Por Salatiel Soares Correia - R. Bula
Gabriel Garcia Marques |
Arte por meio da escrita é o que fez o
colombiano Gabriel García Márquez em sua obra definitiva, “Cem Anos de
Solidão”. Construiu a história latino-americana tão repleta de guerras e
solidão a partir da árvore genealógica de uma família
A
América Latina é uma região diferenciada do mundo — quanto à história da
construção de sua identidade. As instabilidades políticas, aliadas à insuficiência
de recursos, muito contribuiu para a eclosão de movimentos típicos da alma
latino-americana: ditaduras, guerras, guerrilhas, repressões, exílios e
exportação de refugiados são fatos próprios de nossa história. Uma história de
solidão, como bem definiu um de seus maiores intérpretes. Na visão desse
intérprete, isso se deve a um nó que evidencia “a insuficiência dos recursos
convencionais para tornar nossa vida acreditável”.
Esse
mesmo intérprete delineou, com a inteligência que lhe é peculiar, o perfil
inerente ao continente latino-americano. Continente que revela o muito que tem
de demente, mesmo após a libertação do império espanhol, que por anos dominou a
maioria dos países latino-americanos. Transcrevamos parte de um discurso desse
intelectual, quando do recebimento da maior honraria que um homem de letras
pode receber neste mundo: o Prêmio Nobel de Literatura. Leia mais
“O
general Antonio López de Santana, que foi três vezes ditador do México, mandou
enterrar com funerais magníficos a perna direita que perdeu na chamada Guerra
dos Bolos. O general García Moreno governou o Equador durante dezesseis anos
como monarca absoluto, e seu cadáver foi velado com seu uniforme de gala e sua
couraça de condecorações, sentado na poltrona presidencial. O general
Maximiliano Hernández Martínez, o déspota teósofo de El Salvador que fez
exterminar numa matança bárbara 30 mil camponeses, tinha inventado um pêndulo
para averiguar se os alimentos estavam envenenados, e mandou cobrir de papel
vermelho a iluminação pública para combater uma epidemia de escarlatina.”
Se
quisermos trazer esse espírito da América Latina para bem junto de nós, basta
observar o que foram o culto à personalidade do chavismo, as ditaduras
militares da Argentina e do Chile — e, lógico, o Brasil pós-1964.
Nosso
reconhecido intérprete aponta números, no seu discurso de premiação, que
espantam quando o assunto é a repressão no Continente. Os dados são
estarrecedores. Cinco guerras e dezessete golpes de Estado, 120 mil
desaparecidos, morte de 20 milhões de crianças antes de completar dois anos,
“mais que todas as crianças que nasceram na Europa ocidental desde 1970”.
O
quadro não se altera se o assunto for o número de exilados e refugiados que a
região exporta mundo afora. Um milhão de pessoas do Chile, um em cada cinco
uruguaios sofrem a dor do exílio. E mais: a cada 20 minutos, El Salvador produz
um refugiado. Enfim, todas essas adversidades representam mais que a população
da Noruega. Sim, de fato nosso principal intérprete mostrou que conhece
profundamente a alma da América Latina. Demonstrou isso não só naquele
memorável discurso de sua premiação, mas, sobretudo, pelas obras-primas que
produziu para a humanidade ao longo de sua produtiva vida dedicada à
literatura.
A
solidão latino-americana se torna mais visível ainda se o assunto for a
economia da região. Somos condenados àquilo que a Comissão Para o
Desenvolvimento da América Latina (Cepal) dicotomiza entre centro e periferia,
que nos condena a eternas trocas desiguais. Numa primeira fase de nossa
história, a exportação de matérias-primas e importação de produtos
industrializados; numa segunda fase, em tempos de globalização, nossa recente
industrialização nos tornou dependentes numa nova e prisioneira subordinação
corporificada pela dependência tecnológica. Ou seja, a inovação tecnológica
produzida nos centros mais dinâmicos tornou nossas indústrias suas prisioneiras.
Construir
a história latino-americana tão repleta de guerras e solidão a partir da árvore
genealógica de uma família, que na realidade é a sua. Fazer isso articulando
gerações e gerações sem perder o fio da meada não é tarefa para qualquer um.
