Por Rafael Cardoso - Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro
Ni Person, ni ouvido!
O grito de ordem - que em português pode ser
traduzido como "nem perdão, nem esquecimento" - é ecoado há décadas
por aqueles que buscam justiça contra torturadores, assassinos, mandantes e
cúmplices da ditadura militar no Chile. Há exatos 50 anos, no dia 11 de
setembro de 1973, as Forças Armadas, lideradas pelo general Augusto Pinochet,
deram um golpe de Estado, que encerrou o governo socialista e democrático
de Salvador Allende.
O país se juntava, então, a outros vizinhos
latino-americanos que estavam sob o controle de governos autoritários, como era
o caso do próprio Brasil desde 1964. Foram 17 anos até que o Chile voltasse a
ter eleições presidenciais e as Forças Armadas deixassem o poder. Mas as
heranças sombrias desse período continuam a se fazer presentes na sociedade
chilena. Enquanto alguns lutam há décadas para achar os corpos dos familiares
desaparecidos na ditadura, ressurgem forças de extrema-direita e negacionismos,
e o país têm dificuldades para substituir uma Constituição criada no governo
Pinochet vigente até hoje.
Relembrar o golpe e a ditadura, nesse contexto atual, é um exercício importante de memória e de resistência contra um passado que insiste em não ir embora. Seja no Chile, no Brasil ou no restante do mundo.
Salvador Allende e Unidad Popular
Formado em medicina, Salvador Allende
construiu uma carreira ativa na política. Integrou o Partido Socialista tão
logo este foi fundado em 1933, deputado por Valparaíso e Quillota e ocupou o
cargo de ministro de Saúde, Previdência e Assistência Social entre 1938 e 1941.
A partir de 1945, se manteve no cargo de senador durante 25 anos. Durante esse
período, concorreu à presidência da República quatro vezes. Foi apenas na
última, em 1970, que conseguiu ser eleito.
Apoiado por uma coligação de partidos de
esquerda chamada Unidad Popular, Allende teve 36% dos votos. Uma vitória
apertada em relação ao segundo colocado, Jorge Alessandri, da coligação de
direita, com 34,9%; e 27,8% do terceiro, Radomiro Tomic. Pela primeira vez na
história, um político socialista e marxista chegava ao governo de um país por
meio de votação popular. O projeto político ficou conhecido como a “experiência
chilena”, que significava a via democrática até o socialismo, sem uma ruptura
revolucionária.
Apesar do começo promissor, o governo Allende
teve que lidar com um país ideologicamente polarizado, com um contexto
internacional desfavorável de Guerra Fria e com as próprias disputas internas
da esquerda. Uma ala grande da Unidad Popular era favorável a seguir o caminho
de Cuba, que em 1959 havia se tornado um país socialista pela via armada.
“Principalmente no primeiro ano de governo,
vai se criar uma sensação mais ou menos geral de bem-estar. As primeiras
deliberações são de elevação salarial, o que vai gerar um consumo desenfreado
de bens duráveis e não duráveis, especialmente domésticos. Então isso faz com
que haja uma sensação de bonança e apoio a um governo que se mostra exitoso. Já
no ano seguinte, começam os problemas com inflação, bloqueio norte-americano e
isolamento do Chile em relação à social-democracia europeia, à União Soviética
e à China. Isso agrava os problemas econômicos o governo começa a entrar em um
movimento declinante”, diz o historiador Alberto Aggio, da Universidade
Estadual Paulista (Unesp).
Ele lançou em junho desse ano o livro 50
anos do Chile de Allende: Uma leitura crítica.
Crescia, dessa forma, a oposição interna ao
governo e o apoio dos Estados Unidos à derrubada de Allende. No dia 11 de
setembro de 1973, os militares decidem bombardear o Palacio de La Moneda, sede
presidencial. Allende comete suicídio e tem início longos 17 anos de ditadura.
Pinochet e a ditadura
Augusto Pinochet era o Comandante do Exército
do Chile quando aconteceu o golpe. Com o fim do governo Allende, uma Junta
Militar assumiu o poder no país. Pinochet foi nomeado Chefe Supremo da Nação em
junho de 1974 e, em setembro, presidente da República. Posição em que se
manteria até 1990.
A ditadura militar se caracterizou por
destruir o sistema democrático, encerrar os partidos políticos, dissolver o
Congresso Nacional, restringir o quanto pode os direitos civis e políticos e
por violar direitos humanos básicos. No plano internacional, ficou marcada por
integrar a Operação Condor, uma aliança entre ditaduras da América do Sul para
reprimir opositores políticos, e pelo alinhamento com os Estados Unidos no
contexto da Guerra Fria. Apesar das semelhanças, as ditaduras chilena e
argentina colecionaram tensões, principalmente por causa de conflitos sobre a
delimitação de fronteiras. A disputa pelo Canal de Beagle, na Patagônia, quase
levou os dois países a uma guerra em 1978 e só foi apaziguada por uma mediação
do papa João Paulo II.
