Reprodução
do site do “Observatório da Imprensa''
Por
muito tempo, a jornalista Míriam Leitão não quis contar como foi sua prisão na
época da ditadura. “Para não parecer que me vitimizo'', Míriam me disse há
pouco.
Com
altivez, ela denunciou os torturadores quando foi interrogada na Justiça
Militar, nos anos 1970. Como tantas militantes que combateram a covardia,
Míriam é mulher de verdade.
Uma
das virtudes dos grandes repórteres é a persistência. E Luiz Cláudio Cunha é um
grande repórter. O gaúcho persistiu e convenceu a mineira a falar sobre a
quadra sombria em que penou nas mãos da barbárie.
É
muito provável que um dos seus algozes tenha sido Paulo Malhães, o coronel do
Exército morto meses atrás, depois de revelar atrocidades perpetradas contra
seres humanos indefesos que ele e seus comparsas torturaram e mataram.
O
depoimento histórico de Míriam Leitão a Luiz Cláudio Cunha e a reportagem que
acompanha as memórias da ex-presa política estão no site do “Observatório da
Imprensa'' (aqui).
Abaixo,
o blog publica o que Míriam narrou a Luiz Cláudio:
(
O blog está no Facebook e no Twitter )
'Eu
sozinha e nua. Eu e a cobra. Eu e o medo'
Eu
morava numa favela de Vitória, o Morro da Fonte Grande. Num domingo, 3 de
dezembro de 1972, eu e meu companheiro na época, Marcelo Netto, estudante de
Medicina, acordamos cedo para ir à praia do Canto, próxima ao centro da
capital. Acordei para ir à praia e acabei presa na Prainha. É o bairro que
abriga o Forte de Piratininga, essa construção bonita do século 17. Ali está
instalado o quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército, do outro lado da
baía.
Eu
tinha dado quatro plantões seguidos na redação da rádio Espírito Santo e já
tinha quase um ano de profissão. Eu vestia uma camisa branca larga, de homem,
sobre o biquini vermelho. Caminhando pela Rua Sete em direção à praia, alguém
gritou de repente:
–
Ei, Marcelo?
Nos
viramos e vimos dois homens correndo em nossa direção com armas. Eu reconheci
um rosto que vira em frente à Polícia Federal. Meu ônibus sempre passava em
frente à sede da PF e eu tentava guardar os rostos.
–
É a Polícia Federal – avisei ao Marcelo
Em
instantes estávamos cercados. Apareceram mais homens, mais um carro. Voltei a
perguntar:
–
O que está acontecendo?
Eles
nos algemaram e empurraram o Marcelo para o camburão. Era uma camionete
Veraneio, sem identificação. Eu tive uma reação curiosa: antes que me
empurrassem sentei no chão da calçada e comecei a gritar, a berrar como louca,
queria chamar a atenção das pessoas na rua. Mas ainda era cedo, manhã de
domingo, havia pouca gente circulando. Achava que quanto mais gente visse
aquela cena, mais chances eu teria de sair viva. Como eu berrava, me puxaram
pelos cabelos, me agarraram para me colocar no carro. Eu, ainda com aquela
coisa de Justiça na cabeça, reclamei:
–
Moço, cadê a ordem de prisão?
O
homem botou a metralhadora no meu peito e respondeu com outra pergunta:
–
Esta serve?
As
algemas eram diferentes, eram de plástico, e estavam muito apertadas, doíam no
pulso. Viajamos sem capuz, eu e Marcelo, em direção a Vila Velha, onde fica o
quartel do Exército. Eu ainda achava que não era nada comigo, que o alvo era o
Marcelo. Ele estava no quarto ano de Medicina e tinha acabado de liderar a
única greve de estudantes do país daquele ano, que trancou por dois dias as
aulas na universidade de Vitória e paralisou os trabalhos no Hospital de
Clínicas. Achei que estava presa só porque estava indo à praia com o Marcelo.
A
Veraneio entrou no pátio do quartel, o batalhão de infantaria. Nos levaram por
um corredor e nos separaram. Marcelo foi viver seu inferno, que durou 13 meses,
e eu o meu. Sobre mim jogaram cães pastores babando de raiva. Eles ficavam
ainda mais enfurecidos quando os soldados gritavam: “Terrorista, terrorista!”.
