Que as modernas técnicas de psicanálise, e a
psicologia em particular, devem muito aos filósofos gnósticos, todos os
profissionais e estudiosos desse ramo do conhecimento humano sabem. Afinal, os
dois mais famosos pesquisadores do inconsciente humano, Sigmund Freud e Carl
Gustav Jung, foram buscar na produção desses estranhos filósofos uma boa parte
da inspiração para desenvolver suas próprias pesquisas nesse campo. Como se
sabe, esses dois grandes exploradores das profundezas da mente viveram e trabalharam em um ambiente
intelectual onde os mitos e as crenças que influenciam o comportamento humano
eram estudados à luz deum arcabouço filosófico e científico muito pobre, como
era aquele que estava à disposição dos pesquisadores na época. Nesse complexo
situavam-se os escritores e poetas do movimento conhecido como idealismo
alemão, produtores de obras que investigaram, pela primeira vez, a vida e a
personalidade de Jesus, abstraindo a questão religiosa e o conteúdo ideológico
e emocional que ela naturalmente inspira, para situá-lo em um contexto
histórico, onde apenas o personagem e sua obra contam. [1]
Grande parte dessa febre intelectual que o
idealismo alemão experimentou pela figura histórica de Jesus e pelas raízes do
pensamento religioso foi provida pelos filósofos gnósticos dos primeiros
séculos do cristianismo. E Jung, principalmente, sempre demonstrou um grande
interesse pelo pensamento gnóstico, Desde o início da sua carreira como
psicanalista ele trabalhou com a possibilidade de encontrar um elo entre as
concepções gnósticas e as inspirações da psicanálise, conforme estavam sendo
desenvolvidas por Freud, Breuer e ele próprio. É nesse sentido que ele viu nas
complicadas teorias desenvolvidas por esses estranhos pensadores uma clara
relação entre os símbolos utilizados por eles e a fauna inconsciente da psique
humana, em relação aos mitos e lendas que a influenciavam na escolha de suas
crenças.
Todos os biógrafos de Jung informam seu
profundo interesse por assuntos gnósticos. Uma de suas mais estreitas
colaboradoras, Bárbara Hannah, ao escrever uma biografia do seu mestre,
salienta o grande apreço que ele tinha pelo gnosticismo: "Senti como se
finalmente tivesse um círculo de amigos que me entendessem", disse ele,
“pois as concepções que eles tinham a respeito de certas teses, como o
sofrimento do mundo e a sua vinculação a um mecanismo de “vontade e
representação” eram as mesmas que eu esposava. [2]
O grande problema apontado por Jung em
relação ao seu interesse por esses assuntos, era a falta de uma literatura
original. Em sua época, início do século XX, ainda não haviam sido descobertos
os pergaminhos da biblioteca de Nag Hammadi. Dessa forma ele teve que se valer
das poucas referências até então conhecidas, particularmente dos relatos
fragmentados e parciais, distorcidos pelos padres da Igreja Romana, em
particular os bispos Irineu e Hipólito, que eram ácidos críticos da experiência
gnóstica. Na época Jung tinha em mãos apenas os três códices redigidos em
língua copta, o Codex Agnew, o Codex Bruce e o Codex Askew, que continham as
análises feitas pelos bispos da Igreja Católica, e eles continham, todos,
pesadas críticas ao gnosticismo, que era por eles considerado nada mais do que
puras heresias. Ainda assim, Jung foi capaz de dar uma importante contribuição
aos estudos sobre o assunto, através da esclarecida interpretação que ele fez
sobre o tema, isolando o seu conteúdo filosófico da parte religiosa, fazendo
com que as concepções desses estranhos filósofos passassem a ser vistas por um
ângulo diferente daquele que sempre foi enfocado. O gnosticismo, com Jung,
passou a ser um assunto que interessava, não apenas á história da religião, mas
também à psicologia.
