A MAÇONARIA RUSSA

Por: EUGENIO TSCHELAKOW*
O czar Alexandre I

O czar Alexandre I, maçom, havendo liderado a heroica gesta empreendida contra o seu irmão maçônico Napoleão I,1 a quem derrotou com o exército conduzido pelo marechal de campo Mikhail Kutuzov, também eminente franco-maçom, com base em um relatório sobre as atividades dos maçons russos elaborado pelo tenente general e senador Igor Kushelev (Grão-Mestre Adjunto da Grande Loja Maçônica Ástrea), decidiu proibir a Maçonaria na Rússia mediante o “ukase”2 de 1° de agosto de 1822, perante a surpresa geral de todo o mundo.

O que foi que aconteceu até lá?


A maçonaria contemporânea nasceu no dia de São João (24 de junho) de 1717 no salão de refeições da Taberna O Ganso Grelhado instalado no primeiro andar da Catedral de São Paulo em Londres, quando quatro Lojas decidiram vir a público para constituir a Grande Loja de Londres, anos depois da Inglaterra.

Esta matéria está dedicada à memória de René Guénon (1886-1951)

Vamos destacar algumas caraterísticas desse processo, já que se refletiriam posteriormente no desenvolvimento da maçonaria russa.

a) A Ordem (Instituição, Ciência ou Sociedade) como também é conhecida a Maçonaria entre os maçons, obviamente já existia antes de 1717. Assim, alguns historiadores afirmam que o imperador russo Pedro I “O Grande” foi iniciado na maçonaria, antes dessa data, pelo arquiteto Christopher Wren,3 restaurador da citada Catedral londrinense. Outros, dizem que o seu ingresso foi num navio militar inglês, o que era muito comum na época. Conforme afirma o escritor inglês Jasper Ridley (que não é maçom) Pedro I, após a sua volta a Rússia em 1698, mandou o seu ministro de confiança, o suíço François Lefort, que fundasse a primeira loja maçônica russa em São Petesburgo e que se fizesse Mestre dela.4

b) As Constituições Maçônicas de 1723, redigidas pelo reverendo James Anderson e aprovadas pela Grande Loja da Inglaterra, estabeleceram as normas e diretrizes da Instituição que vigoram ainda hoje, quais são:

– “Um maçom nunca será um ateu estúpido, nem tampouco um libertino irreligioso”. Consequentemente deve acreditar em Deus e na imortalidade da alma.5 A maçonaria russa sempre foi, e atualmente também o é, profundamente religiosa, como prova o fato de que o metropolita Filareto, certamente a personalidade moral, intelectual e espiritual mais importante que tenha dado o alto clero russo, militou ativamente na Ordem, como veremos mais adiante.

– “As discussões de ordem religiosa e política estão rigorosamente proibidas em Loja… Um maçom nunca deverá se envolver em motins e conspirações contra a paz e bem-estar das nações”. Desde o início, a Grande Loja da Inglaterra foi dirigida pelo mais alto nível da Coroa Britânica, fato que se mantém até os nossos dias, sendo o atual Grão-Mestre o Duque de Kent. Este exemplo se repassaria para a toda a aristocracia europeia, como por exemplo: o rei da Prússia Frederico II O Grande, considerado Grão-Mestre e Protetor universal da Maçonaria; o imperador do Brasil Dom Pedro I; o rei da Suécia quem, até hoje, é o presidente da Maçonaria Sueca; Napoleão I e todos os seus irmãos; Fernando II rei do Portugal; Leopoldo I rei da Bélgica; os reis da Itália Vítor Manuel II e Vítor Manuel III; Estanislao Poniatovsky rei da Polônia; e outros. Escreve Jean Palou que existiriam evidências de que o rei Luís XVI (guilhotinado durante a Revolução Francesa) e seus irmãos, futuros reis Carlos X e Luís XVIII foram recebidos franco-maçons na Loja “Les Frères Unis”, constituída “ad-hoc” em Versalhes.

