Por Roberto C. G.
Castro
Em sua maior parte escritos em hebraico, os documentos foram datados de entre 250 antes de Cristo e 68 depois de Cristo |
Em 1947, dois
beduínos árabes, percorrendo a região montanhosa e árida de Hirbet Qumran, no
deserto da Judeia, a 12 quilômetros ao sul de Jericó, em Israel, entraram numa
das várias cavernas do lugar e ali se depararam com vasos longos e cilíndricos,
que continham manuscritos muito antigos, alguns em estado fragmentário. Um
desses documentos – identificado mais tarde – era uma cópia do livro
bíblico de Isaías produzida entre 125 e 100 antes de Cristo.
O achado dos beduínos representou a maior
conquista da arqueologia do século 20. Atraídos pela
descoberta inicial, pesquisadores vasculharam a área, localizada na região
noroeste do Mar Morto, e – ao longo de nove anos, entre 1947 e 1956 –
trouxeram à luz 930 manuscritos que estavam guardados em 11 cavernas de Qumran.
Desse total, 210 reproduzem livros da Bíblia hebraica – que os
cristãos chamam de Antigo Testamento -, principalmente
os Salmos (36 cópias), o Deuteronômio (32) e
o Gênesis (23). Entre os manuscritos não bíblicos estavam
o Manual de Disciplina ou Regra da Comunidade, que descreve as
práticas e rituais da seita que produziu os manuscritos, os Hinos de
Ações de Graças e o Documento de Damasco, outro texto que
retrata o cotidiano da seita. Escritos em sua maior parte em hebraico – mas
também em aramaico e em grego -, os documentos foram datados de entre 250 antes
de Cristo e 68 depois de Cristo.
Setenta anos depois da façanha involuntária
dos dois beduínos, pesquisadores de várias partes do mundo ainda
discutem o significado da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, como
ficaram mundialmente conhecidos os textos encontrados nas cavernas de Qumran.
No Brasil, o debate foi enriquecido com o lançamento, em setembro, do
livro Manuscritos do Mar Morto – 70 Anos da Com 220 páginas, o livro
traz seis artigos de especialistas do Brasil e do exterior sobre diferentes
aspectos dos manuscritos – desde uma introdução geral aos documentos de Qumran
e a produção bibliográfica brasileira sobre o tema até uma análise da vida da
mulher na seita que produziu os textos. No final, a obra apresenta ainda um
apêndice com os títulos das matérias sobre os Manuscritos do Mar Morto
publicadas entre 1956 e 2017 nos jornais O Estado de S. Paulo, Folha
de S. Paulo e O Globo. “Os assuntos encontrados neste livro estão
entre os mais importantes já discutidos em nível mundial”, escreve na
introdução o organizador Fernando Vieira, que é doutor em História pela
Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor da Universidade de
Pernambuco.
Atualmente, os manuscritos encontrados
em Qumran estão guardados no Santuário do Livro, uma ala do Museu de Israel, em
Jerusalém. Boa parte deles foi publicada entre 1955 e 2009 pela Oxford
University Press, na série Discoveries in the Judean Desert.
Essênios?
Até hoje há divergências em torno da
identidade da comunidade de Qumran, informa o pesquisador Edson de Faria
Francisco, da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), no artigo
“Manuscritos de Qumran: Introdução Geral”, publicado em Manuscritos do Mar
Morto. Para uma parcela considerável dos pesquisadores, esse grupo poderia ser
identificado com os essênios, um dos vários ramos do judaísmo que floresceram
entre o século 2 antes de Cristo e os primeiros séculos da era cristã –
entre eles, os fariseus, os saduceus e os zelotes. Escritores antigos como
Fílon de Alexandria, Flávio Josefo e Plínio, o Velho citam esse grupo, mas não
há consenso entre os especialistas sobre as informações fornecidas por eles,
afirma Francisco. “A identificação da comunidade de Qumran com os essênios
continua em aberto até o presente momento.”
