EM SENTENÇA EMOCIONADA, DESEMBARGADOR PROTESTA CONTRA IMPUNIDADE


O desembargador Pedro Valls Feu Rosa, do Tribunal de Justiça do Espírito Santos, decretou a impunidade do assassinato do padre francês Gabriel Felix Roger Maire, ocorrido naquele Estado, em setença emocionada.

O padre Gabriel Maire trocou Paris pela vida em uma comunidade paupérrima de Porto de Santana, perto de Cariacica, em 1980, até ser brutalmente executado em 1989 por sua dedicação à luta contra as injustiças. No Estado do Espírito Santo, onde é muito elevada a quantidade de crimes impunes, o processo chegou a ficar suspenso por mais de nove anos.

O magistrado lamenta que o caso tenha chegado às suas mãos tão tardiamente, e revela que se esforçou para descaracterizar a prescrição do crime, mas esbarrou na legislação e na jurisprudência. Feu Rosa é de uma das muitas famílias capixabas, milhares, que lutam contra a impunidade: dois familiares foram assassinados, em 1990 e 1996, e os crimes jamais foram punidos. Ele desabafa, em seu voto:

- Hoje é um dos dias mais tristes de minha vida! Um dia de negação de minha profissão. De reflexão - e desilusão - sobre meu papel nesta vida. Cá estou, Desembargador de um Tribunal de Justiça, a cuja família o Poder Judiciário abandonou - e de forma vil - por duas vezes, obrigado a infligir idêntica dor à família de um sacerdote cujo único crime foi vir ao Brasil procurar semear o bem!.

Em tom indignado e contundente, mas elegante, o desembargador Pedro Valls Feu Rosa protesta contra o ritmo lento que garante a impunidade, mas se recusa a culpar as leis e os formalismos: "Mentira! Cínica mentira! Não há Código de Processo neste mundo que possa atrasar um julgamento por décadas a fio!"

Elogio a Sérgio Moro

Feu Rosa destaca, em seu voto, o trabalho desenvolvido pelo juiz Sérgio Moro, à frente da Operação Lava Jato, demonstrando que é possível, sim, concluir processos e prolatar sentenças no tempo adequado. "Ao longo de apenas três anos um único juiz, mesmo tendo diante de si as maiores, melhores e mais bem pagas bancas de advocacia do país, capacitadas a explorar cada meandro das leis, proferiu 34 sentenças, com 170 condenações contra 109 acusados poderosos, totalizando 1.680 anos, 3 meses e 25 dias de prisão. Recuperou para a União, ainda, valores próximos a R$ 3 bilhões", elogiou.

"Eu não sei se estas decisões estão certas ou erradas, se são justas ou injustas", diz ele, que não leu os processos da Lava Jato, "mas cabe-me, isto sim, com a responsabilidade de meu cargo, registrar que elas existem! Contrariando todas as probabilidades, foram prolatadas no tempo correto."

O desembargador afirma que o Código de Processo Penal utilizado na 13ª Vara Federal de Curitiba pelo Juiz Sérgio Moro é o mesmo a ser utilizado por todo o Brasil. É a mesma lei processual que rege os atos de todos os outros juízes brasileiros."

Leia a íntegra do voto do desembargador

França, 1º de agosto de 1936. Nascia Gabriel Felix Roger Maire. Manifestaria, desde a mais tenra infância, sua vocação para o serviço religioso. Foi assim que, aos 12 anos de idade, atravessou os portões de um seminário. Passados mais alguns anos, ei-lo ordenado Sacerdote, nos idos de 1963.

Não tive a honra de conhecê-lo pessoalmente. Mas, contemplando sua obra, posso afirmar, sem medo de errar, que se há uma palavra que possa descrever seu apostolado seja ela a "firmeza" - ao longo de sua caminhada, foram notáveis as posições firmes contra os maus e os abusos do Estado. Da tortura à corrupção, da negligência à insensibilidade, cada desvio dos poderosos era imediatamente alvo da ira santa deste notável Sacerdote.

