Por Ir.'. João Anatalino
Maçonaria
e Cavalaria
A
interação entre a Maçonaria e as tradições cavalheirescas só começou a ser
aventada a partir do século XVIII, quando a Maçonaria se tornou uma corporação
aberta á influências estranhas á sua base operativa, que eram as antigas Lojas
dos pedreiros medievais. Sabe-se, aliás, que foram exatamente os autores maçons
que criaram a grande maioria das lendas e mistérios ligados aos cavaleiros
cruzados, especialmente aqueles referentes ás Ordens militares que foram
fundadas durante a presença dos cristãos na Terra Santa. E que foram eles,
também, que ligaram os Templários á Maçonaria, sugerindo ser a Maçonaria uma
espécie de herdeira das tradições daquela Ordem, dissolvida pelo Papa Clemente
V em 1312. Como os Templários, os Hospitalários e as demais Ordens de Cavalaria
interagiram com os maçons operativos e depois, por um processo de aculturação,
transmitiram suas tradições aos maçons modernos, é uma história que ainda não
foi contada, mas é possível formular algumas hipóteses, o que faremos no
decorrer deste nosso exercício semiótico. O que fica patente é que tal interação
ocorreu, porque a influência da cultura cavalheiresca transparece claramente
nos rituais maçônicos, e ainda sobrevive como um lastro importante dessa
cultura.
Essa
influência, no entanto, só é percebida a partir dos rituais praticados nos
chamados graus superiores, particularmente os graus capitulares e filosóficos.
Nas Lojas simbólicas ela só transparece, de forma bastante sutil, em alguns
atos litúrgicos da iniciação, como o ato de tocar com a espada o recipiendário
para recebê-lo como aprendiz maçom ou elevá-lo de grau, por exemplo. Isso se
explica pelo fato de que a antiga Maçonaria ─ que era uma corporação
associativa que congregava apenas os profissionais da construção civil ─ só praticava os graus simbólicos.
A
influência da tradição cavaleiresca na Maçonaria aparece principalmente nos
graus do Rito Escocês, embora possa ser identificado também na liturgia do Arco
Real e principalmente nos chamados Ritos Templários, que supostamente sofreriam
influência direta da tradição templária.
Não discutiremos aqui a composição litúrgica dos variados ritos, pois
foge do escopo do presente trabalho. Todavia, tendo em vista que o Rito Escocês
é a matriz da qual derivam a maioria dos ritos maçônicos, nele encontraremos
todos os elementos de informação necessários para mostrar, de forma bastante
clara, a larga influência que a tradição da cavalaria projeta na Maçonaria
moderna.
André
Michel de Ramsay
O
principal articulador da ligação entre a Cavalaria e a Maçonaria foi o
Cavaleiro André Michel de Ransay (1686 – 1743), nobre escocês, que num célebre
discurso pronunciado em 1738 em uma seção de iniciação em uma Loja (uns dizem
inglesa, outros francesa) lançou a ideia de que a Maçonaria tinha sido fundada
na Terra Santa, na época das cruzadas, por nobres cavaleiros que participaram
daquela epopeia. Esse discurso foi depois publicado e distribuído em várias
Lojas da Europa e tornou-se um dos maiores clássicos da literatura maçônica.
Fixou, definitivamente, a ideia que a Maçonaria mantinha uma estreita relação
histórica com a Cavalaria, especialmente aquela que se referia ás Ordens
militares fundadas pelos Cruzados para proteger as conquistas cristãs na Terra
Santa, ou seja, as Ordens do Templo (Os Templários), a Ordem do Hospital de São
João (Os Hospitalários) e os Cavaleiros Teutônicos, Ordem militar que
congregava cavaleiros principalmente alemães, e do norte e centro da Europa
(Polônia, Suécia, Dinamarca, Ucrânia etc.)