Pareciam treinados para ficar mais bravos quando eram incitados pela palavra
maldita. De repente, os soldados que me cercavam começaram a cantar aquela
música do Ataulfo Alves: “Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que era
mulher de verdade”. Só então percebi que minha prisão não era um engano.
“Amélia” era o codinome que o meu chefe de ala no PCdoB tinha escolhido pra
mim: “Você, a partir de agora, vai se chamar Amélia”. Quis reagir na hora,
afinal não tenho nada de Amélia, mas não quis discordar logo na primeira
reunião com o dirigente.
O
comandante do batalhão era o coronel Sequeira [tenente-coronel Geraldo Cândido
Sequeira, que exerceu o comando do 38º BI entre 10 de março de 1971 a 13 de
março de 1973], que fingia que mandava, mas não via nada do que acontecia por
lá. O homem que de fato mandava naquele lugar, naquele tempo, era o capitão
Guilherme, o único nome que se conhecia dele. Ele era o chefe do S-2, o setor
de inteligência do batalhão. Todos os interrogatórios e torturas estavam sob a
coordenação dele. Ele pessoalmente nada fazia, mas a ele tudo era comunicado.
Nesse primeiro dia me deu um bofetão só porque eu o encarei.
–
Nunca mais me olhe assim! – avisou.
Fui
levada para uma grande sala vazia, sem móveis, com as janelas cobertas por um
plástico preto. Com a luz acesa na sala, vi um pequeno palco elevado, onde me
colocaram de pé e me mandaram não recostar na parede. Chegaram três homens à
paisana, um com muito cabelo, preto e liso, um outro ruivo e um descendente de
japonês. Mandaram eu tirar a roupa. Uma peça a cada cinco minutos. Tirei o
chinelo. O de cabelo preto me bateu:
–
A roupa! Tire toda a roupa.
Fui
tirando, constrangida, cada peça. Quando estava nua, eles mandaram entrar uns
10 soldados na sala. Eu tentava esconder minha nudez com as mãos. O homem de
cabelo preto falou:
–
Posso dizer a todos eles para irem pra cima de você, menina. E aqui não tem
volta. Quando começamos, vamos até o fim.
Os
soldados ficaram me olhando e os três homens à paisana gritavam, ameaçando me
atacar, um clima de estupro iminente. O tempo nessas horas é relativo, não sei
quanto tempo durou essa primeira ameaça. Viriam outras.
Eles
saíram e o homem de cabelo preto, que alguém chamou de Dr. Pablo, voltou
trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes
que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a
cobra. Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra
estava lá. A única coisa que lembrei naquele momento de pavor é que cobra é
atraída pelo movimento. Então, fiquei estática, silenciosa, mal respirando,
tremendo. Era dezembro, um verão quente em Vitória, mas eu tremia toda. Não era
de frio. Era um tremor que vem de dentro. Ainda agora, quando falo nisso, o
tremor volta. Tinha medo da cobra que não via, mas que era minha única
companhia naquela sala sinistra. A escuridão, o longo tempo de espera, ficar de
pé sem recostar em nada, tudo aumentava o sofrimento. Meu corpo doía.
Não
sei quanto tempo durou esta agonia. Foram horas. Eu não tinha noção de dia ou
noite na sala escurecida pelo plástico preto. E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a
cobra. Eu e o medo. O medo era ainda maior porque não via nada, mas sabia que a
cobra estava ali, por perto. Não sabia se estava se movendo, se estava parada.
Eu não ouvia nada, não via nada. Não era possível nem chorar, poderia atrair a
cobra. Passei o resto da vida lembrando dessa sala de um quartel do Exército
brasileiro. Lembro que quando aqueles três homens voltaram, davam gargalhadas,
riam da situação. Eu pensava que era só sadismo. Não sabia que na tortura
brasileira havia uma cobra, uma jiboia usada para aterrorizar e que além de
tudo tinha o apelido de Míriam. Nem sei se era a mesma. Se era, talvez fosse
esse o motivo de tanto riso. Míriam e Míriam, juntas na mesma sala. Essa era a
graça, imagino.