No continente americano, sem nobres, porém ocupando o mais alto nível sócio econômico e político, destacados maçons tais quais George Washington, Benjamin Franklin, Francisco Miranda, Bolívar, San Martin, O’ Higgins, Artigas, José Bonifácio de Andrade, Gonçalves Ledo, Padre Hidalgo, Benito Juarez e José Martí, participaram ativamente da construção dos seus países. A Rússia não podia ficar à parte dessa tendência e foi assim como a maioria das elites de São Petesburgo, Kiev e Moscou participaram da Ordem. O historiador Nicolai Riasanovsky, citado por Richard L. Rhoda6 afirma que durante o reinado de Catarina II “A Grande” chegou-se aos 2.500 membros repartidos em mais de cem lojas de todo o país. Conforme a revista alemã “O Globo” existiam 145 lojas maçônicas no ano 1787, o qual colocava a Rússia dentre as principais potências maçônicas do mundo na época.

– “As Lojas estarão exclusivamente constituídas por homens”. Desde o início do seu reinado Catarina II, que governou Rússia por 34 anos (1762-1796), mantinha uma ativa correspondência com Voltaire e se entusiasmava com os princípios pedagógicos de Rousseau, consentiu o crescimento da maçonaria. Todavia, vários fatos perturbaram esse relacionamento: a aberta simpatia pela Ordem manifestada pelo seu marido e rival Pedro III; o ingresso em 1777 na Instituição -por convite do rei da Suécia Gustavo III – do seu filho e inimigo político o Grande Duque Paulo; a influencia na maçonaria do seu outro inimigo político o rei Frederico “O Grande”; o desmascaramento do pseudomaçom e charlatão Cagliostro numa sessão espírita realizada nos salões do príncipe Gagarin – o que motivou a Catarina escrever três comedias satíricas: “O xamã siberiano”, “O fabulador” e “O alucinado”.7 e finalmente, as maliciosas acusações do abade Barruel no sentido de que a maçonaria teria realizado a Revolução Francesa (o que é absolutamente falso, conforme Castellani, Assis Carvalho, Palou e outros), influenciaram negativamente no ânimo da imperatriz que, a princípio não proibiu os trabalhos nas Lojas, mas deu a entender aos nobres que já não aprovava que pertencessem a elas.

Porém, o que mais incomodava a Catarina II era que não podia ser membro da Ordem pela sua condição de mulher; fato que também desgostava as demais mulheres importantes da época. Anos mais tarde, a esposa de Napoleão I, Josefina, resolveu o dilema filiando-se a uma Loja de Adoção (de mulheres; considerada irregular pela Grande Loja da Inglaterra), chegando a presidir em 1805 a Loja Imperial de Franco-Cavaleiros, de Estrasburgo, cuja Grã-Mestra era a Madame de Dietrich, esposa do prefeito da cidade em cuja casa foi cantada a Marselhesa pela primeira vez em 1792. Por outro lado, o embaixador sueco na Rússia, Conde Stedingk, escreveu que “Catarina sentia uma feminina repulsão contra a maçonaria”.

c) Contrariamente ao que supõe a maioria das pessoas, a Maçonaria não é unívoca; isto quer dizer que existem diversas obediências maçônicas, muitas vezes enfrentando-se entre si e que praticam, por sua vez, distintos rituais durante os seus trabalhos em Loja. Estamos, pois, longe de uma única organização, com um único ritual e sob uma única liderança; por tanto não existe, nem nunca existiu um suposto governo maçônico universal.