Embora não tenha constituído a razão
principal, foi em grande parte por causa dos estudos de Jung, associando as
concepções gnósticas às descobertas que a moderna psicologia fez acerca do
conteúdo inconsciente da mente humana, que a descoberta dos manuscritos da
Biblioteca de Nag Hammadi assumiu tanta importância no estudo do fenômeno
cristão. Eles situaram a experiência cristã no contexto histórico-filosófico da
época, como assunto de verdadeiro interesse político e sociológico e não apenas
no sentido religioso. A Biblioteca de Nag Hammadi, como se sabe, constitui o
maior acervo de escritos gnósticos originais já descobertos na História. Contém
escritos produzidos nos três primeiros séculos do cristianismo, e que serviram,
muitos deles, de base para a implantação de diversas seitas cristãs pelo mundo
todo. Esses escritos foram condenados pelo Vaticano, no Conselho de Nicéia, e
simplesmente foram banidos do mundo cultural cristão. Mas muitos foram salvos e
escondidos por monges da seita cenobita em um mosteiro do Alto Egito, na região
de Nag Hammadi, sendo redescobertos em 1945. [3]
Jung, como era de se esperar, demonstrou,
desde o início, um grande interesse pelas descobertas feitas em Nag Hammadi.
Aliás, foi um de seus amigos e colaboradores, o professor Gilles Quispel, que
tomou a iniciativa de traduzir e publicar os pergaminhos de Nag Hammadi,
colocando a disposição dos estudiosos a vasta literatura que o achado dos
pastores árabes continha. Essa publicação recebeu o nome bem sugestivo de Jung
Codex, em homenagem ao cientista que foi o responsável pelo renascimento de um
assunto que havia sido sepultado pela ditadura que a Igreja Católica impôs ao
espírito ocidental durante cerca de quinze séculos.
Muito se tem perguntado sobre as verdadeiras
opiniões de Jung a respeito do gnosticismo. Ao que parece, bem antes de os
modernos comentadores dessa disciplina terem chegado à conclusão de que o
gnosticismo nunca foi uma heresia, como queria a Igreja Romana, mas sim uma
experiência espiritual individual que se propôs justificar a doutrina cristã a
partir dos ensinamentos da filosofia defendida pelos neoplatônicos, Jung já se
recusava a classificar as ideias gnósticas como heréticas ou destinadas a
contradizer o credo cristão na sua forma original. Para Jung os filósofos gnósticos eram apenas
pessoas de grande sensibilidade, videntes que “pescavam” no inconsciente
coletivo da humanidade uma gama de símbolos e arquétipos compartilhados por
todos os povos do mundo, em todos os tempos, para dar sentido às suas
inspirações. Por isso, quando lhe perguntaram se o gnosticismo era uma
filosofia ou simplesmente um conjunto de mitos e concepções esotéricas sem
sentido, ele respondeu que, na sua opinião, os gnósticos não eram místicos que
compunham meras fantasias religiosas,
mas que eles trabalhavam com coisas muito reais, existentes nas
experiências interiores das pessoas. Assim, ele identificou nas bizarras teses
do gnosticismo uma forma original e poderosa de expressão da mente humana,
naquilo que ela tem de mais profundo e primordial, que é a sua estrutura
arquetípica. O gnosticismo, dizia Jung, em contraponto com o aristotelismo,
admitido pelo Vaticano como a única formulação filosófica que se adaptava ao
cristianismo, era uma experiência psíquica na qual o homem procurava vivenciar
a plenitude do Ser, sem cogitar da forma, ou do caminho que essa experiência adotasse. Por isso a oposição, que desde logo
lhe fez a Igreja de Roma, cujo credo tinha pretensões de ser o único caminho
certo para a união do homem com Deus.
Jung pagou caro por essas opiniões a respeito
do gnosticismo. Afinal, na altura em que ele as manifestou, ainda era de se
temer a opinião oficial, defendida pela ortodoxia cristã, de que o gnosticismo
não passava de uma heresia, ou quando muito, de delírios metafísicos de uma
plêiade de escritores místicos, inspirados pelo neoplatonismo. Até hoje existe
quem carimbe o trabalho de Jung de “não científico” em razão de suas opiniões a
respeito dessa matéria, pois segundo os cristãos ortodoxos, o gnosticismo não
era coisa séria; em consequência, quem o tomasse para base de qualquer trabalho
científico também não o seria.
