Por Ir.'. João Anatalino
A questão do racionalismo
A partir do século XVII uma
cultura orientada para o científico e para o lógico invadiu as consciências de
tal modo, que nada mais podia ser sustentado no terreno do pensamento e da
experiência social, se não fosse passível de ser reduzida á uma fórmula
matemática ou á uma proposta epistemológica que a mente humana pudesse entender
e explicar racionalmente. Tudo tinha que explicado com estrita clareza, ordem,
concisão e exatidão.
Essa cultura pelo exato, pelo
matematicamente provável, pelo passível de repetição em laboratórios, expulsou
dos meios intelectuais a antiga tradição esotérica dos “Filhos de Hermes” e dos
”Obreiros do Bom Deus”, que escondiam nos símbolos da sua atividade
profissional os tesouros da sua ciência. Numa sociedade fundada sob a certeza
de suas fórmulas, na organização de suas estruturas, na demonstração inequívoca
de resultados, no amor pela evidência racional, não havia lugar para uma
metafísica apoiada em símbolos que somente iniciados podiam desvendar, e mesmo
assim, sem certeza da obtenção de qualquer resultado concreto.[1]
A
chamada “alta ciência” que se hospedava na pratica da alquimia e da maçonaria
operativa teve que se adaptar as exigências do racionalismo. Daí o nascimento
da moderna Arte Real, com a introdução daqueles elementos que Ambelain chamou
de caminho político da Maçonaria, onde se aliavam, segundo suas próprias
palavras, “as melhores noções de progresso e evolução, mas também,
infelizmente, ideias novas, desconhecidas dos antigos franco-maçons, como o
ateísmo, o materialismo, o laxismo, que conduzem ao materialismo desagregador e
que tenderiam, pouco a pouco, a minar certos valores que fazem a dignidade do
homem,.”[2]
Ambelain, como outros críticos da maçonaria
moderna, achava que influência psíquica dos ritos maçônicos havia sido
envilecida na sua passagem operativa para o plano puramente especulativo, pois
a espiritualidade que havia na prática operativa foi substituída por uma
ritualística vazia de sentido e extremamente pobre em conteúdo emocional. A
Maçonaria antiga, que incorporava em sua prática uma noção de sacralidade,
cederia seu passo á nova organização, que nada mais era do que um clube de
elite, que refletia as tendências culturais de uma época extremamente
conturbada, onde a desconstrução do antigo era a moda.
Não obstante o seu sentimento saudosista,
Ambelain, como outros autores da mesma escola, reconhecia que a Maçonaria
secularizada, como todas as instituições oriundas da cultura medieval,
precisava se adaptar ás exigências do ambiente da época, que elegera o
racionalismo como nova religião oficial. Não fosse essa concessão ao espírito
da época ela também não teria sobrevivido como tradição, e acabaria no mesmo
escaninho em que foram postas outras grandes tradições desenvolvidas pelo
espirito humano, como a alquimia e a aritmosofia, que sobrevivem apenas como
curiosidades históricas.
Pois na nova estrutura cultural que então
se instalara com o advento da Reforma Religiosa e do seu filho filosófico, o
Iluminismo, também o esotérico precisava de uma epistemologia que o fizesse
palatável ás novas classes intelectuais. A Maçonaria que emergiu desse caldo
cultural é a que conhecemos hoje: Um Iluminismo romântico, temperado com
elementos de esoterismo,
O Iluminismo filosófico
A Maçonaria teve uma grande participação no
movimento iluminista. Historicamente, o Iluminismo foi o produto filosófico do
racionalismo cientifico inaugurado por Francis Bacon e desenvolvido
cientificamente por espíritos do porte de René Descartes e Isaac Newton. Eles,
como os iluministas Voltaire, Montesquieu, Locke, Adam Smith, Kant e outros
pensadores que lançaram luz sobre o pensamento ocidental, em sua maioria, foram
maçons, ou de alguma forma estavam ligados aos círculos maçônicos. Descartes,
que nasceu em 1596, em pleno apogeu da Renascença e morreu em 1650, fase mais
aguda das guerras religiosas, foi o verdadeiro pai do racionalismo. Acreditava
na razão como única forma de conhecimento da verdade e tinha a matemática como
a fórmula mais perfeita de demonstração. Uma ideia que viria a ecoar na
Maçonaria, dado o seu apelo á geometria, como fórmula essencial do seu
simbolismo.
O universo cartesiano era um plano que
podia ser definido em termos de extensão e movimento. Todos os conjuntos,
grandes ou pequenos, obedeciam a uma lei geral de movimento, neles imprimida
por Deus. No homem, Descartes distinguia a dualidade espírito-matéria, sendo
esta última construída a partir do movimento do primeiro.
