado com franqueza e da morte com serenidade: “É preciso
aceitá-la como os bichos do mato. O mundo continuará girando.”
O legado de Pepe
O símbolo de seu
governo talvez tenha sido mesmo o velho Fusca azul — recusou uma oferta
milionária de um sheik árabe por ele. Esse gesto resume o espírito de Mujica:
fidelidade aos próprios valores, desdém pelo luxo e compromisso com a vida
real.
José Mujica partiu como
viveu: de maneira simples, deixando um legado que transcende ideologias. Ele
mostrou que a política pode, sim, estar a serviço da ética, da liberdade e da
compaixão — e que o poder não precisa corromper.
Foi uma ovelha negra no
poder. E o mundo, que se surpreendeu com sua normalidade, agora se curva diante
de sua grandeza.
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