Dr.
Pablo voltou, depois, com os outros dois, e me encheu de perguntas. As de
sempre: o que eu fazia, quem conhecia. Me davam tapas, chutes, puxavam pelo
cabelo, bateram com minha cabeça na parede. Eu sangrava na nuca, o sangue
molhou meu cabelo. Ninguém tratou de minha ferida , não me deram nenhum
alimento naquele dia, exceto um copo de suco de laranja que, com a forte
bofetada do capitão Guilherme, eu deixei cair no chão. Não recebi um único
telefonema, não vi nenhum advogado, ninguém sabia o que tinha acontecido
comigo, eu não sabia se as pessoas tinham ideia do meu desaparecimento. Só três
dias após minha prisão é que meu pai recebeu, em Caratinga, um telefonema
anônimo de uma mulher dizendo que eu tinha sido presa. Ele procurou muito e só
conseguiu me localizar no fim daquele dezembro. Havia outros presos no quartel,
mas só ao final de três semanas fui colocada na cela com a outras presas: Angela,
Badora, Beth, Magdalena, estudantes, como eu.
Fiquei
48 horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 kg de peso, saí três meses
depois pesando 39 kg. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, e tinha enormes
chances de perder meu bebê. Foi o que médico me disse, quando saí de lá, com
quatro meses de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa,
assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que
uma mulher deve ser para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse,
teria sequelas, me disse o médico.
–
A má notícia eu já sei, doutor, vou procurar logo um médico que me diga o que
fazer para aumentar as chances do meu filho.
Mas
isso foi ao sair. Lá dentro achei que não havia chance alguma para nós. Eu era
levada de uma sala para outra, numa área administrativa do quartel, onde
passava por outras sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos,
para manter o clima de terror, de intimidação. Na noite seguinte, atravessei a
madrugada com uma sessão de interrogatório pesado, o Dr. Pablo e os outros dois
berrando, me ameaçando de estupro, dizendo que iam me matar. Um dia achei que
iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para onde eu fui levada
após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e me levaram para um
lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilamento. Vi minha sombra
refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina
de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei:
“Eu sou muito nova para morrer. Quero viver”.
Um
dia, um outro militar, que não era nenhum daqueles três, botou um revólver na
minha cabeça e falou: “Eu posso te matar”. E forçou aquele cano frio na minha
testa. Me deu um sentimento enorme de solidão, de abandono. Eu me senti
absolutamente só no mundo. Pela falta de notícias, imaginava que o Marcelo
estava morto. Entendi que iria morrer também e que ninguém saberia da minha
morte, pensei. Mas não quis demonstrar medo. Lembro que o homem do revólver
tinha olhos azuis. Olhei nos seus olhos e respondi: “Sim, você pode pode me
matar”. E repeti, falando ainda mais alto, com ar de desafio: “Sim, você pode!”
Um
dos interrogatórios foi feito na sala do capitão Guilherme, o S-2 que mandava
em todos ali. Era noite, ele não estava, e me interrogaram na sala dele. Lembro
dela porque havia na parede um quadro com a imagem do Duque de Caxias. Estava
ainda com o biquíni e a camisa, era a única roupa que eu tinha, que me
protegia. Nessa noite, na sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o
tempo todo me alisando, me apalpando, me bolinando, brincando comigo. Um deles
me obrigou a deitar com ele no sofá. Não chegaram a consumar nada, mas estavam
no limite do estupro, divertindo-se com tudo aquilo.
Eu
estava com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a
revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro.
Minha cabeça doía, com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca
incomodava. Eu não podia me lavar, não tinha nem roupa para trocar. Quando
pensava em descansar e dormir um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente
era invadido, aos gritos, com um bando de pastores alemães latindo na minha
cara. Não mordiam, mas pareciam que iam me estraçalhar, se escapassem da
coleira. E, para enfurecer ainda mais os cães, os soldados gritavam a palavra
que enlouquecia a cachorrada: “Terrorista, terrorista!…”
As
primeiras três semanas que passei lá foram terríveis. Só melhorou quando o Dr.