Transportar o leitor para o mundo de solidão dos personagens tão apegados a
guerras inúteis, à solidão e magia inerente a sociedades lentas e
subdesenvolvidas, léguas distante da modernidade, sem citar explicitamente
aonde quer chegar, mas levando leitores mais experientes a intuírem a mensagem
do escritor não é tarefa para um autor comum. Enfim, elaborar tudo isso num
ambiente narrativo repleto de imaginação, recorrendo à fantasia para revelar a
realidade, é o que fez desse escritor um mestre num estilo que conhecemos como
realismo mágico. É o que conhecemos como arte. Arte por meio da escrita é o que
construiu o colombiano Gabriel García Márquez na obra definitiva, que
certamente muito contribuiu para que a ele fosse merecidamente concedido o
Prêmio Nobel de Literatura, de 1982.
A
obra de que falo é considerada a mais importante escrita em língua hispânica
depois de “Dom Quixote”, do espanhol Miguel de Cervantes. Falo de “Cem Anos de
Solidão”, um sucesso absoluto com mais de 50 milhões de exemplares vendidos. Um
clássico da literatura mundial. É dela que falaremos a seguir, depois de
apresentar o autor — se é que ele ainda precise de apresentação.
Escritor,
jornalista, editor e ativista político, Gabriel García Márquez nasceu no dia 6
de março de 1927, em Aracataca, Colômbia. Com a mudança dos pais para
Barranquilla, conviveu intensamente com os avós maternos, que o criaram em sua
primeira infância, e de quem recebeu intensa influência. Do avô, um veterano da
Guerra dos Mil Dias, escutou histórias que muito influenciaram suas obras
literárias. Estudou Direito e Ciências Políticas na Universidade Nacional da
Colômbia, mas não chegou a se graduar.
García
Márquez leu e viajou por muitas partes do mundo. Os autores que mais o
influenciaram foram o tcheco Franz Kafka, o mexicano Juan Rulfo e o
norte-americano William Faulkner. Foi-lhe concedido o Prêmio Nobel de
Literatura pelo conjunto de sua obra. “Cem Anos de Solidão” é considerado o
romance introdutor de um estilo literário: o realismo mágico. Como ativista
político, García Márquez se tornou um respeitado interlocutor de governos
latino-americanos. Dentre seus amigos, destacam-se Fidel Castro, de Cuba, e o
ex-presidente francês François Mitterrand.
A solidão da América Latina
Uma
família, um povoado, o passar do tempo e a imaginação de um escritor de talento
foi suficiente para nascer o romance que mais identifica a América Latina
consigo mesma. E aqui vai logo uma dica: a família Buendía e sua extensa
genealogia publicada na primeira página de “Cem Anos de Solidão” é um guia
fundamental para que o leitor entenda o que uma narrativa fluente, constituída
de longos períodos, quer dizer. Aconselho a todos a segui-la.
“Minha
família é mais importante que meus livros”, assim disse recentemente Gabo
(conhecido por esse apelido entre os mais íntimos) na senectude de sua vida. Os
Buendía e o povoado, Macondo, fizeram parte da infância desse colombiano,
vivenciada ao lado dos avós. Macondo muito se assemelha com sua cidade natal,
Aracataca. Os Buendía têm muito a ver com os Márquez. Tudo isso, acrescido de
coisas imaginárias, como aquelas ditas por Gabo no pronunciamento quando
recebera o Prêmio Nobel, em Estocolmo, na Suécia. Coisas que o tornaram o
mestre de um estilo que mundialmente o consagrou: o realismo mágico. “Porcos com
o umbigo no lombo, e uns pássaros sem patas cujas fêmeas usavam as costas dos
machos para chocar [...] cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de
cervo e relincho de cavalo.” É bem verdade que o homenageado se referia a
impressões de um navegante florentino sobre a América meridional, Antonio
Pigafetta, por ocasião de sua primeira viagem ao redor do mundo. Mas também é
verdade que coisas muito parecidas com essas foram contadas por seus avós. E
elas rechearam a imaginação de García Márquez e se fizeram presentes no retrato
da genealogia da família Buendía, que se confunde com a história da América
Latina, história tão repleta de revoluções, golpes e, lógico, muita solidão.