O cartesianismo abalou profundamente as
convicções teológicas da época, baseadas fundamentalmente na fé e na revelação
divina como fontes únicas da verdade religiosa. Se a razão era a única forma de
conhecimento, e só através dela se podia conhecer as realidades do universo,
inclusive as divinas, porque então se lutava tanto pela fé? Não seriam as
questões éticas e morais mais importantes que a religião?
Muitos pensadores importantes passaram a se
ocupar da questão. Espinosa, filósofo judeu-alemão, pôs em dúvida os dogmas do
Judaísmo, valorizando as concepções panteístas do universo que Pitágoras,
Parmênides, Plotino e os doutrinadores hindus já haviam defendido. Nesse
sentido, ele deu ênfase á Ética e a Moral como fórmulas mais eficazes do que a
religião, para a construção de um mundo mais justo e humano.
Thomas Hobbes, mais materialista que
Espinosa, sustentou que o desenvolvimento da civilização se baseava na busca
constante do prazer e na repressão á dor, dando origem á corrente filosófica
que ficou conhecida como Hedonismo. As ideias de Hobbes refletiram imediatamente
no pensamento econômico da época, influenciando pensa-dores como Adam Smith,
por exemplo, o mais importante dos economistas clássicos.
A corrente de pensamento conhecida como
Iluminismo teve inicio na Inglaterra em 1680, tendo como seus precursores o
cientista Isaac Newton, pai da teoria da gravitação universal, e o filósofo
John Locke. Partindo das concepções cartesianas, que adotava a razão como único
guia para o descobrimento da verdade, Newton, mais do que qualquer outro
cientista do seu tempo, revolucionou o conhecimento que se tinha do mundo
físico. Suas teorias a respeito do universo e suas leis de desenvolvimento
permaneceram incontestáveis até o surgimento de Einsten. Newton, como Locke,
Smith e outros próceres do pensamento iluminista dos inícios do século
XVII, também flertaram com o movimento
maçônico através da chamada corrente rosa-cruciana, que se integrou á maçonaria
a partir da admissão, entre os maçons operativos, dos chamados ‘maçons aceitos”.
Visceralmente inimigo do dogmatismo
religioso, Newton introduziu na ciência o conceito mecanicista do universo,
banindo a noção do milagre, da explicação dos fenômenos pela fé, do
conhecimento da verdade pela revelação divina, afirmando que tudo no cosmo se
explicava pela atuação de leis exclusivamente naturais. Como apóstolo convicto
da liberdade natural, forneceu aos espíritos ansiosos pelo livre pensamento em
todos os campos, o fermento necessário para o desenvolvimento das ideias
iluministas que revolucionaram a filosofia nos séculos XVII, XVIII e XIX.
John Locke, refutando qualquer influência
divina na formação do espírito humano, pregou que o homem nascia “ tábula
rasa”, isto é, ele era, ao nascer, uma folha em branco na qual tudo ainda
estava por escrever. Com essa concepção, Locke afastava qualquer idéia de
predeterminação, qualquer explicação metafísica para o surgimento da
consciência humana, qualquer forma de intervenção divina na estrutura psíquica
do homem, que não fosse aquela que ele mesmo adquiria no decorrer da vida. Com
isso o homem ficava livre para assumir o leme do seu destino, sendo ele mesmo o
único responsável por tudo que lhe acontecia.
Cada individuo tinha em si o caminho da
salvação e não precisava de “interme-diários’ entre ele e Deus. Era, mais ou menos
o que já dizia Lutero em sua pregação contra o monopólio da Igreja Católica na
intermediação entre o homem e Deus. O que se precisava era de mais ética, mais
moral, mais autonomia e mais liberdade de atitude e de pensamento, pois todos
tinham direito á uma auto realização. Assim sendo, que importância tinham os
dogmas, as verdades religiosas, os paradigmas da religião? A luta pela fé
perdia todo o sentido, pois somente a razão podia conduzir ao conhecimento da
verdade. Destarte, a construção de um sistema moral e ético que conduzisse á
felicidade geral era muito mais importante do que a luta para defender a crença
numa “orientação divina”, que não existia nem nunca existiu. Até porque, desde
que a religião incorporara em sua estrutura o principio do cuis régio, eius
religio, ela já não tinha o menor direito de reivindicar qualquer influência
sobre o espírito humano. Tornara-se apenas uma impostura para justificar as
lutas dinásticas pelo poder.[3]
Na França, o Iluminismo alcançou o apogeu
com os trabalhos do grande Voltaire. Em razão das suas ideias libertárias,
Voltaire enfrentou a prisão na Bastilha e o exílio na Inglaterra, onde se
filiou ao grupo de pensadores e cientistas da Real Sociedade de Londres, onde
pontificavam Newton, Locke, Robert Fludd e outros.[4] Recuperou, com base na
nova Ética e Moral do Iluminismo, as ideias utópicas do estado ideal de ordem,
harmonia e felicidade, situando-o em algum lugar na América do Sul. Nesse país imaginário, dizia ele, não há
monges, nem padres, nem processos, nem governos autoritários e burocratas para
infernizar a vida dos homens. Esse país seria governado exclusivamente pelas
grandes leis da natureza. Era a aplicação do princípio da Maat egípcia, mas sem
um faraó ou um estado organizado para encarná-la.[5]
Voltaire foi o campeão da liberdade
individual. Popularizou seu amor pela liberdade na famosa expressão “não
concordo com o que dizes, mas defenderei até a morte vosso direito de dize-lo”.