Pablo e seus dois companheiros foram embora. Entendi então que eles não
pertenciam ao quartel de Vila Velha. Tinham vindo do Rio, é o que chegaram a
conversar entre eles, em papos casuais: “E aí, quando voltarmos ao Rio, o que a
gente vai fazer lá…” Isso fazia sentido, porque o quartel de Vila Velha integra
o Comando do I Exército, hoje Comando do Leste, que tem o QG no Rio de Janeiro.
Quando
o trio voltou para o Rio, a situação ficou menos ruim. Eles já não tinham mais
nada para perguntar. Me tiraram da cela da fortaleza e me levaram para a cela
coletiva. Foi melhor. Na cela do forte não havia janelas, a porta era inteiriça
e minhas companhias eram apenas as baratas. Fiz uma foto minha, agora em 2011,
ao lado da porta.
Até
que chegou o dia de assinar a confissão, para dar início ao IPM, o inquérito
policial-militar que acontecia lá mesmo, dentro do quartel. Me levaram para a
sala do capitão Guilherme, o S-2, e levei um susto. Lá estava o Marcelo, que eu
pensava estar morto. Os militares saíram da sala e nos deixaram sozinhos. Quando
eu fui falar alguma coisa, o Marcelo me fez um sinal para ficar calada. Ele
levantou, foi até a parede e levantou o quadro do Duque de Caxias. Estava cheio
de fios e microfones lá atrás. Era tudo grampo.
Depois
disso, o Marcelo foi levado para o Regimento Sampaio, na Vila Militar, no Rio
de Janeiro, e lá ficou nove meses numa solitária. Sem banho de sol, sem nada
para ler, sem ninguém para conversar. Foi colocado lá para enlouquecer. Nove
longos e solitários meses… Nós, todos os presos, e os que já estavam soltos nos
encontramos mais ou menos em junho na 2ª Auditoria da Aeronáutica, para o que
eles chamam de sumário de culpa, o único momento em que o réu fala. Eu com uma
barriga de sete meses de gravidez. O processo, que envolvia 28 pessoas, a
maioria garotos da nossa idade, nos acusava de tentativa de organizar o PCdoB
no estado, de aliciamento de estudantes, de panfletagem e pichações. Ao fim, eu
e a maioria fomos absolvidos. O Marcelo foi condenado a um ano de cadeia. Nunca
pedi indenização, nem Marcelo. Gostaria de ouvir um pedido de desculpas, porque
isso me daria confiança de que meus netos não viverão o que eu vivi. É preciso
reconhecer o erro para não repeti-lo. As Forças Armadas nunca reconheceram o
que fizeram.
Nunca
mais vi o capitão Guilherme, o S-2 que comandou tudo aquilo. Uma vez ele
apareceu no Superior Tribunal Militar como assessor de um ministro. Marcelo foi
expulso do curso de Medicina, após a prisão, e virou jornalista. Fomos para
Brasília em 1977. Por ironia do destino, Marcelo só conseguiu vaga de repórter
para cobrir os tribunais. E lá no STM, um dia, ele reviu o capitão Guilherme.
Depois disso, não soubemos mais dele. Nem sei se o S-2 ainda está vivo.
O
que eu sei é que mantive a promessa que me fiz, naquela noite em que vi minha
sombra projetada na parede, antes do fuzilamento simulado. Eu sabia que era
muito nova para morrer. Sei que outros presos viveram coisas piores e nem acho
minha história importante. Mas foi o meu inferno. Tive sorte comparado a tantos
outros.
Sobrevivi
e meu filho Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer sequela.
Ele me deu duas netas, Manuela (3 anos) e Isabel (1). Do meu filho caçula,
Matheus, ganhei outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu
maior patrimônio.
Minha
vingança foi sobreviver e vencer. Por meus filhos e netos, ainda aguardo um
pedido de desculpas das Forças Armadas. Não cultivo nenhum ódio. Não sinto nada
disso. Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país.
[Depoimento a Luiz Cláudio Cunha]
1 Comentários
Que tristeza...
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