Apesar das
dúvidas, a “hipótese essênia” tem resistido ao tempo e continua a ser a
interpretação que mais bem explica as evidências, segundo o pesquisador
Dennis Mizzi, da Universidade de Malta, que assina o artigo “Qumran aos
Setenta”, também publicado no livro lançado pela Editora Humanitas. “É muito
improvável que novos dados venham a minar seriamente essa interpretação – o que
não quer dizer que ela é perfeita ou que não há espaço para modificações ou
refinamentos.”
Mas as incertezas
não se limitam à identidade do grupo que legou os manuscritos. Em seu artigo,
Mizzi cita várias outras questões que ainda constituem enigmas. “Setenta anos
depois, o trabalho mal começou”, escreve. Por exemplo, há dúvidas sobre a
cronologia e o uso dos edifícios construídos a partir do século 8 antes de
Cristo no topo do platô que dá vista para a costa noroeste do Mar Morto – que a
princípio não foram associados aos manuscritos -, hoje em ruínas. Existem
teorias que consideram Qumran não apenas um mero assentamento sectário essênio,
mas um espaço de culto ou um centro de purificação ritual ou até mesmo um
centro de produção de pergaminhos para a composição de manuscritos.
O tamanho da
população em Qumran também é motivo de disputa. Dependendo da teoria adotada, o
lugar pode ter abrigado entre dez e cem pessoas. Há dúvidas se essa população
vivia no assentamento ou nas cavernas. Mizzi elenca ainda outros mistérios:
“Quando os manuscritos chegaram em Qumram? Quem os levou para lá? Por que foram
depositados em cavernas e quando exatamente? Qumran era uma ‘biblioteca’? Todos
os manuscritos foram usados (ou lidos) no assentamento? Alguns vieram de outros
‘assentamentos sectários’ relacionados? Essas são algumas das questões não
resolvidas, e o trabalho futuro da arqueologia dos manuscritos poderá clarear
alguns deles.”
Para Mizzi, as
investigações sobre os Manuscritos do Mar Morto deveriam estar mais integradas
com a pesquisa em Antiguidade clássica, e não ficar restritas aos campos do
judaísmo antigo e dos estudos bíblicos, como ocorre atualmente. “Qumran era,
essencialmente, parte do mundo mediterrâneo”, destaca o pesquisador. “Nesse
sentido, é também um sítio clássico e, por isso, sua interpretação deveria ser
contextualizada por tal base.”
O artigo sobre a
vida da mulher na comunidade de Qumran é de autoria da pesquisadora Clarisse
Ferreira da Silva, pós-doutora pela USP, uma das maiores especialistas
brasileiras nos Manuscritos do Mar Morto. Analisando o Documento de
Damasco, Clarisse notou traços do cotidiano das mulheres naquela
comunidade. Segundo ela, a mulher permanecia sob a autoridade de seu pai até o
dia de seu casamento. “Ao pai cabia assegurar a ela um noivo adequado e ao
mesmo tempo não esconder seus defeitos ao potencial marido, assim evitando uma
maldição e talvez também um divórcio”, escreve Clarisse. “Ela, aparentemente,
não tinha qualquer papel no processo dos arranjos do casamento. Homens, por sua
vez, tinham a possibilidade, ou a obrigação talvez, de procurar o líder comunal
para o mesmo fim. Uma vez casados, as mulheres transitavam da autoridade do pai
para a do marido. Poligamia era interditada, mas não o divórcio ou o segundo
casamento. Também não era obrigatório casar apenas com mulheres provindas de
famílias vinculadas à seita.”
Outros artigos
publicados em Os Manuscritos do Mar Morto são “Demonologia e
teodiceia na apocalíptica judaica e em Qumran”, de César Carbullanca Núñez, da
Universidade Católica de Maule, no Chile, e “Ler a Bíblia hebraica
aos 70 anos do descobrimento dos Manuscritos do Mar Morto”, de Florentino
García Martínez, da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica.
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