Não por acaso, em pouco tempo seria escolhido Secretário-Geral do "Movimento Popular do Cidadão do Mundo", palco de atuação de todos aqueles que, independentemente de credo, convicção política ou nacionalidade, munidos apenas de coragem cidadã, queriam simplesmente dizer "não" - não à opressão, não às armas, não à miséria moral e material.

Aos 2 de outubro de 1980, deixou uma vida confortável em seu país para vir continuar sua peregrinação em Porto de Santana - um local então paupérrimo, em tudo diferente do brilho da "Cidade-Luz" que, com tanto desprendimento, deixara para trás.

Deparou-se, nesta nova fase de seu apostolado, com aquele que seria seu mais formidável inimigo: o mal infiltrado nas instituições, algo que justificadamente podemos denominar de "crime organizado".

Mas não recuou, nosso tão desprendido Sacerdote. Não se deixou intimidar. De forma quase que temerária, saiu em defesa dos oprimidos, que buscou conscientizar e organizar. De peito aberto, denunciou tenebrosos esquemas de corrupção.

Não tardaram a chegar, aqui e ali, as costumeiras "ameaças de morte", ainda tão comuns neste país, malgrado decorridas já quase quatro décadas. Calcule-se naqueles dias tão sombrios!

Foram avisos, telefonemas e intimidações as mais diversas. Mas nosso Sacerdote não recuou um milímetro sequer - entre o brilho da "Cidade-Luz" e as trevas das periferias de um local tão abandonado, optou por estas! Devotadamente, escolheu ali ficar.

Eis que, no dia 23 de dezembro de 1989, o Padre Gabriel Felix Roger Maire foi assassinado. Tombou vítima de um tiro certeiro que o atingiu na região torácica esquerda.

Foi esta a retribuição do Brasil a um Sacerdote cujo único pecado foi o de buscar ser luz para seus filhos. Assim agradeceu nossa Pátria a quem aqui chegou trazendo na bagagem não o mal e a cobiça, mas simplesmente uma imensa vontade de ajudar!

Porém, não seria esta a indignidade final que nosso país praticaria contra este Sacerdote. Faltava algo. Que ficassem impunes, seus algozes. Que, oprimido pelas gargalhadas dos maus, ficasse seu espírito a exclamar, com os versos de Castro Alves:

Justiça, ó Justiça,
Onde estás, que não respondes?
Em que mundo, em que estrela tu te escondes?

Sim, faltava a impunidade mais abjeta para que completa a vingança do mal contra aquele que ousou desafiá-lo. É assim que, decorridos 28 longos anos, recebo a triste tarefa de comunicar à Sociedade que o Poder Judiciário não dará resposta final alguma acerca deste crime. Coube-me o dever humilhante de anunciar que está tudo realmente prescrito.

Eu gostaria, pelas razões que mais adiante exporei, que isto não fosse verdade. Que não houvesse prescrição alguma. Mas devo curvar-me à letra fria da lei.

Confesso que tentei dar interpretação extensiva ao artigo 116 do Código Penal, segundo o qual não corre o prazo prescricional "enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime".

Porém, claro é que não há outro processo - no máximo houve um pedido de novas investigações. Além disso, jamais deixou de ser reconhecida, nestes autos, a existência do crime - discutiu-se, apenas e tão-somente, se teria havido crime de mando ou latrocínio, ou seja, sua definição jurídica.

Busquei, igualmente, sustentar que a prescrição não teria acontecido em função de ter ficado este processo suspenso ao longo de espantosos 9 anos e 21 dias.

No entanto o Supremo Tribunal Federal, em decisão da lavra de seu decano ilustre, já definiu que as causas de interrupção do prazo prescricional são taxativas, não admitindo ampliação. Confira-se:

"As causas interruptivas da prescrição penal - definidas, taxativamente, em "numerus clausus", no artigo 117 do Código Penal - estão sujeitas a regime de direito estrito, não comportando, em consequência, ampliação nem extensão analógica" (Habeas Corpus nº 69.859, Relator Ministro Celso de Mello).

Sim, eu tentei. Poderia ter adotado interpretações diversas, que transformassem a triste realidade que se me apresenta nestes autos. Mas o fato é que elas, por contrárias às leis e à orientação do Supremo Tribunal Federal, apenas prolongariam - de forma inútil e cruel, acrescento - o sofrimento da família da vítima e a angústia das pessoas de bem de nossa sociedade.

