E diz que quando um homem extraordinário chega ao Reino dos Céus é feriado santo. Por obra do acaso, mera coincidência, conspiração dos anjos ou expressão suprema da Vontade de Deus, hoje é.
Aquele
que mostrou ao mundo que a América do Sul não é só um senhor de bigodes com um
violão e um revólver partiu. Simples, satisfeito e agradecido, voou sorrindo
sua curiosidade sobre o que virá, o que sempre vem, lançado às nuvens pelo
sopro fresco e perfumado de mil anjos, até chegar ao paraíso em festa literária
para ele.Leia mais
Ali,
sob uma explosão de palmas ruidosas como a chuva de pedras que despenca nos
telhados das casas de uma aldeia ardente, ele avista todos os seus heróis. Os
contadores de histórias que um dia acordaram sua alma para a vida e agora a
recebem de volta à casa. Vê os santos vestindo suas melhores roupas e
intenções. Mira Sant’Ana, mãe de Maria e avó de Jesus, que lhe acena com um
sorriso familiar revelando a doçura que ainda resta no mundo. E olhar Sant’Ana
é como reencontrar os olhos da mãe de sua mãe, que havia muito se perderam nos
corredores que a memória lhe fechara.
Caminhando
leve e assombrado como o pequeno Gabito de Aracataca quando avistara o rio na
companhia de seu avô pela primeira vez há muito, muito tempo, ele vai lento até
os portões do Paraíso.
Dá
mais dois passos e vê que lá estão também, enfiados entre os santos e os
escritores, uma gente antiga e velha conhecida. José Arcadio Buendía e Úrsula
Iguarán, Nicanor Ulloa e Rebeca Montiel, Amaranta e Pietro Crespi, até
Florentino Ariza e Fermina Daza e todos os outros. Tantas outras almas nascidas
de sua pena mágica e generosa, agora aceitos no Céu para sua absoluta surpresa.
Ele
caminha em suas sandálias de couro, e ressurgem em sua memória um milhão de
imagens havia tanto perdidas, escondidas pela velhice e a doença das quais
agora se compreende livre. Abrem-se os corredores largos de sua cabeça
fantástica, escancaram-se as portas e as janelas e por elas a luz invade
violenta e irrecusável seu mundo interior que se confunde com todo o resto. A
máquina volta a pulsar, a vida retoma sua potência em histórias bombeadas para
as artérias e veias e vasos infinitos do universo por um coração incansável,
vivo para sempre.
E
o homem de outra ordem entende que está voltando para casa.
O
som das palmas celebrando sua chegada aumenta até doer-lhe os tímpanos de
criança e o obriga a curvar-se levemente em agradecimento constrangido. E
então, olhando lá de cima, através das nuvens onde flutuam seus pés ele
contempla a humanidade lá embaixo, pequenina e perdida. Vê as sombras e as
luzes, o encontro e a solidão, o ódio e seus ardis, a incompreensão, o egoísmo,
a sanha de destruir, o escárnio, a crueldade, a mentira e a morte à espreita. E
vê o trabalho, o esforço, a boa vontade e o amor com todos os seus nomes e seus
rostos. Tudo isso num imenso vale tornado pequeno, como se visse formigas que
devoram seus dias na labuta. Lá de cima, as mãos postas sobre os joelhos, ele
olha os homens e as mulheres e as crianças e os velhos no conjunto de seus dias
com afeto e saudade. Adeus, gente amiga.
Então,
ele para diante dos portões do céu e repara. Não são portões dourados,
construídos do ouro maciço de todos os reis, mas uma entrada simples, de
madeira rústica, envelhecida e forte, com ramos de hera subindo-lhe pelos
batentes e um cheiro leve da tinta amarela que algum santo há pouco pincelara
em suas grades para receber o recém-chegado com simpatia.
No
alto do portão há uma placa e um nome. Macondo.
Ele
havia precisado de 87 anos, os 87 anos de sua vida, minuto a minuto, para
chegar até ali. Sentiu-se puro, explícito, invencível, no momento de dizer suas
novas primeiras palavras:
—
Gracias, compañeros! Y ahora, si me disculpan, tengo un montón de trabajo.
Para
Gabriel José García Márquez, dos maiores, o maior.
1 Comentários
Curvo-me ante a nobreza do que sabe bem sobre quem e sobre o que está discorrendo.
ResponderExcluirLi Cem anos de solidão em 11 horas, entre Jardim América e Coronel Fabriciano, no vagão do expresso das 13:18' da CVRD.
Nunca mais fui o mesmo.