Outros grandes nomes do Iluminismo foram
Denis Diderot, Jean d!Alembert, Claude Helvecius e o Barão Holbach. Os dois
primeiros formaram um grupo conhecido como “Os Enciclopedistas”, pelo fato de
terem colaborado na organização da Grande Enciclopédia Filosófica Universal,
trabalho que pretendeu reunir todo o conhecimento filosófico e cientifico
existente na época. Todos eles eram inimigos irreconciliáveis do obscurantismo
e defendiam a educação como forma de eliminar as diferenças entre os homens, a
pobreza, a ignorância e as guerras. Outros nomes importantes do pensamento
iluminista foram Jean Jacques Rousseau, Lessing, Mendelssohn e Emmanuel Kant.
Todos eles viveram a maior parte de suas vidas e produziram suas obras na
primeira metade do século XVIII. E todos, de uma forma ou de outra, tiveram
ligações com o movimento maçônico, como membros efetivos dele ou por mera
afinidade filosófica.
O Iluminismo influenciou os principais
movimentos revolucionários dos séculos XVIII e XIX que culminaram na
organização polítinaca do mundo moderno. Na França as ideias iluministas estão
no cerne da Revolução Francesa. Na América inspiraram Thomas Payne, Benjamim
Franklin, Thomas Jefferson, George Washington e outros lideres da Revolução
Americana. Todos eles maçons iniciados. No Brasil, o Iluminismo se fez sentir
principalmente entre os revolucionários da Inconfidência Mineira e nos
idealizadores da nossa Independência. [6]
O Iluminismo maçônico
O resumo histórico acima teve por objetivo
trazer para este trabalho a moldura na qual a Maçonaria moderna se inscreveu. A
liberdade de pensamento trazido pela Reforma Protestante e a corrente
iluminista forneceram o fundo filosófico e cultural a partir do qual ela se
definiu, e as lutas políticas e religiosas moldaram o desenho e a conformação
que ela assumiu a partir de meados do século XVIII. Desse ponto de partida
podemos começar um exercício semiótico. Podemos visualizar grupos de nobres,
intelectuais, cientistas, e outras pessoas de alta sensibilidade, descontentes
com a ortodoxia das religiões oficiais, descrentes da filosofia que as
orientava, cujo resultado só conduzira á desarmonia, á desordem, á guerra, á
carnificina e á perpetuação das tiranias políticas; podemos ver como esses
homens apaixonados pela liberdade, pelo livre pensamento, pelo exercício
racional de uma prática religiosa, orientada mais pela razão do que pela fé,
decidiram procurar uma fórmula que agasalhasse, ao mesmo tempo, a sensibilidade
de uma alma que acreditava na origem divina do universo e a necessidade de uma
nova atitude religiosa, fundamentada na razão pura, na ética e na ação social.
Uma nova interpretação dos signos e arquétipos que moldavam a alma humana na
sua eterna procura pela felicidade.
Nasceria, dessa forma, uma nova filosofia
dentro das sociedades de pensamento, que então começavam a se propagar pela
Europa a partir da interação entre os “fellow-crafts” das antigas Lojas de
Companheiros e os “ novos maçons aceitos”, alguns deles cultores da filosofia
hermética, outros, filósofos formados no pensamento iluminista e entre eles políticos
e militares engajados nos movimentos revolucionários e sociais, dos quais essa
época foi a mais pródiga.
Essa nova filosofia era uma espécie de
Iluminismo Esotérico que apelava, ao mesmo tempo, para as inclinações profanas
do homem desejoso de ser feliz no único mundo que conhecia, mas que também
respeitava o sentimento religioso daqueles que acreditavam num universo
governado por forças maiores que a razão humana e leis simplesmente naturais.
Esses espíritos, que rejeitavam a ditadura espiritual do cato-licismo, não
queriam também adotar o materialismo ateu dos puramente racionalistas nem a
visão intolerante dos calvinistas e luteranos. Pregavam, ao invés, tolerância
para com todas as visões religiosas e liberdade de pensamento para crer e viver
de acordo com suas próprias escolhas.