Estas divisões na Ordem refletiram-se na Inglaterra da segunda metade do século XVIII quando coexistiam duas Potências igualmente regulares: a dos “Modernos” cujo Grão-Mestre era o Duque de Kent (quem mais tarde seria o pai da rainha Vitória) e a dos “Antigos”, a frente da qual estava o Duque de Sussex. Foi em 1813 quando os dois irmãos conseguiram unificar ambas as Obediências, ficando a frente o Duque de Sussex e ocupando o cargo até a sua morte em 1843. Na Rússia a principal influência foi o sistema inglês e o seu maior impulsor foi o senador e conselheiro particular da imperatriz, Ivan P. Yelaguin (1725-1794) que em 28 de fevereiro de 1772 foi eleito Grão-Mestre Provincial do Império Russo (sob os auspícios da Grande Loja da Inglaterra). O seu rival era o “Sistema Zinnendorf” ou sueco, que chegou à  Rússia via Berlim através de George Reichell, diretor da Escola Militar e que somente admitia nobres nas suas lojas. Já vimos que a este rito pertenceu o Grande Duque Paulo e teve muita repercussão pelo agregado (além dos três graus de Aprendiz, Companheiro e Mestre da denominada Maçonaria simbólica ou azul) dos chamados Graus Templários ou Cavaleirescos, de marcantes características místico cristãs.8Em 1776 ambas as Obediências se unificaram tomando o nome de Grande Loja Nacional. Deve-se levar em conta que no século XVIII cada um quis forjar o seu próprio sistema maçônico, desde logo incorporando sempre à Maçonaria simbólica (de unicamente três graus), como pode ver-se nos rituais herméticos, cabalísticos e filosóficos e nas Ordens de Cavalaria.9

Sem prejuízo do acima escrito sobre Pedro “O Grande”, está documentado que a Maçonaria na Rússia aparece em 1731 quando o capitão John Phillips é designado Grão-Mestre Provincial da Rússia pela Grande Loja de Inglaterra. Em 1740 o mesmo título é outorgado ao futuro marechal prussiano James Keith, quem começou a atrair para a Ordem a jovens oficiais das melhores famílias russas. Um papel de destaque tiveram o professor Johan Eugen Schwarz, diretor do Instituto Pedagógico da Universidade de São Petesburgo e Nicolai I. Novikov (1744-1816), fundador do jornalismo russo. Ambos homens eram muito ilustrados e não somente trabalharam ativamente a favor da maçonaria como também influíram poderosamente na vida intelectual da sociedade russa. Todavia, isto não impediu que fosse ordenada a prisão de Novikov, o confisco dos bens de Mikhail Kutuzov e a clausura da atividade maçônica em 1794 por ordem imperial. Quando o czar Paulo I chegou ao poder em 1796, liberou a Novikov e outros maçons, porém oficialmente não revogou a proibição, talvez porque ele tinha se proclamado em 16 de dezembro de 1798 Grão-Mestre da Ordem dos Cavaleiros de Malta, uma ordem que era rival dos altos graus maçônicos Templários. A maçonaria foi autorizada novamente pelo czar Alexandre I em 1805 por influencia de Ivan Boeber, membro da Academia Imperial de Ciências. Segundo Jasper Ridley, Alexandre I teria dito a Boeber: “O que me conta a respeito dessa Instituição está me sugerindo que não somente outorgue a minha proteção como que inclusive eu próprio deveria solicitar ser admitido entre os franco-maçons”.