“No
tempo das Cruzadas na Palestina”, escreveu Ramsay, “muitos príncipes, senhores
e cidadãos se associaram e prometeram restaurar o templo dos cristãos na Terra
Santa e se empregar para fazer retornar sua arquitetura à primeira instituição;
Eles concordaram sobre vários antigos sinais e palavras simbólicas extraídas da
religião, para reconhecer uns aos outros entre os infiéis e os sarracenos.
Comunicavam-se esses sinais e palavras apenas a aqueles que prometiam
solenemente, e muitas vezes até mesmo diante do altar, nunca os revelar. Esta
promessa sagrada não era, portanto, um juramento execrável, como tem sido
chamado, mas um laço respeitável para unir os cristãos de todas as
nacionalidades em uma mesma Fraternidade.”
Evidentemente,
não há nenhuma base histórica para confirmar essa informação de Ramsay. Essa
pressuposição foi colocada a partir de algumas relações ─ essas, sim
comprovadamente verdadeiras ─ de que as Ordens de Cavalaria fundadas pelos
cruzados, especialmente os Templários e os Hospitalários, mantinham em seus
quadros muitos pedreiros profissionais para construírem seus edifícios, de
acordo com os propósitos de cada uma delas. É verdade, também, que a
arquitetura templária, principalmente, desenvolveu um estilo próprio e se
tornou um importante ramo da tradição arquitetônica medieval e nela, a mística
que se chumbou a essa Irmandade em particular, acabou servindo ao propósito dos
maçons como Ramsay, que procuravam criar para sua Irmandade uma aura de
nobreza. O elo entre a arquitetura templária e hospitalária, e a tradição
maçônica herdada da arquitetura medieval, foi assim estabelecido, muito mais
como um recurso de imaginação do que propriamente uma verdade histórica.
“Algum
tempo depois,” prossegue Ransay “nossa
Ordem formou uma união íntima com os Cavaleiros de São João de Jerusalém. A
partir daquele momento, nossas Lojas assumiram o nome de Lojas de São João.
Esta união se fez de acordo com o exemplo dos israelitas quando eles ergueram o
segundo templo. Enquanto lidavam com a trolha e a argamassa com uma mão, na
outra eles tinham prontos, a espada e o escudo. Nossa Ordem, portanto, não deve
ser considerada uma renovação das Bacanais, mas uma ordem moral, fundada em
tempos imemoriais, e renovada na Terra Santa por nossos antepassados, para
lembrar a memória das mais sublimes verdades em meio aos prazeres da
Sociedade.”
Nessa
parte do discurso Ramsay procurou, ao mesmo tempo, construir o elo entre as
Ordens de Cavalaria cruzadas e descontruir um mito que começava a ser divulgado
na época, principalmente pela Igreja. Esse mito era o de que a Maçonaria
agasalhava ideias e costumes pagãos, especialmente inspirados nos antigos
festivais romanos dedicados ao deus Baco, as famosas Bacanais. Tais eram,
segundo os detratores da Maçonaria, os banquetes realizados pelas Lojas
maçônicas, nos quais se praticavam as mais infames orgias e ritos. Para
combater essa campanha de difamação feita pelos inimigos da Maçonaria, Ramsay
criou outro mito: a que a Maçonaria era, nada mais nada menos, uma continuação
dessas Ordens.
Dava, com isso, não só uma origem nobre
para a Maçonaria, mas também criava uma tradição fundada sobre o nobre
propósito dos Hospitalários (cavaleiros que se dedicavam ao bem estar dos
cristãos na Terra Santa). Também estabelecia uma ligação desta com a própria
antiguidade, evocando o episódio da reconstrução de Jerusalém por Zorobabel e
os israelitas repatriados da Babilônia. Nascia, dessa forma, a Maçonaria tal
como hoje a conhecemos, pois a partir da idéia da reconstrução do Templo de
Jerusalém, levado a cabo pelo Aterzata Zorobabel, os cavaleiros cruzados, os
pedreiros medievais e os novos cavaleiros formados pelo ideal do Iluminismo e
na virtude da Reforma Protestante, encontravam um ponto de contato. E a partir
daí, criava-se esse organismo híbrido, misto de religião e escola de
pensamento, que se tornou a Maçonaria moderna.