Para os que viveram a ditadura chilena,
talvez nenhuma memória seja mais traumática do que a constante violação de
direitos humanos. Relatórios oficiais dão conta de que mais de 40 mil pessoas
foram vítimas dos militares, o que inclui torturados, mortos e desaparecidos.
Os principais afetados foram políticos de esquerda, dirigentes sindicais, militantes
e simpatizantes de partidos socialistas.
Por meio de uma base ideológica chamada de
Doutrina de Segurança Nacional, três órgãos de Estado colocaram em prática o
projeto de destruição dos que consideravam inimigos do regime: Forças Armadas,
Carabineros de Chile e Polícia de Investigações. Outros departamentos foram
criados especialmente para a repressão: Dirección de Inteligencia Nacional
(DINA, 1974-1977), Comando Conjunto (1975-1977) e Central Nacional de
Informaciones (CNI, 1977-1990, sucessora da DINA). Uma série de
lugares foi transformada em centros de tortura ou campos de concentração, como
o Estadio Nacional (1973), Estadio Chile (1973), o navio-escola Esmeralda
(1973), Academia de Guerra Aérea (1973-1975) e a Isla Quriquina (1973-1975).
O fotojornalista brasileiro Evandro Teixeira
foi enviado, pelo Jornal do Brasil, ao Chile em 1973 para
cobrir o golpe militar e lembra de um ambiente permanentemente hostil. Mesmo
sob constante vigilância, ele conseguiu registrar o tratamento violento contra presos
políticos no Estádio Nacional e ser o primeiro a fotografar Pablo Neruda morto,
ainda no hospital. O poeta chileno foi vítima de envenenamento, segundo
resultado de uma perícia internacional feita em 2023.
Mas foi um acontecimento, em tese mais simples
do que os anteriores, que levou Evandro a passar uma noite na prisão.
"Faltava carne de vaca para a população,
que só comia galinha e porco. Eu estava andando pela cidade e passei em frente
ao Ministério da Defesa. Vi um carro de açougueiro parado e um cidadão entrar
com um boi inteiro nas costas para o pessoal do quartel. Achei uma sacanagem e
fiz a foto", lembra Evandro.
"Não
olhei para trás. Tinha uma patrulha passando e me levou preso. Eu tive de
tentar enrolar o capitão que me interrogou, fingir que tinha tirado a foto por
acaso e dizer que eu era contra os comunistas. Como tinha um toque de recolher
todo dia a partir das 18 horas, passei a noite lá, com medo de ser fuzilado na
rua, e ele me liberou no dia seguinte".
Chicago Boys e Neoliberalismo
Assim que tomaram o governo, os militares
decidiram implementar um conjunto de medidas para abrir a economia chilena ao
capital privado e estrangeiro. Eles entendiam que o Estado deveria diminuir sua
participação em alguns setores. Adotou-se, principalmente entre 1974
e 1982, de forma ortodoxa, os postulados neoliberais dos Chicago boys.
Foram chamados assim os economistas chilenos que seguiram os estudos de
pós-graduação na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, e, ao regressarem,
passaram a influenciar as políticas econômicas do Chile centradas em
privatizações, redução do gasto público, abertura ao mercado externo e reforma
trabalhista.
Indicadores macroeconômicos, como o Produto Interno Bruto (PIB), tiveram variação positiva na maior parte do tempo em que durou a ditadura. Mas as classes altas foram as principais beneficiadas. Não houve distribuição de renda e a desigualdade social foi uma das marcas desse período. Somaram-se a isso índices altos de desemprego, diminuição de salários, aposentadorias e quebras de empresas.
Movimentos sociais e redemocratização
Uma nova Constituição nacional foi aprovada
em 1980, por meio da qual Pinochet estendia em pelo menos mais oito anos o
cargo de presidente. Mesmo diante desse reforço de poder, do crescente
autoritarismo e dos mecanismos de repressão, os movimentos de oposição
conseguiram se reorganizar durante a ditadura militar. Os primeiros dez anos da
ditadura são conhecidos por dificuldades maiores de mobilização. Mas a partir
de 1983, uma série de protestos começou a tomar conta do país.
“É
preciso destacar a reorganização subterrânea levada a cabo por variados e
distintos atores sociais e instituições. Entre eles, integrantes de alas da
Igreja Católica; movimentos por direitos humanos, com articulações no exterior;
as universidades e a ação dos estudantes para retomar as organizações
estudantis; além de uma rede solidária e política constituída no interior dos
bairros periféricos de Santiago. Esses últimos lugares dariam aos protestos
muitos de seus atores, como os jovens desempregados, sem perspectiva e sob
vigilância violenta”, diz a historiadora Fernanda Fredrigo, da Universidade Federal
de Goiás (UFG).