Foi caprichosa a vida, ao endereçar-me este processo. E assim porque sou, talvez, o único juiz brasileiro em condições de avaliar com perfeição a extensão da dor dos parentes da vítima - por já tê-la experimentado, e duas vezes.

Explico-me: no dia 08 de junho de 1990 foi assassinado a tiros, juntamente com seu motorista, meu saudoso tio, José Maria Miguel Feu Rosa, então prefeito de um dos mais importantes municípios deste estado. Minha família percorreu, ao longo dos anos, um calvário difícil de descrever.

Lutamos, por anos a fio, para que um simples júri fosse designado. Chegamos a ir ao Conselho Nacional de Justiça, pedindo providências - que foram adotadas, registro. Mas nem assim. Tudo ficou impune! Prescrito!

Eu conheço, sim, a dor da família do Padre Gabriel. Não me sai da memória o olhar perdido e sem brilho do meu saudoso pai ao receber, em seu leito de morte, a notícia de que o julgamento dos acusados pelo assassinato de seu irmão havia sido novamente adiado. Aquela cena, somada aos anos de sofrimento e ameaças que testemunhei e vivenciei, fere não o corpo, mas a alma. E a fere para sempre.

Este não foi o único ente querido que minha família perdeu para o crime. Aos 28 de setembro de 1996 tombou Divino Rosa Vecci, vítima de um tiro na nuca, disparado no meio de um comício, na presença de centenas de pessoas. Soa absurdo, mas também este delito ficou impune! Foi mais um que somente encontrou o arquivo!

Hoje é, pois, um dos dias mais tristes de minha vida! Um dia de negação de minha profissão. De reflexão - e desilusão - sobre meu papel nesta vida. Cá estou, Desembargador de um Tribunal de Justiça, a cuja família o Poder Judiciário abandonou - e de forma vil - por duas vezes, obrigado a infligir idêntica dor à família de um sacerdote cujo único crime foi vir ao Brasil procurar semear o bem!

Com o coração pesado, confesso, li e reli cada página deste processo. Cheguei a tentar buscar algum arremedo de conforto moral à memória da vítima na versão de que tudo teria sido um simples assalto! Um latrocínio!

Não consegui, porém. Afinal, como explicar a existência de nomes que se repetiriam em processos relativos a homicídios outros, todos vinculados ao crime organizado? Encontrei, também aqui, a prática tão comum do assassinato de testemunhas - até uma criança, filha de uma delas, foi vítima.

Como pode, meu Deus, ter sido tudo um reles assalto? A propósito, como morre gente assaltada em processos relacionados ao crime organizado! Como explicar-se, insisto, a repetição de procedimentos e nomes? A eliminação de testemunhas? Aliás, que assalto foi esse no qual os ladrões não levaram do relógio ao carro da vítima, o tão popular - e de fácil comercialização - Fusca? Que assalto foi esse no qual os ladrões sequer reviraram os bolsos da vítima?

Foi assim que, aos 09 de outubro de 1991, o Tribunal de Justiça determinou a suspensão do andamento deste processo, a fim de que restasse apurado crime de mando. Eis que 48 horas depois surge uma sentença definindo ter sido roubo seguido de morte!

Um ano depois, nova decisão do Tribunal de Justiça determinando a instauração de Inquérito Policial para apurar-se crime de mando. E deste inquérito sequer notícia se tem! Sumiu! Desapareceu! Acha-se no "limbo jurídico", aquele lugar destinado a abrigar casos escabrosos até que prescrevam.

Como pode, meu Deus, à vista disso tudo, ter sido um reles assalto?

Não estou, com estas palavras, a criticar aqueles que, de boa-fé, divergiram de laudos periciais e sustentaram a versão de latrocínio. A ninguém é dado o monopólio da verdade, afinal. Se agiram de boa-fé, sejam respeitadas suas convicções. Apenas registro o fato de tratar-se, aqui, de crime a ser analisado sob um espectro mais amplo, qual o da repetição de nomes e práticas em diversos outros homicídios que se seguiriam, praticados contra aqueles que combatiam os maus - assassinatos que igualmente, em algum momento, foram rotulados como simples "assaltos seguidos de morte".