Na verdade, Jung não era um gnóstico no
sentido comum do termo, ou seja, um místico. Inclusive os seus próprios
seguidores sempre negaram essa evidência, face ao uso pejorativo que essa
expressão tem sido usada nos meios acadêmicos. É justificável que os
simpatizantes de Jung não gostassem muito de ver o seu mestre sendo chamado de
místico, esotérico e termos afins. Até porque a psicologia, que era a
disciplina com a qual ele trabalhava, ainda hoje é malvista em alguns círculos
médicos como uma disciplina de resultados muito duvidosos. E ao vinculá-la à
outra que se convencionou catalogar como “misticismo”, ou filosofia oculta,
como faz Sarane Alexandrian, por exemplo, muitos dos seguidores de Jung
preferem negar que ele fosse um gnóstico. [4],
Essa concepção, em nossa visão, constitui uma
falha de interpretação, pois o gnosticismo não se define como um conjunto de
doutrinas, mas sim como expressão simbólica de uma experiência psíquica, vivida
em um clima de intensa religiosidade. A psicologia junguiana encontrou nessa
experiência uma vivência espiritual, descrita em linguagem poética e
mitológica, que não obstante a dificuldade de traduzi-la em termos lógicos,
pouco inteligíveis à maioria das pessoas, ainda assim traduz experiências
perceptivas da mais alta significação para o entendimento do comportamento
humano.
Como o próprio Jung reconheceu, os gnósticos
não descreveram apenas os aspectos conscientes e inconscientes da psique
humana, mas também, e principalmente, exploraram de forma empírica o
inconsciente coletivo da humanidade e forneceram descrições e formulações das
várias imagens e forças arquetípicas que moldam esse inconsciente. Nesse
sentido os gnósticos se aproximaram mais da “alma coletiva” do mundo do que os
cristãos ortodoxos, que ao trabalhar com as expressões mais constrangedoras da
psique humana, ou seja, os componentes de defesa presentes no ego (egoísmo,
procura pelo prazer, luxúria, conforto, etc) os colocaram na categoria de
“vícios” que tinham que ser combatidos através de comportamentos que mais
mutilavam o espírito e o corpo das pessoas, ao invés de promover o seu
enriquecimento ontológico. Ou. utilizando a linguagem maçônica, mais cavavam
masmorras ao vício do que templos à virtude.
Já os gnósticos procuraram entender essas
manifestações do inconsciente coletivo da humanidade para aprender a lidar com
eles. E foi nessa atitude dos gnósticos que Jung encontrou uma expressão
particularmente valiosa da luta universal do homem para readquirir a sua
plenitude como Ser, através de um protagonismo ativo que tinha muito mais a ver
com o livre arbítrio, que segundo eles, Jesus tinha trazido à humanidade, do
que com o atavismo dogmático que a Igreja de Roma tinha imposto ao cristianismo
oficial.[5].
Segundo o pesquisador Morton Smith, que
descobriu o Evangelho Secreto de Marcos, um dos mais importantes escritos
gnósticos, os antigos seguidores da filosofia de Pitágoras e Platão também eram
chamados de gnósticos. Destarte, a palavra gnose, que significa iluminação,
insigh, conhecimento, descoberta, sempre ligada à experiência psíquica ou
religiosa, aparece nos escritos de vários autores ligados à diversas escolas
filosóficas, que incluíam até padres ortodoxos como Orígenes e Clemente de
Alexandria, por exemplo. Daí acreditar-se que os monges cenobitas, supostos
organizadores da Biblioteca de Nag Hammadi fossem estudiosos ecléticos e
ecumênicos, pois a sua biblioteca continha não só cópias dos tratados gnósticos
e herméticos, mas também exemplares da República de Platão e de obras de outros
escritores neoplatônicos. Os membros da suposta comunidade gnóstica do Alto
Egito provavelmente teriam definido a literatura gnóstica como qualquer
escritura de valor espiritual, capaz de produzir iluminação (gnosis) no leitor,
como hoje faz a Maçonaria e a Irmandade da Rosa-Cruz.
Esse é o interesse que, ainda hoje, move os
homens de espírito puro e de bons costumes a estudar o gnosticismo. Pois, como
diz o professor Samael Aun Weor, “enquanto existir uma luz na individualidade
mais recôndita da natureza humana, enquanto existirem homens e mulheres que se
sintam ligados à essa luz, sempre haverá gnósticos no mundo.”
A que eu saiba, não há nenhuma prova de que
Jung tenha sido iniciado maçom. As pesquisas que fiz a respeito não me deram
informações que confirmassem essa assertiva, já aventada por outros autores, de
que tanto Freud quanto Jung tenham sido Irmãos. Há, entretanto, algumas ilações
bastante interessantes a esse respeito que levam a suspeitar alguma filiação
desses grandes estudiosos da mente humana com a tradição maçônica. Pois ela
está bem presente nos trabalhos por eles desenvolvidos, através da forte
ligação que eles têm com a gnose, principalmente em relação à sua simbologia.