Solidão característica que conhecemos como subdesenvolvimento. A grandeza da
literatura de García Márquez se revela exatamente neste ponto: utilizar seu
micromundo para construir uma obra verdadeiramente universal, contada por meio
de coisas surreais.
A
impossibilidade de espaço nos impede de contar toda a história do século de
solidão vivenciado pelos Buendía, geração após geração. Mas não nos impede de
abordar o espírito que permeia seus personagens principais. Falemos um pouco
deles, pois são importantes para o entendimento do todo do romance, que se
alicerça em torno da genealogia da família.
26
meses de travessia da serra em busca de uma saída para o mar resultaram num
esforço que deu em nada. Para não fazer o caminho de volta, José Arcádio
Buendía fundou o povoado de Macondo. E assim nasceu “a aldeia mais arrumada e
laboriosa que qualquer outra que seus habitantes tivessem conhecido. Era de
verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e onde ninguém
tinha morrido”.
José
Arcádio, casado com sua prima Úrsula, teve nela a companheira que deu suporte
àquele espírito empreendedor do marido. “A diligência de Úrsula andava passo a
passo com a de seu marido. Ativa, miúda, severa, aquela mulher de nervos
inquebrantáveis” foi ela a única a sobreviver e acompanhar as seis gerações que
englobam o século da árvore genealógica da família Buendía. Acompanhou Úrsula o
nascimento de filhos, netos, bisnetos, tataranetos em torno de algo comum que
os identificava: a solidão.
Todos
os descendentes da família Buendía eram solitários, inclusive uma pessoa que
não fazia parte da família, mas era próximo de José Arcádio, numa identificação
que os unia pelo gosto que ambos tinham pelo poder da magia e da ciência. Falo
do cigano Melquíades, que era dotado de poderes mágicos, inclusive o de
adivinhar o futuro. “A ciência elimina distâncias [...] daqui a pouco o homem
vai poder ver o que acontece em qualquer lugar da terra sem sair de casa.”
O
cigano Melquíades carregava consigo uma previsão sobre a família Buendía, que
só seria decifrada um século depois, no momento em que um membro da família
conseguisse entender os pergaminhos do mago. Falaremos disso mais adiante.
A
segunda geração da família gerou três filhos legítimos. Digo legítimos, porque
se geraram filhos ilegítimos, originados do ventre de prostitutas ou não. E
aqui fazemos um parêntese: a constância de prostitutas nos romances de García
Márquez se deve à forte presença delas na vida do autor. Em suas memórias, ele
confessa que frequentou muitos bordéis para espantar algo que sempre o
acompanhou: a solidão.
A
personagem que emerge no romance para representar o universo das prostitutas
surge na segunda geração. Trata-se de Pilar Ternera, que se torna amante dos
dois filhos de José Arcádio Buendía: Arcádio e o coronel Aureliano. Estes dois,
e Amaranta, a outra filha, formam a tríade de solidão da segunda geração da
família. Petra Cotes seria, duas gerações mais tarde, a outra prostituta a ter
relações com membros da família Buendía.
A
ambiência das relações extraconjugais pode ser percebida na intimidade do
coronel Aureliano Buendía e sua amante: “Vim dormir com a senhora — disse ele.
Estava com a roupa besuntada de lodo e vômito. Pilar Ternera, que naquela época
vivia com seus dois filhos menores, não fez nenhuma pergunta. Levou-o para a
cama. Limpou seu rosto com um trapo úmido, tirou sua roupa, e depois despiu-se
por completo e baixou o mosquiteiro para que seus filhos não a vissem, caso
acordassem. Tinha cansado de esperar pelo homem que ficou, pelos homens que se
foram, pelos incontáveis homens que erraram o caminho de sua casa confundidos pela
incerteza das cartas do baralho”.
Vale
ressaltar outra passagem do romance que evidencia o quanto o mundo da
prostituição teve influência na obra de García Márquez: “Vem cá, você também —
disse ela [a prostituta] — São só vinte centavos. Aureliano jogou uma moeda na
caixinha que a matrona tinha nas pernas e entrou no quarto sem saber para quê.
A mulata adolescente, com suas tetinhas de cadela, estava nua na cama. Antes de
Aureliano, naquela noite sessenta e três homens tinham passado pelo quarto”.
