Por Eberth Vêncio - R. Bula
Quem joga ou já jogou futebol um dia sabe muito bem que
não é tarefa fácil vencer a artrose e entrar em campo aos 70, a não ser que
seja para receber uma homenagem, dar o pontapé inicial na pelota e sair
ovacionado pela torcida sob uma chuva de fogos de artifício e papel picado.
Não foi diferente com Chico que, todos sabem, adora
futebol e até hoje joga umas peladinhas, seja na várzea, na cama ou na varanda,
depende do contexto. Como eu já imaginava, o churrasco se estendeu além da
conta e, mesmo assim, a galera inebriada decidiu realizar aquele tradicional
rachinha no final da tarde. Ninguém ali respeitou o tal do “se beber, não jogue
bola”. Leia mais
A pelada era assim: sete jogadores pra cada lado, sendo
que os amigos do Chico jogavam com camisa, e os penetras, sem camisa. Nada mais
justo. Assim como a maioria dos peladeiros, Chico estava meio alto por conta do
chope e do cão engarrafado que rolavam desde as onze da matina. De tal forma
que ele entrou em campo sem se aquecer (até porque, àquela altura da festa, se os
atletas se aquecessem muito poderiam pegar fogo, pois já estavam bastante
inflamáveis), sem fazer aquele famoso alongamento muscular. Tanto assim que ele
saiu de campo logo aos cinco minutos de jogo, sentindo uma fisgada da
panturrilha. “Senti a antiga”, ele comentou e fez careta, enquanto claudicava
até o banco de reservas onde eu tomava uma birita.
Durou quase nada, um batalhão mulheres, inclusive as
casadas, acorreu ao ícone da MPB, preocupadíssimas, diligentes em oferecerem ao
coitadinho os primeiros socorros. “Idade é uma bosta”, disse-me o compositor de
“Geni e o Zepelim”. Um fanfarrão brincou que sacrificaria o gelo do uísque,
então meteu uma dúzia de pedras num saco plástico e o amarrou na panturrilha do
cantor (queridas fãs do Chico, panturrilha, pra quem ainda não sabe, é mais
conhecida como a batata da perna).
Apesar da contusão, Chico estava muito bem humorado,
afinal de contas, era um churrasco em comemoração aos seus 70 anos, e havia um
sem número de amigos esparramados por todos os lados, exceto eu, um enxerido
enviado especial da Revista Bula. Notei que ali no banco de reservas, enquanto
Chico tratava o estiramento muscular, seria o momento ideal para iniciarmos a
entrevista. O ídolo concordou. Brindamos com canecos de chope — aliás, um dos
melhores anti-inflamatórios que se tem notícia no Rio de Janeiro, além da
própria paisagem — e começamos o bate-papo. Vocês vão notar que a poesia não
diz tudo, mas explica muita coisa.
Ainda tá doendo a
perna, Chico?
Chico — Vai passar. O velho fraco se esqueceu do cansaço
e pensou que ainda era moço. (risos)
Como foi que você
machucou a panturrilha da primeira vez?
Chico — No Tabariz, dancei com uma dona infeliz que tem
um tufão nos quadris. Chorei até ficar com dó de mim. (risos, de novo)
Ontem ouvi um
sujeito dizer numa rádio que o ex-beatle Paul McCartney, aniversariante da
semana, como você, é uma espécie de Chico Buarque da Inglaterra. Como você se
sente aos 70?
Chico — De todas as maneiras que há de amar. Ouça um bom
conselho que eu lhe dou de graça: eu semeio o vento na minha cidade, vou pra
rua e bebo a tempestade.
Você está
namorando?
Chico — Amo tanto e, de tanto amar, acho que ela
acredita. Não vale a pena ficar, apenas ficar. E como já dizia Jorge Maravilha,
prenhe de razão: mais vale uma filha na mão do que dois pais voando.
E a Copa do Mundo?
O que você achou dos xingamentos que a Presidente Dilma recebeu no estádio? O
Governo relativizou a grosseria do público ao dizer que os apupos partiram dos
camarotes VIP.
Chico — Palmas pra ala dos barões famintos, o bloco dos
napoleões retintos.
Na sua opinião,
quem leva o caneco?
Chico — A turma do funil. Para estufar esse filó como eu
sonhei, só se eu fosse o rei. Agora, falando sério: Bye Bye, Brasil.
Os últimos meses
têm sido meio bicudos. Já ouvi muita gente comentar que “no tempo da ditadura
militar a vida era melhor”, principalmente no que diz respeito à segurança
pública e à corrupção no governo. Você foi censurado, preso e exilado. Como
avalia esse tipo de comentário?
Chico — Num tempo, página infeliz da nossa história,
passagem desbotada na memória das nossas novas gerações, dormia a nossa pátria
mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações. A
minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão. Mesmo com toda lama,
a gente vai levando. Amanhã vai ser outro dia. Essa terra ainda vai cumprir seu
ideal.
Como frear a
violência urbana crescente nas cidades?
Chico — No tempo da maldade, acho que a gente nem tinha
nascido. Olha aí, meu guri: essa onda de assaltos tá um horror. Não posso fazer
serenata, a roda de samba acabou. A gente quer ter voz ativa, no nosso destino
mandar mas, eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá. Não tem mais
jeito, a gente não tem cura. Mesmo com todo o problema, todo o sistema, a gente
vai levando.
Qual a sua opinião
quanto às biografias não autorizadas?
Chico — Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de
baixo. A lei fecha o livro, te pregam na cruz, depois chamam os urubus. Ninguém
segura esse rojão.
Quais são os seus
projetos para ao ano?
Chico — Ando com minha cabeça já pelas tabelas. Todo dia
eu só penso em poder parar, meio dia eu só penso em dizer não, depois penso na
vida pra levar e me calo com a boca de feijão. Luz. Quero luz. Sei que além das
cortinas são palcos azuis e infinitas cortinas com palcos atrás. Mais. Quero
mais. Nem que todos os barcos recolham ao cais e os faróis da costeira me
lancem sinais. Arranca, vida! Estufa, vela! Me leva, leva longe, leva mais!
Se você
acreditasse em Deus, o que diria a ele quando chegasse ao céu?
Chico — Meu caro amigo, me perdoe, por favor. Deus
permite a todo mundo uma loucura. Deus é uma cara gozador, adora brincadeira.
(risos finais)
Valeu, Chico.
Tenho que ir andando. Obrigado pela entrevista.
Chico — Vai, meu irmão, pega esse avião. Você tem razão
de correr assim. Mas não diga nada, que me viu chorando e, pros da pesada, diz
que eu vou levando.
1 Comentários
Chorei; chorei até ficar com dó de mim.
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