Por
Leonardo Vieira – O Globo
Cento
e cinquenta anos depois, a Guerra do Paraguai ainda é motivo de conflito, mas
em outro campo de batalha: os livros de História. O tempo parece não ter sido
suficiente para pacificar versões quase antagônicas sobre as causas e os
impactos do evento. De um lado, há os que acreditam que tudo começou por conta
do imperialismo da Inglaterra, que não poderia permitir que um Paraguai
desenvolvido e autossuficiente prosperasse no Cone Sul sem os produtos
industrializados ingleses. Do outro, historiadores que voltaram aos documentos
e revelam que os atritos começaram ainda por conta do processo de consolidação
das fronteiras nacionais, além da disputa pela hegemonia no Rio da Prata. Leia mais
O
embate já começa no nome da guerra. Os paraguaios a chamam de Guerra da
Tríplice Aliança, em referência à união selada entre Brasil, Argentina e
Uruguai. Estes países seriam os três “fantoches” manipulados pelos ingleses
contra o país guarani, na versão deles. Já no Brasil, nós a chamamos Guerra do
Paraguai, como se a culpa do conflito fosse exclusivamente do nosso vizinho.
A
mais recente corrente historiográfica, surgida nos anos 1990, prega que a
batalha deve ser compreendida ainda no contexto de formação e consolidação dos
estados da região do Prata. A pouca definição sobre os limites de cada nação
gerava atritos entre os países, e este teria sido o motivo para o Brasil dar
ultimato ao governo uruguaio de Aguirre, em 4 de agosto de 1864 — supostamente
por conta de contrabando de gado brasileiro para o Uruguai. Ao responder a
ameaça com o rompimento das relações com o Brasil Império, os uruguaios pediram
socorro ao Paraguai de Francisco Solano López, aliado que precisava do porto de
Montevidéu para exportar mercadorias paraguaias mundo afora.
Em
pouco mais de quatro meses, o Brasil invadiu o Uruguai e depôs Aguirre; o
Paraguai considerou o ato uma declaração de guerra e aprisionou o vapor
brasileiro Marquês de Olinda, em Assunção. No fim de 1864, os paraguaios
invadiram a província de Mato Grosso. Pouco tempo depois, com o objetivo de
chegar ao Rio Grande do Sul, tropas guaranis invadiram a província argentina de
Corrientes, arrastando a Argentina para o conflito ao lado de Brasil e Uruguai,
já com novo governo pró-Brasil.
BRASIL E INGLATERRA
ESTAVAM ROMPIDOS
Há,
no entanto, livros didáticos que ainda entendem a guerra como produto do
imperialismo britânico, uma versão descartada pelo historiador da UnB,
Francisco Doratioto, autor do livro “A Maldita Guerra”.
—
Não havia indústria no Paraguai, simples assim. Não há documentação que prove
isso. O mercado interno era ínfimo, o país só tinha 400 mil habitantes. E dizer
que a Inglaterra queria abrir o mercado consumidor fazendo uma guerra é algo
totalmente ilógico — diz.
Doratioto
lembra ainda que, quando o conflito começou, o Brasil tinha relações
diplomáticas rompidas com a Inglaterra por conta dos atritos envolvendo o
tráfico de escravos que culminaram na Questão Christie. Na época, a rainha
Vitória teria até enviado uma carta a D. Pedro II lamentando os acontecimentos.
—
Em maio de 1863, o Brasil rompeu relações, que só foram restabelecidas em
outubro de 1865. E o Tratado da Tríplice Aliança contra o Paraguai é de maio de
1865. Não tem sentido culpar a Inglaterra — explica o historiador.
Mesmo
150 anos depois, a “maldita guerra” ainda é tema de uma série de produções
acadêmicas. Estreou na última terça-feira na TV Escola o primeiro de uma série
de quatro episódios do documentário “A Última Guerra do Prata”, que analisa
desde os elementos desencadeadores do conflito até seus impactos em nossos
tempos. A obra é fruto de um projeto de dois diretores, que venceu o concurso
promovido pelo canal e recebeu R$ 200 mil para as filmagens.
Ao
todo, 16 pessoas trabalharam quase um ano e meio revirando arquivos,
entrevistando historiadores e visitando antigos campos de batalha. De acordo
com Alan Arrais, um dos codiretores, a intenção do documentário é desmistificar
teorias que ainda cercam o tema:
—
Percebi que ainda se discutia demais sobre quem teria causado a guerra e pouco
se discutia o verdadeiro impacto que essa guerra teve na região — conta Arrais.
— Queríamos preencher esse vácuo e confrontar o material com o que se estuda na
escola. Alguns livros didáticos ainda trazem versões ultrapassadas sobre o
conflito — observa.
Ao
visitar antigos campos de batalhas no Paraguai e conversar com locais, Arrais
chegou à conclusão que ainda persiste uma historiografia minoritária, que
entende que o país foi injustiçado e vítima da Tríplice Aliança. Nela, o
ditador Solano López é visto como um mártir, que tentou desenvolver o Paraguai
de forma autônoma, mas esbarrou no capitalismo inglês e em seus sócios na
América do Sul. Cerca de 90% da população masculina paraguaia morreu nos cinco
anos do conflito, comprometendo o crescimento econômico do país por décadas.
—
Eles são muito marcados por essa guerra, mas o que se percebe é que existe um
uso político da História muito grande durante todo o século XX para justificar
quem estava no poder — diz o cineasta.
Em
1870, quando López foi perseguido e morto em Cerro Corá, no Paraguai, a guerra
já havia matado cerca de 350 mil pessoas. Do lado brasileiro, dos 160 mil
militares enviados, cerca de 50 mil não voltaram para casa. E o preço pago pelo
Brasil foi além da vida de seus soldados. Estudioso do papel do negro durante o
conflito, o historiador da Unirio Ricardo Salles afirma que a guerra teve
impacto no nosso processo de abolição da escravidão. Segundo ele, grande parte
da tropa brasileira era formada por negros e pardos livres, além dos escravos
libertos, que seriam 10% do contingente:
—
Eram setores marginalizados pela sociedade. E quando voltaram, todos queriam o
reconhecimento pelo ato de patriotismo, mas ficaram frustrados com a resposta
fria do Império — explica.
Para
Salles, não foi coincidência que a primeira norma que apontava para o fim da
escravidão, a Lei do Ventre Livre, tenha sido proposta durante a guerra, em
1867. Sem saída, o Império deu um tiro no pé com a libertação dos escravos em
1888.
—
A base de sustentação do regime ainda era o café do Vale do Paraíba, eram os
escravos. Sem escravos, caiu o Império.
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