“Os
Reis, príncipes e senhores, voltando da Palestina, fundaram várias lojas em
seus Estados. Desde o tempo das últimas Cruzadas, já vimos várias Lojas
erguidas na Alemanha, na Itália, na Espanha e na França, e daí para a Escócia,
devido à estreita aliança entre escoceses e franceses. James, Lord Steward da
Escócia foi Grão-Mestre de uma Loja estabelecida em Killinwing, no oeste da
Escócia, no ano 1274, pouco depois da morte de Alexandre III, rei da Escócia, e
um ano antes de John Baliol ter subido ao trono. Este senhor recebeu os maçons
em sua Loja, os condes de Gloucester e Ulster, um Inglês e o outro irlandês.”
Assim
Ramsay criou também uma História para a Maçonaria. É visível a sua intenção de
ligar a Maçonaria á Guarda Escocesa, organização militar criada pelos reis
escoceses da dinastia Stuart, que no começo da Idade Moderna assumiu também o
trono inglês. Esses reis, cuja origem se situa em Robert Bruce, o rei que
libertou a Escócia do domínio inglês, mantivera uma estreita relação com os
Templários, tendo mesmo dado asilo e proteção a vários cavaleiros templários
por ocasião da dissolução da Ordem e do processo que a Inquisição moveu contra
eles. A essa dinastia pertencia o Príncipe Carlos, jovem pretendente do trono inglês,
que estava, nessa época, exilado na França em consequência da revolução que
apeou sua família do trono.
Ramsay
era partidário dos Stuarts, tendo mesmo lutado pela reintegração desse príncipe
no trono inglês. A Guarda Escocesa era uma instituição muito conhecida e
respeitada na Europa desde o fim da Idade Média e servira a muitos reis,
prestando-lhes serviços de segurança, assessoria militar e outros trabalhos do
gênero. Sua tradição militar e a aura de cavaleiros que mantinham, semelhante a
outras organizações do gênero existentes nos reinos europeus, como a Guarda
Suíça, que servia ao Papa, e os famosos Mosqueteiros do rei da França, eram
famosas. Assim, nada mais apropriado do que ligar a nascente Maçonaria, como
instituição, á famosa Guarda Escocesa, fazendo desta uma de suas fontes de
tradição.
Por
isso é que Ramsay diz em seu discurso: “Pouco a pouco, nossas lojas e nossas
solenidades foram negligenciados na maioria dos lugares. Por isso é que assim
muitos historiadores, os da Grã-Bretanha, são os únicos que falam de nossa
ordem. No entanto, ela se manteve em seu esplendor entre os escoceses, a quem
os reis (da França) confiaram durante muitos séculos, a guarda de suas pessoas
sagradas.”
Isso
justificava o conjunto de ritos que ele, a partir de então, iria estabelecer
para o conjunto da Maçonaria, conjunto esse que veio a ser conhecido como REAA
– Rito Escocês Antigo e Aceito. Ou seja, uma espécie de ritualística militar,
combinada com tradições cavaleirescas e motivos religiosos, tudo entremeado com
lendas e símbolos pinçados da arquitetura. E para dar a essa mixórdia toda um
contexto de doutrina, enxertou-se nos rituais os ideais pregados pela religião
do momento entre os intelectuais: O Iluminismo.
