Por Edival Loureiro - Revista Bula
Todo
mundo sabe que esse alvoroço da população que avassala as autoridades começou
em protesto a um acréscimo de 20 centavos no preço dos passes do transporte
urbano. Todo mundo sabe, mas ninguém acredita. Ninguém dá conta de entender
como uma merreca de 20 centavos possa causar tamanha revolta e euforia numa
população que sempre foi tratada como frouxa e sem noção. Pode ser que continue
a ser tratada como sem noção, mas como frouxa, nunca mais. Leia mais
Os
políticos ficaram atônitos diante de tanto furor, esperando que os
comentaristas pudessem apresentar alguma explicação para o fato inesperado.
Entraram em campo primeiramente os marqueteiros, como se a revolta fosse
decorrente de algum entrave no setor de oferta e demanda. Vieram depois os
cronistas, os articulistas, os cientistas sociais, os analistas políticos, os
palpiteiros ocasionais e toda sorte de modeladores de acontecimentos e
formadores de opinião.
Uns
alegaram dívidas históricas do país não resgatada para com a população, ou
mesmo uma sequência de desmandos que vem se alastrando por séculos até saturar
o fígado da população e virar essa indigestão encarniçada. Outros alegaram
problemas de conjuntura, com a inflação subtraindo o poder de compra da classe
média e deixando todo mundo irado. Sentimento esse potencializado pela
corrupção do poder constituído, impunidade de criminosos e gastos supérfluos,
enquanto os serviços públicos, como educação, saúde e segurança se degringolam
dia a após dia nos quatro cantos do país.
Institutos
de pesquisas também saíram a campo para tirar uma súmula dos motivos
supostamente difusos que empurraram a população para o levante. Constataram,
dentre outras, que a maioria que reivindica melhorias no transporte público
sequer utiliza o transporte coletivo. É como se a classe média tradicional,
tida como individualista e alienada, de repente, mudasse de atitude e começasse
a se solidarizar com o pessoal mais abaixo da escala social e até liderasse
esse movimento fenomenal em favor dos irmãos menos favorecidos. Em favor
daqueles que dependem do capenga e sucateado transporte público para exercer o
sagrado direito de ir, vir ou mesmo permanecer, depois de ter ido ou vindo.
Suponhamos,
já que constatação fenomenológica demonstrável ninguém conseguiu ainda,
suponhamos que toda essa comoção tenha sido mesmo pela merreca de 20 centavos
de acréscimo nos passes. E não pelo suposto fosso histórico e conjuntural que o
país vive entre o que é de fato e o que poderia ser. Alguém diria que essa possibilidade
é contraditória em termo, pois a pesquisa, como já foi dito, demonstra que as
lideranças identificadas são de uma classe média estabelecida que não é usuária
de transporte público. Mas a explicação pode estar exatamente neste simulacro
de contradição.
Nada
mudou tão espetacularmente. A classe média continua não solidária e
individualista como sempre. Continua com insufilme na janela de casa, nas
portas do carro, no vidro dos óculos, na pele. Tem insufilme até na alma. Essa
coisa de defender direitos dos outros não seria uma recaída repentina. Mas sim
uma fórmula nova de exercer o seu velho individualismo e a carência de empatia
pelo sofrimento alheio.
Ocorre
que com o acesso de milhões de pessoa ao consumo, a chamada classe média
emergente vem ocupando os espaços que antes eram ocupados pela classe média
tradicional. Os antigos da classe média são um pessoal meio isolado,
circunspecto, de gestos sóbrios que têm muita dificuldade para rir. Já os
emergentes, que trazem os hábitos da pobreza em que viviam, é um pessoal
turbulento, de gestos espalhafatosos, que ri e até gargalham em qualquer lugar,
por motivo à-toa, causando inveja nos tradicionais. É um pessoal ainda
solidário, que se visita, faz festas por qualquer motivo. Esse pessoal
incomoda: está ocupando os espaços antes ocupados pela velha classe média. Os
bares, os restaurantes, as escolas, os clubes, as igrejas. Tudo está cheio de
sua alegria ruidosa.
As
ruas, então, já nem cabem os carros da classe média chegante, e ninguém mais
consegue exercer o direito à acessibilidade condignamente. Ai é que está o
ponto fulcral de todo o reboliço. O motivo pelo qual pessoas que nunca andaram
de ônibus vêm à rua liderando um movimento para que os passes não subam a
merreca de 20 centavos. Vem a público reivindicar a melhoria do sistema de
transporte coletivo. Não que a classe média tradicional queira de uma hora para
outra aderir ao transporte público. O que ela quer, na verdade, é que a classe
média emergente volte para o seu tradicional sistema de transporte e deixe as
ruas livres e desembaraçadas para os carrões da classe média tradicional
circular com folga e desenvoltura. Não apenas como meio de transporte
eficiente, mas como vitrine expositora da própria figura.
Essa
hipótese ficou bastante clara quando o pessoal do movimento Passe-Livre,
constituído pela tradicional classe média, que puxou o levante em São Paulo,
veio a público dizer que suas postulações já estavam sendo atendidas e que não
iria convocar novas passeatas. As reivindicações atendidas são exatamente a não
subida do preço do passe e a promessa de melhoria do sistema viário. Parece que
todo o reboliço foi mesmo motivado pelos 20 centavinhos. Ainda que por linhas
tortas. Os outros motivos como saúde, educação, segurança, gastos supérfluos,
corrupção e tal foram adicionados a posteriori, pela argumentação dos
moldadores de eventos.
Deus
nos livre de que essa hipótese esteja correta. Porque, se estiver, nós seríamos
mesmo uma nação de quinta. Uma nação que demora a acordar, e quando acorda, é
por motivo torpe! Uma nação em que, como
diria Karl Marx: Tudo que é sólido desmancha no ar.
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