Todos
os personagens do romance padecem da solidão, não só pelo isolamento de
Macondo, mas, sobretudo, pelo próprio estado de espírito que caracteriza o
passar do tempo para a família Buendía.
É
o caso de Amaranta, que, tendo “chegado à velhice com todas as suas nostalgias
vivas”, morre solteira, relembrando amores por ela mesma rejeitados. Rebeca,
mulher do também solitário José Arcádio (da segunda geração), é outra solitária
que “tinha precisado de muitos anos de sofrimento e miséria para conquistar os
privilégios da solidão”.
E
assim, a solidão segue seu fluxo ante o passar das gerações da família Buendía.
É o que se pode constatar em Remédios, a bela filha de Aureliano Segundo (esse,
da terceira geração) e Santa Sofia de la Piedad. “Remédios, a Bela, ficou
vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo em seus
sonos sem pesadelos, em seus banhos intermináveis, em suas comidas em seus
horários, em seus profundos e prolongados silêncios.” Meme, filha de Aureliano
Segundo (da quarta geração) e Fernanda del Carpio, é outra que padece do mal da
solidão: “Estava tão segura de si mesma, tão aferrada à sua solidão, que
Aureliano Segundo teve a impressão que já não existia mais nenhum vínculo entre
eles”.
Resumindo:
a solidão é o estado de espírito que passa de geração para geração, como um rio
que segue seu curso até o rumo final. No caso da família Buendía, entre
arcádios e aurelianos que se envolvem em revoluções, inventos, amores na casa
grande e na senzala, corrupções, a identidade da América Latina vai sendo
delineada, tendo como instrumento narrativo o realismo mágico. É exatamente
nesse ponto que se destaca a prodigiosa imaginação do autor que sabe como
ninguém construir a realidade por meio do inverossímil. Por trás dos
malabaristas de seis braços, do ancião de quase duzentos anos que havia vencido
o duelo de repentes, do padre que levita 12 centímetros do chão, da mulher que
come areia, dos filhos que nascem com rabo de porco, existe a história contada
da solidão de um continente que se construiu de uma maneira própria.
O Dom Quixote de García Marquéz
Atente
para as proezas surreais do herói construído pela imaginação para delinear o
perfil de seu Quixote: promoveu trinta e duas rebeliões armadas, não ganhando
nenhuma delas; teve dezessete filhos com dezessete mulheres diferentes; escapou
de quatorze atentados, de setenta e três emboscadas e do pelotão de
fuzilamento; sobreviveu a uma tentativa de suicídio. Foi liberal até o fim,
lutando contra os conservadores. Depois dessa odisseia amalucada, morreu na
mais absoluta solidão, na velhice. Velhice que, para o Dom Quixote de García
Márquez, nada mais era do “que um pacto honrado com a solidão”. Morrer só,
“enfiando a cabeça entre os ombros, como um franguinho, e ficou imóvel com a
testa apoiada no tronco da castanheira. A família não ficou sabendo até o dia
seguinte, às onze da manhã, quando Santa Sofia de la Piedad foi jogar o lixo
baldio dos fundos e reparou que os urubus estavam baixando”.
Este
é o perfil do coronel Aureliano Buendía, um herói de causas perdidas, que tanto
se assemelha com o espírito de nossa América Latina, tão cheia de revoluções,
golpes e contragolpes sem sentido. Por meio do espírito quixotesco do coronel
Aureliano Buendía, García Márquez revela nossa identidade, ao conectar o
micromundo mágico das histórias contadas pelos seus avós com o terreno mais
nobre que a literatura proporciona aos leitores: o deleite da realidade
interior com a exterior. Ou seja, a conexão do espírito de nosso ser com a
realidade política e econômica de um continente solitário.
Os temas políticos do romance
Que
fatores mantêm a América Latina presa às amarras do subdesenvolvimento?
Certamente muito desses fatores encontram suas explicações na natureza política
comum aos países da região que nos condena a ser o que ainda somos: uma
periferia do capitalismo mundial.
Na
condição de grande intelectual compromissado com a região, García Márquez não
deixa de denunciar todas essas adversidades em sua obra maior. Para isso,
aponta as lutas do coronel Aureliano Buendía como resultantes do conflito entre
duas ideologias políticas: a dos liberais e a dos conservadores.