“Após
os deploráveis acontecimentos das Cruzadas,” prossegue o inefável Cavaleiro
Ramsay, “o perecimento dos exércitos cristãos e o triunfo do Bendocdar, sultão
do Egito, durante a oitava e última Cruzada, o Grande Príncipe Edward, filho de
Henrique III, rei da Inglaterra, vendo que não havia mais segurança para os
seus irmão na Terra Santa, de onde as tropas cristãs estava se retirando, os
trouxe de volta, todos, e essa colônia de irmãos foi estabelecida na
Inglaterra. Como este príncipe tinha todas as qualidade heroicas, ele amava as
belas artes, declarou-se protetor da nossa Ordem, concedendo-lhe novos
privilégios e, em seguida, os membros desta fraternidade assumiram o nome de
maçons-livres, a exemplo de seus antepassados. Desde aquela época, a
Grã-Bretanha foi a sede da nossa Ordem, a conservadora das nossas leis e
depositária de nossos Segredos. As fatais discórdias de Religião que
envergonharam e rasgaram a Europa no século XVI, fizeram degenerar a Ordem da
Nobreza de sua origem. Mudaram-se, disfarçaram-se, suprimiram-se muitos dos
nossos ritos e costumes que eram contrárias aos preconceitos da época.”
Os
“maçons aceitos”
Essa
história, provavelmente ele inventou para justificar o nascimento da Maçonaria
moderna na Inglaterra. Evidentemente, tudo isso saiu da sua imaginação, pois
não existe qualquer prova de que semelhante Irmandade tenha sequer existido,
seja na Inglaterra ou em qualquer outro país. O que o imaginoso cavalheiro
inglês fez, no caso, foi evocar o costume das Lojas de pedreiros operativos,
praticado desde os tempos medievais, de colocar-se sobre a proteção de um
potentado qualquer, fosse ele um príncipe, um bispo, um barão, para que estes
os mantivessem livres de impostos e das restrições que o sistema feudal impunha
a todos os prestadores de serviços da época. Essa sim, era uma prática muito em
voga na época, sendo os Templários e os Hospitalários, eles mesmos mantenedores
de grupos desses profissionais, que estavam a serviço da Ordem. Essa prática
acentuou-se depois da extinção dos Templários, sendo a Inquisição um dos
principais motivos dessa prática, já que o costume de perseguir qualquer
corporação que criasse institutos e ritos próprios despertava a desconfiança da
Igreja. Essa perseguição chegou ao auge na época da Reforma Protestante, razão
pela qual eram muitas as corporações que procuravam a proteção de autoridades,
fazendo inclusive que muitos deles se tornassem seus patronos, e muitas vezes,
até membros da própria corporação. Essa é a origem histórica dos chamados
“maçons aceitos”.
“Brincando
de cavaleiros”
A
grande verdade de tudo isso é que, na época de Ramsay, a Cavalaria, como
instituição era coisa morta. Já há muito que havia desaparecido. O próprio
instituto da nobreza, como classe, era um fator que começava a ser apontado
como responsável pela manutenção de um estado de coisas que fazia da Europa o
palco de sangrentas guerras. Estas tinham na religião a sua desculpa, mas no
fundo, eram o resultado de um sistema social injusto e degradante, que mantinha
a grande maioria dos indivíduos na miséria e na ignorância extrema, para que
uma pequena minoria usufruísse de uma vida ociosa e promiscua. Contra esse
estado de coisas se insurgiu a moral dos Iluministas. E a eles se atrelaram os
intelectuais londrinos da recém fundada Real Sociedade da Inglaterra, destacado
clube de cavalheiros ingleses e escoceses, oriundos, muitos deles, da velha
nobreza, agora sem títulos, mas ainda conservando, no sangue, nos costumes e
principalmente, no ego, os ideais, as tradições e o romantismo da velha Cavalaria.
E assim nasceu a Maçonaria moderna, essa Fraternidade que, segundo dela disse
Napoleão Bonaparte (que foi iniciado maçom), era constituída por um “grupo de
distintos senhores que gostam de brincar de cavaleiros.”
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Do Livro "Conhecendo a Arte Real- Madras,
2009
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