Daí em mais, novamente se fundaram numerosas lojas nas quais ingressaram o Grande Duque Constantino (irmão de Alexandre I), o conde Estanislao Potocki, o conde Ivan Vorontzov (Venerável Mestre da Loja do Silêncio na qual também se iniciaram Sumarkov, o príncipe Alexandre de Württemberg, Alexandre Marischkin e outros membros da Corte). À Loja Palestina pertenceu Alexandre Ypsilanti, quem se destacou na luta contra os turcos pela libertação da Grécia. Também devem mencionar-se neste período o conde Roman Vorezov, tenente general Melissino, príncipe Nicolai Trubetzkoy, príncipe Gagarin, príncipe Dolgorouky, príncipe Golitzin, Nevitzky, Scherbatov, Mamonov e o príncipe Dashkov. O conde Alexandre Suvorov (1729-1800) herói militar que lutou na guerra contra os turcos, foi membro da Loja Aux Trois Etoiles de São Petesburgo e depois da Loja Zu den deir Kronen. O escritor e estadista Alexandre S. Griboyedov (1745-1813) foi membro da Loja Amigos Unidos em 1816. O herói das guerras contra Napoleão I, marechal de campo Mikhail I. Kutuzov (1745-1813) foi iniciado na Loja Zu den deir Schusseln (de Ratisbona); logo foi membro da Loja Trois Drapeux (de Moscou) e depois se filioo à Loja Dying Sphinx (de São Petesburgo), alcançando o sétimo grau do sistema maçônico sueco. Também deve citar-se o famoso compositor Dimitry S. Bortnyansky (1751-1825) autor de muitas músicas tanto religiosas quanto maçônicas.10

Em 1810 o Ministério da Polícia exigiu aos dirigentes da Maçonaria uma cópia das Constituições e rituais. Em 1812, após uma análise destes documentos, as autoridades constataram o alto patriotismo e o claro apoio a investidura do Imperador que professavam os maçons russos. No entanto, após a derrota de Napoleão I em 1814, 571 franco-maçons russos, incluindo 62 generais e 150 coronéis, confraternizaram maçônicamente com os seus irmãos franceses em Paris. Ao regressar a Rússia, segundo alguns autores, traziam consigo a semente contra o regime absolutista. O prestigioso investigador maçônico Boris Telepneff escreveu que existiam provas conclusivas de elementos perigosos infiltrados em algumas lojas russas.11 A mesma opinião teve o maçom Chefe da Polícia, IgorKushelev, quem recomendou que, ou as lojas deviam ficar sob controle do governo ou deviam ser fechadas. Como já fora referido, o czar optou por proibir a maçonaria, sentenciando –no meu particular entender e a título meramente especulativo- a sorte da monarquia russa um século depois, quando o comunismo tomou o poder em 1917 e assassinou a toda a Família Imperial. Esta idéia se baseia na seguinte tese: se a maçonaria não tivesse sido proscrita e, se em vez de assumir o reinado Nicolai I (o reacionário irmão de Alexandre I) o teria feito o maçom Constantino (o esposo da “Constituição”, como diziam os soldados) assumindo o caracter de protetor da Maçonaria Russa e estabelecendo uma monarquia constitucional, talvez a dinastia dos Romanov teria sido preservada e outro houvesse sido o destino do país.

A historiadora russa Tatiana Bakunin, citada por Jean-François Var e por Valerian Obolensky, reunindo provas documentais tratou de reconstruir a lista completa de membros da maçonaria russa desde os seus inícios até 1822. Ela estima o seu número em 4.000 ou 5.000 pessoas, tendo registrado documentalmente uma lista de 3.267 nomes, incluídos quatro metropolitas (prelados de metrópole), entre eles Filareto, dois arcebispos, cinco arciprestes e três arcimandritas (abades de mosteiro).

Em dezembro de 1825 teve lugar uma revolta contra as autoridades que depois seria conhecida como a “Revolução Dezembrista”. Alguns dezembristas eram maçons, como o coronel Batenkov, que foi deportado à Sibéria por 30 anos, porém a maioria não. Tal o caso do maior poeta russo Alexandre Pushkin, iniciado na Loja Oviedo em 4 de maio de 1821 sob o rito escocês.12 Todavia, os seus poemas lhe valeram o exílio, como o dedicado a Chaadaev, que finaliza dizendo: “And on the ruins of autocracy / Will inscribe our names”. É interessante salientar que esta Loja Oviedo não foi clausurada pelo “ukase” de Alexandre I porque se aceitou que a sua jurisdição pertencia à maçonaria da Romênia.

