Os maçons comprometem-se também a não
divulgar o teor concreto dos trabalhos de uma reunião, ritualmente realizada,
de Loja. À primeira vista, parece excessivo. Sobretudo, tendo-se em conta que,
de cada reunião, é elaborada uma ata que, depois de aprovada, é conservada na
documentação e no arquivo da Loja. Por essa ata se alcança que assuntos foram
tratados na reunião, que deliberações foram tomadas. E uma ata existe para ser
consultada – senão, para quê fazê-la? Independentemente da delicadeza dos
assuntos tratados, a ata é elaborada e preservada. Ainda há pouco tempo foi
publicada neste blogue uma ata que registou os trabalhos da sessão de 18 de
setembro de 1835 da Loja brasileira Philantropia e Liberdade. E essa ata
registou, nada mais, nada menos, do que a preparação e planificação de um
movimento revolucionário, a Revolução Farroupilha!
Porquê então guardar sigilo sobre os sucessos
de uma reunião, ao mesmo tempo que se regista, e se guarda escrupulosamente
esse registo, o que se passou, elaborando-se uma ata formal? Se é certo que o
acervo documental constituído pelas atas das reuniões das Lojas maçónicas pode
constituir e constitui precioso material de investigação histórica, nem sequer
é esse o principal objetivo do registo em ata. Como acima escrevi, uma ata
serve para ser consultada. Cem anos depois ou dois dias depois…
Esta aparente incongruência esclarece-se se
tivermos a noção de que uma Loja maçónica é uma organização – que deve registar
os seus eventos e deliberações mediante atas, até em obediência às leis civis e
em cumprimento dos bons costumes sociais -, mas uma organização com uma
característica bem distintiva: é uma fraternidade. Enquanto fraternidade, cultiva
e desenvolve especialmente as relações de confiança mútua entre os seus
elementos, em estrito espírito de igualdade, sem prejuízo dos graus e
qualidades de cada um e dos particulares deveres e meios que cada grau ou
qualidade confira a quem os detém.
Enquanto organização, uma Loja maçónica
cumpre as regras civis e, portanto regista quem esteve em cada reunião, o que
se tratou nela, o que ficou decidido. E guarda e preserva esse registo, que, a
qualquer momento, pode ser necessário nos mesmos termos em que qualquer ata de
qualquer reunião de qualquer associação ou sociedade pode ser necessária.
Enquanto grupo fraternal, procura-se que cada
elemento se sinta, no interior do grupo, completa e absolutamente livre de
expressar as suas ideias, opiniões, projetos, preocupações, sem
constrangimentos de qualquer espécie. O espaço de uma Loja em reunião ritual é
um espaço em que todos e cada um podem baixar completamente as suas defesas e
guardas, em que não necessitam de manter a sua “máscara social”, em que todos e
cada um podem ser e comportar-se e aparecer como realmente todos e cada um são,
com suas forças e fraquezas, virtudes e defeitos. Porque, naquele espaço, todos
e cada um sabem que devem aos demais a mesma tolerância que dos demais recebem.
Porque todos e cada um sabem que todas as opiniões, ideias, contribuições, são
analisadas e consideradas pelo seu valor intrínseco, sem argumentos ad hominem,
sem acrescentar ou retirar valia à opinião expressa em função de quem a
expressa.
Enquanto grupo fraternal cultiva-se a
absoluta confiança mútua, a cooperação, o auxílio a todos na medida das
possibilidades de cada um. Procura criar-se um laço forte e duradouro entre
todos. Que por isso se consideram Irmãos. Ao criar-se um laço desta natureza,
está-se a criar um espaço onde a crítica é aceite, porque a aceitação existe
ainda que haja lugar a crítica. Preserva-se um espaço de cumplicidade imensa,
em que cada um está à vontade junto dos demais, porque confia nos demais como
nele mesmo.
Num espaço assim, de Fraternidade, pode
desabrochar sem peias a Liberdade. A Liberdade de opinar, de arriscar testar
uma ideia, sem medo de que ela seja apoucada por disparatada. Se o for, assim
será considerada. Mas isso não diminui quem a teve. Porque se sabe que ela só
foi expressa porque se estava à vontade e porque é em espaços assim que
livremente se pode testar a real valia de ideias, opiniões, propósitos. E
aperfeiçoar. E limar arestas. E – quantas vezes! – transformar uma balbuciante
e hesitante ideia num projeto sólido e com mérito, através do contributo de
todos. Um espaço assim é potencialmente um espaço de criatividade e cooperação
sem paralelo – porque ninguém teme o juízo, ou a troça ou o apoucamento dos
demais. Porque todos sabem que ninguém tem só excelentes ideias, que só expondo
todas – as péssimas, as sofríveis, as regulares, as boazinhas, enfim, todas – é
possível peneirar delas as que têm efetiva valia. Porque todos sabem que um bom
projeto só raramente é produto do valor de apenas um qualquer iluminado, antes
resulta da concatenação de ideias, que se acumulam e organizam e dão forma,
muitas vezes diferente no final do que fora o lampejo inicial.
Num espaço assim não se tem medo de ser
ridicularizado, apoucado, magoado. Mesmo que se use o direito ao disparate. Num
espaço assim, sabe-se que o juízo sobre o valor de cada um não depende de uma
excelente ou uma péssima ideia, antes resulta do Todo que cada um é e que os
demais vão conhecendo, cuja evolução vão constatando.
Um espaço assim é um espaço de intimidade
intelectual sem paralelo. E só subsiste porque blindado numa confiança mútua
absoluta. O que se diz ali, fica ali. Seja a ideia do século, seja o mais
profundo disparate. Quer uma, quer outro, são ali vistos na correta perspectiva,
de procura de contribuição para a melhor decisão do grupo, de experimentação,
de sugestão, sem reservas, sem cuidados, sem temores de ridículo ou de crítica.
Um espaço assim propicia a mais livre da
Livre Expressão do Pensamento. Porque livre da necessidade da pior das
censuras, a autocensura. Um espaço assim, baseado na confiança, na
Fraternidade, só pode subsistir se todos e cada um souberem que o à vontade em
que se expressam não é traído por juízos exteriores feitos por quem, descontextualizando
o paradigma em que as ideias são expostas, possa vir a apoucar a ideia, o
pensamento, a opinião.
É para preservar esse espaço intimista de
Liberdade que se preserva o que de concreto se passa numa reunião maçónica.
Porque cá fora julga-se segundo os critérios cá de fora, não se atendendo às
condições que se criam para que todas as contribuições sejam bem-vindas. É
preciso garantir que todos e cada um possam, no decorrer de uma reunião ritual
de Loja, expressar sem quaisquer constrangimentos, de qualquer natureza, as
suas ideias e convicções e opiniões. Para que essa Liberdade absoluta exista,
mister é que todos e cada um saibam que o que se passa em Loja fica em Loja. E
portanto, cada um guarda cuidadosamente para si o que em Loja se passou. Quem quiser
saber e tenha o direito a saber… consulte a ata!
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