A Art d’amour
A Maçonaria moderna nasceu, portanto, da
fusão entre o pensamento mágico dos hermetistas, sensíveis ás tradições
herdadas das sociedades iniciáticas, com a moral iluminista. Podemos dizer que seus cultores
buscavam, em última análise, uma nova forma de Gnose, ou seja, uma sabedoria
que se fundamentava, não mais na procura de um caminho para o divino através da
fé e da religião, mas sim na prática ativa de vir-tudes éticas e morais. A
escolha da organização maçônica para servir de veículo para essa prática foi
apenas uma questão de estratégia, escolhida, provavelmente, em face do apelo
romântico e esotérico de que se revestia a tradição dos antigos pedreiros
medie-vais. Isso é o que se percebe em trabalhos produzidos pelos pioneiros da
maçonaria moderna, tais como James Anderson, André Michel de Ramsay, Jean
Teóphile Deságuliers e outros.[7]
. Eis, numa rápida visão, as tintas, a
moldura, a tela e o fundo nos quais se pintaria a Ordem maçônica em suas
roupagens modernas. É essa interação entre racionalistas e hermetistas que
podemos chamar de Iluminismo Maçônico, eufemismo que cunhamos para designar a
filosofia que orienta a prática maçônica,
O Irmão logo perceberá no desenvolver da
prática maçônica que esta nada mais é que a moral iluminista temperada por um
forte apelo ao pensamento mágico, próprio da tradição hermética e dos filósofos
gnósticos, sob uma moldura que pode ser emprestada das antigas normas da
Cavalaria. Esta foi acrescentada pelos românticos sectários do século XVIII
para dar á Maçonaria uma aura de nobreza. É por ela que entram, na Maçonaria,
as tradições templárias. E como todas essas
tradições eram iniciáticas, esse é mais um elo de ligação entre todas essas
manifestações culturais do espirito humano.
Nesse sentido, podemos dizer que a
Maçonaria, como atividade especulativa nada mais é que uma alquimia do espírito
e uma filosofia que se transmite não somente á razão, mas principalmente aos
sentidos. O maçom que realmente entendeu o que é a Arte Real precisa incorporar
o espírito do adepto, a mentalidade do filósofo e romantismo do artista. A Arte
Real tornar-se-á então, uma nova Art d!amour, porque se dirige ao espírito do
praticante; é também um novo Iluminismo, praticado socialmente com a esperança
de se construir uma humanidade melhor. Em nenhuma outra atividade humana, seja
ela política, social ou intelectual, ou mesmo religiosa, se casou tão bem o
ideal romântico dos cultores das utopias com a esperança iluminista dos
reformadores sociais, como aconteceu na Maçonaria.[8]
Esta é a Maçonaria no seu verdadeiro
sentido histórico.
[1] “Filhos de Hermes” são os alquimistas e “Obreiros do Bom Deus” são os
maçons medievais, construtores das catedrais góticas.
[2] Robert Ambelain- A Franco-Maçonaria- Ed. Ibrasa São Paulo, 1999
[3] cuis régio, eius religio (conforme o rei, a religião), quer dizer,
a nação deveria seguir a religião do rei. A religião deixava de ser uma escolha
do indivíduo, mas uma política de estado. Foi essa filosofia que gerou as
sangrentas guerras religiosas que ensanguentaram a Europa durante os séculos
XVI e XVII.
[4] A Real Sociedade de Londres é tida por alguns autores como célula
máter da maçonaria inglesa.
[5] Maat, a deusa egípcia da Justiça.
[6] O Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva
também foi influenciado pelas ideias iluministas. Seu trabalho de articulação
política para a proclamação da independência do Brasil deixa entrever que esse
grande patriota, que pode ser considerado como o patrono da Maçonaria no
Brasil, estava impregnado pelas ideais
maçônicos.
[7] Ver especialmente As Constituições de James Anderson e os Discursos
de André Michel de Ramsay – Cf. Jean Palou- A Maçonaria Simbólica e Iniciática-
Ed. Pensamento, 1986.
[8] Art d’amour, ou arte do amor é um título aplicado á alquimia, que
também designa a Maçonaria, porquanto ambas são artes dedicadas a construir um
mundo melhor. Foi essa analogia entre a prática dos antigos alquimistas e a
profissão dos pedreiros-livres, construtores de igrejas, que fez com que a
alquimia e a maçonaria acabassem se tornando sócias do mesmo ideal
especulativo.
João Anatalino
FONTE: RECANTO DAS LETRAS
FONTE: RECANTO DAS LETRAS
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