O czar Nicolai I confirmou, em 21 de abril de 1826, o decreto proibindo a franco-maçonaria, ficando restrita ao âmbito clerical e intelectual. Inicia-se para a maçonaria russa uma longa noite onde é muito difícil rastrear o funcionamento de lojas neste período, que está registrado pelo escritor Aléxis Pissensky (1821-1883) em seu romance “O Maçom”. Segundo Telepneff, sempre houve lojas em Kiev, Poltava, Odessa e outras cidades do interior.

Particularmente interessante resulta a postura do escritor Leon Tolstoi. Lembremos que em seu romance “Guerra e Paz” o conde Pierre Bezukhov é aceito na maçonaria, cuja cerimônia ritualística está descrita com todos os detalhes, sem por isso revelar qualquer segredo maçônico. O Venerável Mestre da Loja lê a Pierre umas palavras de boas-vindas, cuja parte principal diz: “Em nossos templos, não conhecemos outros graus salvo os que estão entre o vicio e a virtude. Cuida em não criar uma diferença que possa perturbar a igualdade. Socorre aos irmãos, quaisquer que eles sejam. Levanta o que cair e não alimenta jamais algum sentimento de cólera ou de ódio contra um irmão. Sê benevolente e afável; provoca em todos os corações o fogo da Virtude. Divide tua felicidade com teu próximo e que a inveja não perturbe jamais esse prazer puro. Perdoa a teu inimigo; não te vingues nunca, a não ser refazendo o bem.

Cumprindo assim a lei suprema, encontrarás os traços da grandeza antiga que tinhas perdido”. (Guerra e Paz, parte V cap. IV Ed. Ediouro, Rio de Janeiro). A época na qual se desenvolve esta história é nas vésperas das guerras contra Napoleão. Alguns autores dizem que Tolstoi, para descrever o ritual de iniciação, baseou-se nos documentos seqüestrados pela polícia quando da clausura das Lojas em 1822. Outros afirmam que ele mesmo foi maçom (como o seu parente conde general Alexandre Ostermann Tolstoi, que se sobressaiu na batalha de Borodino contra as tropas napoleônicas) e por isso pôde escrever tão detalhadamente sobre o assunto. Todavia, a pesar de que Tolstoi figure como ilustre maçom nas listas de algumas Lojas (como por exemplo, dos Estados Unidos), entendemos que não o foi. Nesse sentido, o historiador especializado na biografia de Tolstoi, Walter Moss, da Eastern Michigan University nos enviou uma correspondência via correio eletrônico dizendo que: “ No, (he was not a mason), but he was interested in it when he was writing War and Peace because freemasonry attracted many intellectuals in the 1805-1820 period when the novel is primarily set…and (Tolstoi) wrote to his wife when he was working on it in 1866 that the Masons were all imbeciles”.

Um capítulo especial merece o relacionamento da maçonaria russa com a Igreja. Nesse ponto, vamos seguir principalmente a opinião de Jean-François Var, historiador maçom e Diácono da Igreja Ortodoxa da França.13 Diz este autor que não há nem pode existir uma posição oficial, única e unânime da Igreja Ortodoxa perante a maçonaria como tampouco frente às demais questões colocadas no mundo, pois a Igreja Ortodoxa, diferentemente da Igreja Católica romana, não está constituída unitariamente. Qualquer definição dogmática deve provir de um concílio ecumênico e só foram realizados sete, entre os anos 325 e 787. Obviamente, neles nunca houve um pronunciamento sobre a maçonaria. Logo depois veio o cisma de 1054 que dividiu a Cristandade em um Oriente Ortodoxo e um Ocidente Católico. A Igreja Russa, subordinada a Constantinopla, ficou independente em 1448, declarando-se autocéfala e elegendo o seu primeiro metropolita: o de Moscou. Assim nasceu a idéia de que a “primeira Roma” era herética, a segunda (Constantinopla) tinha caído nas mãos dos turcos, então Deus havia suscitado uma “terceira Roma”: Moscou, e um novo imperador para defender a verdadeira Fé. Foi quando os príncipes moscovitas assumiram o título de “czar” (César em russo) e consideraram que tinham legítimos direitos a assumir como próprio o símbolo da Águia Bicéfala (tão caro ao simbolismo dos últimos altos graus do Rito Escocês Antigo e Aceito da Maçonaria).14 Em 1589 a Igreja se transformou em patriarcado e a Pentarquia Ortodoxa ficou assim constituída: Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Moscou. A maçonaria que se desenvolveu nos quatro primeiros territórios sofreu, na sua dupla condição de maçônica e cristã, a perseguição por parte da dominação turco-otomana. Na Ortodoxia Russa, ao contrário, achou um campo fértil para sua expansão, sobretudo a partir de 1776.