Diante da pressão social crescente, a
ditadura se viu obrigada a convocar um plebiscito em 1988, para que a população
decidisse sobre a continuidade do regime militar. Mesmo que não tenham sido
apresentados prazos concretos para isso, o processo teve adesão grande da
população, com mais de 92% dos habilitados para votar indo às urnas. As opções
eram o “Sim” pela continuidade e o “Não” pelo término do regime. O “Não”
venceu. Em 1989, foram realizadas as primeiras eleições
presidenciais. O vencedor foi o candidato da coligação Concertación, o
democrata cristão Patricio Aylwin Azócar.
“As
mobilizações sociais foram fundamentais na superação do medo, o que não é
pouco; no abalo da crença quanto à despolitização total da sociedade; na
retomada da ação política conjunta, fazendo emergir grupos políticos num
contexto em que as agremiações pareciam apenas fragmentadas; na experiência de
'unidade' da esquerda; na reinvenção das formas de luta cotidianas; e na
associação das diferentes formas de luta: greves, paralisações, trabalho
lento”,
analisa Fernanda Fredrigo.
A democracia estava de volta em 1990,
mesmo que sob profundos questionamentos. Afinal, Augusto Pinochet deixara a presidência,
mas continuava como líder das Forças Armadas. Em 1998, voltaria à política
oficial para assumir o posto de senador vitalício. No mesmo ano, seria
detido durante uma viagem a Londres para tratamento médico. Sobre ele
pesava um mandado de busca e apreensão, e pedido de extradição para a Espanha,
onde era acusado por violação aos direitos humanos. Ficou mais de 500 dias em
prisão domiciliar, mas contou com a ajuda do governo britânico, que o
extraditou de volta para o Chile.
Em 2002, renunciou ao cargo de senador
vitalício. Em 2004, investigações no Senado dos Estados Unidos apontaram que
ele tinha contas secretas fora do Chile, no valor de quase US$ 30 milhões,
frutos de corrupção enquanto era ditador. Pinochet morreu em 2006, sem nunca
ter sido julgado oficialmente pelos crimes que cometeu.
Questões mal resolvidas do passado
Durante quatro mandatos, de 1990 a 2010, a
coligação Concertación dominou a presidência do Chile. Nos três primeiros, foi
mantido o modelo neoliberal de economia. E apesar de terem dado ênfase nesse
período aos gastos públicos nas áreas sociais e terem conseguido taxas altas de
crescimento econômico, os governos não conseguiram resolver os problemas
históricos de distribuição de renda.
Entre 2006 e 2022, o país alternou entre as
presidências da socialista Michelle Bachelet e do direitista Sebastián Piñera. No
período, destacam-se a “Revolução dos Pinguins”, em maio de 2006, o maior
protesto de estudantes da história do país, com mais de 600 mil pessoas
exigindo reformas educacionais. E os protestos de outubro de 2019, cujo estopim
foi o reajuste de passagens do transporte público, e que envolveram mais de um
milhão de pessoas. O resultado foi a convocação de um plebiscito em 2020, em
que 78,27% dos votos decidiram pela criação de uma nova Constituição.
Em 2021, Gabriel Boric, do partido de
esquerda Convergência Social, venceu as eleições presidenciais e iniciou o
mandato em 2022. Para os defensores de um país mais progressista e
comprometido com a igualdade social, a eleição representou um momento de
esperança. Para alguns analistas, Boric se tornou símbolo de um modelo de
renovação para as forças de esquerda.
“Boric
é uma figura importante para a esquerda mundial. O Chile é um país pequeno, mas
que sempre teve uma posição distinta. A esquerda, em lugares como a Nicarágua
ou a Venezuela, é completamente anacrônica: só tem um ponto de apoio que é a
China. Em outros casos, a esquerda democrática está na política
latino-americana e pode ser dito que ele é progressista. Mas precisa avançar do
ponto de vista das relações sociais e culturais, porque mantém alguns vícios
conservadores”,
analisa o historiador Alberto Aggio.
Em setembro do ano passado, o texto da nova
Constituição, considerada progressista, foi votado e rejeitado por 62% da
população. O que colocou o país em um novo impasse: ao se manter preso em
normas e direitos definidos em 1980 na ditadura militar, não resolve
entraves históricos que bloqueiam o desenvolvimento social. Simbolicamente,
também não consegue dar um passo importante para enterrar os vestígios da
ditadura que assolou o país durante 17 anos.
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