Ser
liberal era ser maçom, contra a igreja, favorável ao matrimônio civil, ao
divórcio, ao reconhecimento de filhos legítimos e ilegítimos e contra o
autoritarismo. Ser conservador é encontrar-se no espectro diametralmente
oposto: é ser favorável à manutenção da ordem, apoiar a igreja e a moral
familiar. O coronel Aureliano Buendía se identifica por completo com a causa
liberal e luta por ela.
A
perpetuação no poder, tão comum nos regimes autoritários, é outro tema que
García Márquez não deixa escapar. “O governo conservador, com o apoio dos
liberais, estava reformando o calendário para que cada presidente ficasse cem
anos no poder.”
Além
disso, os desequilíbrios gente-terra, corporificados pela reforma agrária, é
outra questão abordada por García Márquez, que muito se atrela à solidão e ao
subdesenvolvimento do continente. “Os latifundiários liberais, que no começo
apoiavam a revolução, haviam firmado alianças secretas com os latifundiários
conservadores para impedir a revisão dos títulos de propriedade.”
Outro
malefício que mantém a América Latina subdesenvolvida é sem dúvida a maior praga
do subdesenvolvimento: a corrupção. Esta se encontra presente no romance, na
figura de Arcádio (da terceira geração), prefeito de Macondo: “Anos depois,
quando o coronel Aureliano Buendía examinou os títulos de propriedade,
encontrou registradas em nome de seu irmão todas as terras que se avistavam da
colina de seu pátio até o horizonte, inclusive o cemitério, e que nos onze
meses de seu mandato Arcádio havia carregado não apenas o dinheiro dos tributos
mas também o que cobrava do povo pelo direito de enterrar seus mortos nas
terras de José Arcádio [da segunda geração]”.
A
Companhia Bananeira, que se instala em Macondo, simboliza a face mais visível
da inserção da América Latina no capitalismo mundial: a de eterna exportadora
de matéria-prima. Aos ciclos de decadência sucedem os ciclos de euforia,
mantendo todo um povo preso às amarras do subdesenvolvimento. Um observador
arguto como García Marquéz não deixou de estar atento ao problema: “Macondo
estava em ruínas. Nas imensas poças d’água das ruas restavam móveis
despedaçados, esqueletos de animais cobertos de lírios colorados, últimas
recordações das hordas de aventureiros que fugiram de Macondo tão atarantados
como haviam chegado. As casas levantadas com tanta urgência durante a febre da
banana tinham sido abandonadas. A companhia bananeira desmantelara suas
instalações. Da antiga cidade cercada só restavam os escombros”.
Uma estirpe condenada
O
fecho de “Cem Anos de Solidão” se dá no momento em que os pergaminhos do cigano
Melquíades são decifrados pelo filho bastardo de Meme (da quinta geração) com
Maurício Babilônia: Aureliano Babilônia (da sexta geração). Neles, estava
prevista uma maldição para a família Buendía: a de que duas outras pessoas
dessa mesma família não poderiam ter filhos juntas, pois estes nasceriam com
alguma deformidade. José Arcádio Buendía e Úrsula era primos. A
consanguinidade não poderia se repetir.
Aureliano
Babilônia teve um filho com Meme sem saber que esta era sua tia legítima.
Repetiu-se a consanguinidade, concretizando-se, assim, a previsão do cigano: o
rebento, Aureliano (da sétima geração), nasceu com um rabo de porco e morreu
devorado por formigas. Encerra-se assim a arvore genealógica da família, pois,
como estava previsto nos pergaminhos do cigano, “era irrepetível desde sempre e
para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma
segunda chance sobre a terra”.
E
assim García Márquez conseguiu materializar com muito suor e talento o estalo
que teve na estrada da cidade do México para Acapulco, quando sentiu que estava
maduro para conceber sua obra-prima. Escreveu o seu Quixote, que o colocou no
primeiro time dos maiores escritores do século 20. Um escritor reconhecido por
todos — inclusive pela Academia Sueca, que lhe concedeu a glória de ser
laureado com um Prêmio Nobel de Literatura. Gabriel García Márquez será sempre
eterno.
Ilustrações: Carybé
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