Constitui um fato de grande importância que Filareto pertencera a Maçonaria. Como metropolita de Moscou ocupava a sede mais elevada da Igreja Russa; teria sido Patriarca se esse titulo não houvesse sido suprimido por Pedro I. Ocupou o cargo brilhantemente durante 40 anos. Foi filólogo, especialista nos Padres da Igreja (sobretudo gregos), conhecedor da escola espiritual francesa do século XVIII, de Fénelon (prestigioso escritor e arcebispo católico de Cambrai) e renovara na Rússia os estudos eclesiásticos. Realizou a tradução da Bíblia para o idioma russo (de 1816 a 1820) patrocinado pela Sociedade Bíblica na qual colaboraram muitos maçons ilustres. Todo isto sugere que houve na Rússia uma verdadeira interação e quase uma simbiose entre a maçonaria e a religião, o melhor ainda, a Igreja mesma. E se, como vimos, a maçonaria foi proibida em duas ocasiões, foram por motivos políticos nos quais a Igreja não teve nada a ver. Infelizmente, em 1822 finalizou uma época excepcional que foi testemunha deste raro fenômeno: um movimento espiritual (a maçonaria) vindo do exterior tinha logrado que a alma nacional russa voltasse as suas raízes já quase esquecidas. Se existiu tal harmonia entre a Maçonaria e a Ortodoxia russas, talvez fosse pelo caráter místico dessa maçonaria e a que o próprio Cristianismo Ortodoxo seja místico por natureza.

Por estas razões as igrejas ortodoxas nunca condenaram, seja em conjunto, seja individualmente, a maçonaria. O Patriarca Atenágoras I foi maçom grau 33° diferenciando-se dos pontífices da Igreja Católica romana que sim o fizeram várias vezes desde que o Papa Clemente XII ditou a Bula “In eminenti” em 28 de abril de 1738 proibindo aos católicos se filiarem à maçonaria sob pena de excomunhão; norma do direito canônico que surpreendentemente continua vigorando em pleno século XXI conforme declaração do Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (ex Inquisição), Cardeal Joseph Ratzinger, ratificada pelo Papa João Paulo II em 26 de novembro de 1983, e nunca revogada até hoje.

Chegamos agora nos inícios do século XX. Em 1906 destacavam-se em São Petesburgo a Loja Estrela Polar e em Moscou a Loja Renovação. Esta maçonaria estava composta por intelectuais, burgueses, liberais, cientistas, escritores, militares, clérigos, alguns nobres, etc. Uma das lojas estava constituída unicamente por oficiais de idéias liberais e outra exclusivamente por deputados (KaDets). Antes da revolução bolchevique de 1917, existiam trinta Oficinas que logo depois desapareceram perseguidas pelo comunismo. Leon Trotsky chamou a maçonaria de “uma concepção ideológica burguesa contrária aos interesses da ditadura do proletariado que tende a estabelecer um Estado dentro do Estado”. Nesta mesma linha, o IV Congresso da Internacional Comunista declarou: “A Maçonaria é o engano mais infame que lhe faz ao proletariado uma burguesia inclinada para o radicalismo. Temos a necessidade de combati-a até o extremo”. Com efeito, a maçonaria russa foi exterminada totalmente durante a ditadura comunista.