Mas vá lá que seja: se havia a dúvida, que o caso fosse ao júri, conforme determinado reiteradamente pelo Tribunal de Justiça. Mas sequer isso! Nosso sistema legal não conseguiu, ao longo de 28 anos, produzir um júri!

Este não foi um caso excepcional - e muito pelo contrário! Eis aí, em verdade, apenas um caso emblemático dentro de uma triste rotina.

Há quem coloque a culpa pelos sérios índices de impunidade que flagelam meu país sobre as leis e seus formalismos. Mentira! Cínica mentira! Não há Código de Processo neste mundo que possa atrasar um julgamento por décadas a fio!

Por coincidência - se é que elas existem - desenvolve-se no Brasil uma grande operação, denominada "Lava-Jato", destinada a combater supostos esquemas de corrupção que envolveriam membros da elite política e empresarial brasileira.

Ao longo de apenas três anos um único juiz, mesmo tendo diante de si as maiores, melhores e mais bem pagas bancas de advocacia do país, capacitadas a explorar cada meandro das leis, proferiu 34 sentenças, com 170 condenações contra 109 acusados poderosos, totalizando 1.680 anos, 3 meses e 25 dias de prisão. Recuperou para a União, ainda, valores próximos a R$ 3 bilhões.

Eu não sei se estas decisões estão certas ou erradas, se são justas ou injustas. Não li aqueles processos. Sim, não me cabe analisar tais sentenças. Mas cabe-me, isto sim, com a responsabilidade de meu cargo, registrar que elas existem! Contrariando todas as probabilidades, foram prolatadas no tempo correto.

Cumpre-me, sim, até mesmo enquanto cidadão, registrar que o Código de Processo Penal utilizado na 13ª Vara Federal de Curitiba pelo Juiz Sérgio Moro é o mesmo a ser utilizado por todo o Brasil. É a mesma lei processual que rege os atos de todos os outros juízes brasileiros.

Eu devo, sim, enquanto ex-presidente de um Tribunal de Justiça, e um de meus membros mais antigos, questionar este contraste chocante com a impunidade humilhante que a morosidade aqui nos traz. Como explicá-la?

Preocupado com tamanho descalabro, no dia de minha posse como presidente deste Poder tomei a iniciativa de reproduzir, na porta de entrada do Tribunal de Justiça, uma iniciativa que há anos adotara quanto ao meu próprio gabinete: a instalação de um painel contendo a relação dos processos pendentes e de quando datavam.

Sim, lá estavam os paineis com as relações dos processos envolvendo crimes de pistolagem, de corrupção, de improbidade, de tortura e de pedofilia. Cada um deles listados, de molde a possibilitar à população uma melhor vigilância.

Tive a cautela de criar, no "site" do Tribunal de Justiça, o serviço "Por onde anda?", no qual eram listados os processos mais emblemáticos - e esclarecida à sociedade a situação detalhada de cada um deles.

Eu acreditava, como acredito, que a partir de tal mecanismo seria possível, através da vigilância exercida pela Sociedade, evitar-se um quadro de impunidade vergonhoso, muito bem representado pelo processo que hoje julgamos - ou, melhor, largamos insepulto pela poeira do caminho.

Eu pensava, como ainda penso, que a criação de juizados e setores especializados para aqueles delitos de maior repercussão e interesse social daria um nome, uma face, uma responsabilidade pessoal a qualquer eventual morosidade, tornando-a menos provável.

Naqueles dias, porém, ganharam voz os que diziam ser desnecessária tal transparência - assim como a criação de setores especializados para casos mais graves.

Aguardei em silêncio, pacientemente. E hoje, passados já alguns bons anos, volto a perguntar: cadê as sentenças? Hoje, contemplando nestes autos a imagem do cadáver do Padre Gabriel Maire, volto a perguntar: cadê o júri? Neste momento, repassando pela memória todos os grandes processos de pistolagem e de corrupção que dormitam lá pelo "limbo forense", volto, sim, a perguntar: cadê os julgamentos?