Esta também está presente, de uma maneira bem visível, na Maçonaria. A
propósito, o avô de Jung foi, comprovadamente, maçom regular, tendo sido,
inclusive, Venerável Mestre da Loja da cidade onde vivia, na Suíça.[6]
Nesse sentido é que apontamos para o
interesse de todo maçom que queira realmente aprender no que consiste a base
espiritual da sua arte, que se aprofunde um pouco no estudo da obra do gnóstico
Carl Gustav Jung. Na sua teoria dos arquétipos encontraremos uma substancial
parte da estrutura espiritual da tradição maçônica. E nela uma excelente
ferramenta para viver a Maçonaria como uma grande experiência espiritual. [7]
[1] O termo idealismo alemão designa um
sistema filosófico desenvolvido por famosos pensadores alemães do calibre de
Kant, Fichte, Hegel e Schelling que influenciou toda a cultura europeia da
época e continua até hoje a mostrar a sua força. Na literatura influenciou um
grupo de escritores na busca pelo Jesus histórico. Entre estes os
conhecidos Hermann Samuel Reimarus,
David Friedrich Strauss, Ernest Renan e o grande médico e humanista Albert
Schwartz, entre outros.
[2] Teses que eram, também, esposadas por
Schopenhauer, para quem o mundo era composto por vontade e representação (o que
ele é e o que pensamos que ele é). É um pensamento que tem muito a ver com as
teses gnósticas, até porque ambas carregam uma grande influência do chamado
neoplatonismo.
[3] A Biblioteca de Nag Hammadi contém um
conjunto de escritos feitos por cristãos dos três primeiros séculos da era
cristã, que revelam uma visão esotérica e mística acerca de Jesus e sua
doutrina. São diversos “evangelhos” atribuídos a discípulos, como Filipe,
Tiago, Judas etc, e outras pessoas que conviveram com Jesus, tais como Maria
Madalena, Nicodemos, José de Arimatéia, Pôncio Pilatos e outros. A esse
respeito, ver Os Evangelhos Gnósticos, publicado pela Editora Mercúryo, 1986.
[4] História da Filosofia Oculta- Saraiva Ed.
1986
[5] O gnosticismo era uma doutrina bem mais
democrática do que o cristianismo ortodoxo. A Igreja Romana, que no Concílio de
Nicéia adotou o chamado “credo paulino”, transformou Jesus em uma espécie de
ditador espiritual. Só através da fé em Jesus, na doutrina da sua morte e
ressurreição, dizia Paulo, o homem podia ser salvo. No paraíso cristão só
entrariam os batizados no sangue de Cristo. Já os cristãos gnósticos abriam
essa possibilidade para todas as pessoas, independente da religião que
professassem. A salvação se dava pelo conhecimento das coisas divinas e não
pela fé monolítica pregada por Paulo. Através do conhecimento (gnosis), o homem
podia libertar sua alma (centelha divina) da prisão da matéria em que ela fora
posta pelo “Deus mau” e se unir com seu Criador. Eram várias as formas de
gnosticismo, mas a que mais encantou os cristãos dos primeiros séculos foi
aquela que via uma contradição entre o Deus do Velho Testamento (o Deus dos
judeus) e o Deus do Novo Testamento (o que Jesus pregou). O primeiro, Deus dos
judeus, era um Deus mau, que fez o mundo material. Por isso o mundo era cheio
de crimes, injustiças, dores e tragédias. Já o outro Deus, que Jesus revelou,
era bom, compassivo, tolerante. Mas este Deus era desconhecido, não tinha nome,
era inacessível e não intervinha nas ações humanas. Só podia ser atingido pelo
conhecimento (gnosis) e pela prática de uma vida virtuosa e desapegada dos bens
materiais. Coisa que incomodava bastante os líderes católicos, que em sua
maioria, estavam profundamente envolvidos com o poder político e as riquezas
materiais.
[6] Vide o livro de Jean-Luc Maxence “Jung e
a aurora da maçonaria”, publicado pela Ed. Madras, 2010.
[7] Aos interessados no tema sugerimos a
leitura da nossa obra “O Tesouro Arcano”, publicado pela Editora Madras, 2013.
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