E pensar que houve quem acreditasse que a maçonaria fosse a vanguarda internacional do bolchevismo! Nada mais errado: esse comunismo torturou e assassinou mais maçons do que todas a perseguições realizadas pela Inquisição contra membros da Ordem. O escritor Valerian Obolensky apresenta uma extensa lista de maçons russos que conseguiram fugir ao exterior após a revolução comunista,15 entre eles: príncipe Vladimir Obolensky; príncipe Vladimir Bariatinsk; Peter Bark (último Ministro da Fazenda do czar Nicolai II); Ossip Bernstein, maestro internacional de xadrez; príncipes Paul e Peter Dolgoroukov (executados no exterior por comunistas russos); Grande Duque Alexandre (Sandro) Romanov; Marc Chagall (artista); Alexandre Davidoff (descendente dos “dezembristas” Trubetzkoy e Davidoff); Alexandre Naumov (Ministro da Agricultura do czar Nicolai II); Kristof Kafián (músico, presenciou a clausura da ultima Loja russa em Paris em 1971; disse “estamos cansados”); príncipe Grigory Lvov; e outros. Resulta um paradoxo que hoje em dia os comunistas russos responsabilizem a maçonaria do colapso da antiga União Soviética, acusando a Gorbatchov e a Yeltsin de serem maçons.

Como todo o mundo sabe o comunismo implodiu no final dos anos oitenta e então, pouco a pouco, começaram a surgir as oficinas maçônicas nos países que tinham vivido sob a Cortina de Ferro. No dia de São João do ano 1995, no edifício do Sindicato de Professores de Moscou, sob os auspícios da Grande Loja Nacional da França, procedeu-se a reinstalação da Grande Loja da Rússia, após 173 anos de proibição governamental. Os maçons russos presentes eram cientistas, oficiais do Exercito e da Marinha, jornalistas, escritores, homens de negócios e acadêmicos, representando, como seus colegas ingleses em 1717 as quatro Lojas fundadoras: “Harmonia” e “Nova Ástrea” de Moscou; “Gamaioun” de São Petesburgo y “Lotus” de Voronezh. A “tenida” (em espanhol: reunião de maçons) foi presidida pelo Grão-Mestre da França Claude Charbounniaud e logo em seguida foi eleito Grão-Mestre Georgy Dergachov, pessoa muito ligado as autoridades da Igreja Ortodoxa Russa pela sua condição de Professor de Filosofia Religiosa da Universidade de Moscou.16 Como Grão Secretário foi eleito Vladimir Djangurian. A Grande Loja da Rússia é, com seus onze fusos horários, a maior jurisdição territorial maçônica do mundo e está reconhecida, entre outras, pelas Grandes Lojas de Portugal, Nova Iorque, Alemanha, Áustria, Hungria e França. Em 6 de julho de 1996 foi instalado em Moscou o Supremo Conselho de Soberanos Grandes Inspetores-Gerais do Grau 33° do Rito Escocês Antigo e Aceito, estando presentes os Soberanos Grandes Comendadores da Bélgica, Brasil, Turquia, Polônia, Romênia e Irã no exílio. Como primeiro Soberano Grande Comendador de Rússia foi instalado Vítor Kouznetsov, 33°.

Finalmente, no ano do ressurgimento da Ordem em Rússia, quem visitou a imponente Catedral de Kazan, com sua fachada similar a Basílica de São Pedro no Vaticano,17 pôde apreciar em seu interior uma sala destinada a exibição de objetos maçônicos. Eram mais de cem artigos entre livros, estandartes, malhetes e aventais. Nenhum lugar simboliza melhor a maçonaria russa do que a Catedral de Kazan: em sua cripta, o General Kutuzov, pai da Pátria, havendo servido lealmente ao seu Imperador, descansa no Oriente eterno junto as três Luzes que guiaram a sua vida: A Rússia, a Igreja e a Maçonaria.

