Autor: Robson Ferreira Vilela
Na década de 1980 as músicas
sertanejas tinham entre os temas recorrentes o fim do amor, a dor (ou medo) de
ser abandonado e a paixão não correspondida. Hoje, com o chamado sertanejo
universitário, não apenas o estilo musical mudou — transformando-se num
subgênero pop que, em muitos casos, são diferenciáveis entre si —, como os
temas também mudaram. Não fiz nenhuma grande pesquisa para identificar os temas
da atualidade, mas examinando minha mente, tentando buscar dentro da limitada
quantidade de letras sertanejas universitárias que consigo resgatar, o tema que
me vem à mente mais facilmente é: pegar mulheres (no plural, claro!).
Eu poderia repetir o
comportamento de alguns e criticar a música ao dizer simplesmente que o sujeito
está comemorando, feliz da vida, por ter conseguido uma boa grana com a morte
do pai — o que representaria um ato de muita insensibilidade (da parte do
sujeito, não da minha). Poderia, inclusive, criticar aqueles que ouvem a música
e celebram, em tons de alegria, a morte do progenitor do sujeito. Poderia, mas
não o farei. É verdade que as músicas sertanejas, ou sertanejas universitárias,
estão repletas de construções logicamente frágeis e esteticamente inexistentes
que deixam transparecer a péssima formação do letrista — em que universidade
ele estuda mesmo?
Aí veio a herança do meu veio,
E resolveu os meus problemas,
minha situação.
Os versos acima ilustram o ponto
da virada em que o sujeito mudou de vida. Reparem que, apesar de o sentido dos
versos conduzirem para a constatação óbvia de que o pai do sujeito morreu, a
letra não diz isto explicitamente. E se não está dito, resta interpretarmos.
Lembremos que existe também a possibilidade de, estando ainda vivo, o pai do
sujeito ter entregue a herança ao filho. Não há como atestar a morte. Esta
leitura dupla é um dos elementos que dão charme aos grandes poemas; mas, pode
acontecer de aparecer em músicas sertanejas também.
Tô na grife, tô bonito, tô
andando igual patrão.
Este outro verso citado acima
serve para analisarmos agora um pouco do raso perfil do sujeito. Ter comprado
um carro caro o fez sair por aí “andando igual patrão”, mas não o transformou
em um. É o típico caso do emergente que, por não ter uma boa base
educacional-cultural, passa a emular o estereótipo daquilo que ele acredita ser
o comportamento de alguém que possua dinheiro e alta posição social. Não que
alguns endinheirados não sejam realmente caricaturas de si.
Mas, em que ponto entra
Machado de Assis nesta história? Vejamos: no livro “Memórias Póstumas de Brás
Cubas” o protagonista, Brás Cubas, é o típico burguês mimado pelo pai que não
vê obstáculos na vida, conseguindo tudo que quer com seu dinheiro. Foi à Europa
estudar e bacharelou-se mediocremente em Direito. De volta ao Brasil, nada fez
para destacar-se tendo continuado a viver à custa do pai. A crítica do livro
não estava centrada no fato de Brás Cubas ter dinheiro, mas sim no fato de ele
ter dinheiro e ser uma pessoa de péssimo caráter. A fortuna de sua família não
fazia dele alguém melhor, com valores melhores. De uma certa forma, ele era um
parasita social, que ironicamente morreu antes de criar aquela que teria sido
sua única contribuição para o mundo — um milagroso emplasto. Em resumo, ele
pôde viver sua vida vazia ancorado em seu dinheiro e isto o livrou, de certa
forma, do feedback social.
É aí que o sujeito da letra de
Munhoz & Mariano se encaixa. Após receber sua herança, a única coisa que
sabemos que ele fez com o dinheiro foi comprar um carro para pegar mulheres (no
plural). Porque agora já não era mais interessante pegar aquela que o esnobou
no passado e pela qual ele nutria interesse; pois estando num “padrão” acima,
pôde demonstrar toda sua maturidade devolvendo o mesmo comportamento,
esnobando-a de volta. Aqui se faz, aqui se paga? Afinal, ele pode escolher
porque “tá sobrando mulher”. E não importa se a música repete o preconceito de
que mulheres só se interessam por carro e dinheiro, pois os públicos masculinos
e femininos apreciam a música da mesma forma. A pergunta é: será que eles têm
noção de tudo isso? Será que o público continuaria cantando se analisasse
melhor o que a letra diz?
Resta ainda outra comparação
com a obra de Machado. Entendo que Brás Cubas foi um personagem criado para
servir de crítica a um tipo de comportamento — o burguês de vida vazia. Já a
letra da música reitera os comportamentos do sujeito: gaste seu dinheiro para
devolver o desprezo que alguém te deu. Seja mesquinho! E que o público cante
junto aplaudindo seu capricho infantil!
Uma professora minha da
graduação dizia que a poesia (ai, que heresia dizer isto aqui!) primeiro deve
ser sentida e depois entendida. Às vezes nos esquecemos disso, ou de sentir ou
de entender. No caso de uma música em linguagem simples, sem inversão de frases
e ideias muito elaboradas, o processo de compreensão deveria ser, também, mais
simples e, portanto, mais comum. Não é o que vejo. Mesmo prestando pouca
atenção neste tipo de letras, algumas vezes fico em dúvida se o público tem
real compreensão do que está ouvindo.
Apesar das diversas
entrevistas e apresentações dos cantores em programas de rádio, TV e internet,
não vejo discussões a respeito das letras dos sertanejos universitários. E quando
digo que as letras dos sertanejos universitários são ruins, a réplica pronta é
no sentido de a música mexer com os sentimentos do ouvinte. Machado de Assis
têm textos que, quando li, me causaram diversos sentimentos. Com o tempo,
estudando um pouco e percebendo vários aspectos do texto que me passaram
despercebidos na primeira leitura, aprendi a gostar ainda mais dos textos,
porque eu somei o “gostar” com o “conhecer”. E como diria um professor amigo
meu: “A gente gosta daquilo que a gente conhece”. Por que os defensores dos
sertanejos universitários não gastam algum tempo tentando conhecer mais a fundo
as letras cantadas por seus ídolos e buscam retirar delas algo além do óbvio?
Acho que sei a resposta, mas não direi aqui.
É verdade que eu poderia me
propor a esmiuçar a letra, mas meu interesse se perderia facilmente, então
deixo esta tarefa para os universitários. E o tema da música? Depois de tudo
que eu já disse, parece que “pegar mulheres” é o aspecto menos interessante da
letra. Sendo sincero, depois de tudo que foi dito, tenho medo. Medo de que
Machado de Assis não me perdoe por ter usado seu imortal nome numa vã
comparação.
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