NOTAS E BIBLIOGRAFIA

* Artigo revisado e corrigido pelo Ir.: ANTONIO AGUIAR DE SALES: Venerável Mestre da A.:R.:B.:L.:S.: LIBERDADE n. 1 da Grande Loja Maçônica da Bahia, Brasil.
1 Jean Palou, escritor e maçom, pertencente a corrente Tradicional do pensador metafísico René Guénon, em seu livro “A Franco-Maçonaria Simbólica e Iniciática”, Ed. Pensamento, São Paulo, conclui que Napoleão I fora iniciado na maçonaria quando era tenente de artilharia em Itália e teria pertencido à Loja egípcia de Hermes e também ao Rito Escocês Retificado da Obediência do Grande Oriente de França. Em contra, Jasper Ridley.
2 Ukase: decreto imperial em idioma russo. Por incrível coincidência, nesse mesmo ano de 1822 (25 de outubro) outro imperador maçom, o brasileiro Dom Pedro I quem, a pesar de ter o grau 33° e ser Grão Mestre do Grande Oriente Brasílico, também proibiu a maçonaria no seu país.
3 History of Russian Freemasonry, de Dennis Stocks, da Barron Barnett Lodge, em Casebook, documento publicado em Internet, junho de 1977; http://ripper.wildnet.co.uk/russianfm.html (novo url)
4 Los Masones, de Jasper Ridley, Ed. Vergara, Buenos Aires. A respeito de Alexandre I, este autor afirma que o czar foi nomeado Grão Mestre de honra da maçonaria da Polônia durante um banquete maçônico celebrado em Varsóvia em 1815. A Grande Loja da Rússia, na sua página em Internet (versão em russo) diz apenas que existem evidencias de que Alexandre I teria pertencido a Ordem.
5 As Constituições de Anderson e Pérolas Maçônicas V2, Ed. A Trolha, Londrina.
6 Russian Freemasonry: a new dawn, de Richard L. Rhoda, da Maine Lodge of Research AL 5981, documento publicado em Internet, junho de 1996; http://members.aol.com/houltonme/rus.htm
7 Los Masones ante la Historia, de Eugen Lennhoff, Ed. Diana, México.
8 John J. Robinson, que não é maçom, em seu livro Nascidos em sangue, afirma que a maçonaria é a continuação da Ordem dos Cavaleiros Templários.
9 “Los altos grados masónicos”, de René Guénon, revista La Gnose, Paris (1910), traduzida ao espanhol pela revista SYMBOLOS de Guatemala.
10 Grande Loja da Rússia, em Internet: http://freemasonry.narod.ru (novo url)
11 “Freemasonry in Russia”, de Boris Telepneff, revista Ars Quator Coronatorum, V 35, 1922, da Quator Coronati Lodge N° 2076 de Londres, citado por diversos autores.
12 “Masonería en clásicos rusos y alemanes”, revista Símbolo, Buenos Aires.
13 Masonería y Religión, de José Benimelli, Ed. Universidad Complutense de Madrid, Cap. “La Iglesia Ortodoxa y la Masonería” por Jean-François Var.
14 Conforme correspondência particular enviada por Eduardo Seleson, maçom 32º REAA
15 Russians in exile, de Valerian Obolensky, livro publicado em Internet, maio de 1997; http://www.geocities.com/SoHo/Studios/5254/dias13.html
16 “The Grand Lodge of Russia”, de Peters Waters, em Masonic Square, documento publicado em Internet, junho de 1996;
http://users.iol.it/fjit.bvg/glrussia.html
17 “La Masonería en Rusia”, de Max Grieben, revista Símbolo, Buenos Aires


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