Peço desculpas por ser repetitivo, mas se tudo aquilo não era necessário, então onde as sentenças?

Nos já distantes idos de 2007, ao atuar neste mesmo processo, quando o mesmo já contava 18 anos de idade, escrevi as seguintes palavras:

"Em verdade, a única explicação plausível para esta vergonhosa lentidão é o medo, aliado à notória carência de segurança e independência da Justiça Estadual. Medo de sofrer represálias. Medo de ser vítima de "armações" e de calúnias. Medo de ter a paz e a honra atingidas pela audácia dos maus. Medo até de morrer.

Não ignoro o quão desprotegida é a tranquilidade física e até mesmo moral do homem público no Brasil. Mas isto não justifica a omissão. Não estou, de igual forma, amesquinhando o debate para responsabilizar "A" ou "B". Este debate há que ser superior, por sério que é.

O fato é que, nos longos 18 anos passados, quanta coisa vimos no Espírito Santo! Nossa Sociedade humilhada por crimes bárbaros como os que hoje apreciamos. E a omissão campeando. Algumas poucas autoridades inconformadas, pessoas de bem, sofrendo represálias as mais vis, de natureza física e moral - ora chamadas de "loucas", ora sofrendo ameaças, ora sendo caluniadas ou falsamente acusadas, sempre sob tentativas de desqualificação. Isto tudo sob as vistas de todos. E o medo vencedor, na forma de sucessivos impedimentos e protelações.

Nestes 18 anos, quantas pessoas pacatas colocaram suas vidas em risco prestando depoimentos corajosos, contundentes. E "quebraram a cara", se sacrificaram por nada, vítimas da omissão do Estado. Aliás, em função disso nosso Estado chegou a passar pela humilhação de uma "intervenção branca".

E nem assim acelerou-se o lento vagar destes processos! Isto é vergonhoso.

Como foi rápida a nossa Justiça ao enviar para uma cela um coitado que lá descobri após três anos e meio, acusado de tentativa de furto de uma bicicleta. Enquanto isso, os dois processos que hoje apreciamos já quase na "maioridade" dos 18 anos! Que vergonha! O Poder Judiciário não pode ser "leão diante de carneiros e carneiro diante de leões". Somos a última linha de defesa da Sociedade. Não podemos ser omissos.

Nosso Poder tem excelentes Juízes em seus quadros. Juízes que cumprem seus horários, trabalham razoavelmente e têm bom nível. São pessoas de bem. Mas isto não basta. A Sociedade espera de todos os seus Juízes, e não apenas de uns poucos, que além de serem pessoas de bem, sejam também pessoas "do bem". Juízes que, mesmo padecendo sob represálias ou sob ameaça delas, cumpram com seus deveres.

O que não pode é alguns que se expõem no cumprimento do dever terem suas vidas, carreiras e honras feridas, vítimas de vinganças e tentativas de desqualificação cruéis, e ainda "darem com os burros n’água" por causa da omissão de outros.

É triste vermos as pessoas de bem deste Estado humilhadas há duas décadas pela convivência quase que diária com termos como "processos parados", "impunidade", "crimes insolúveis" e "crime organizado", dentre outros de mesmo jaez. Isto tem que ter um fim.

Advirto que não estou a "convocar cruzada alguma", a sugerir qualquer "caça às bruxas" ou a "condenar" sequer uma pessoa citada em tais processos. Absolutamente. Quem for inocente, que seja absolvido. Quem for culpado, que seja condenado. Tudo feito com respeito e isenção, de forma técnica, jamais pirotécnica. Mas que sejam julgados. O que este Tribunal não pode permitir é a vergonhosa perpetuação dos processos. Isto mancha a nossa instituição. Isto é uma vergonha".

Anexo a este julgamento, para fins de registro, aquele voto, proferido há uma década. Dez anos se passaram! E cá estou a decretar uma prescrição inadmissível. Uma década depois, eis-me novamente de cabeça baixa enquanto juiz, enquanto brasileiro e enquanto cidadão.

Fico, neste momento, a me perguntar: a que serviu a morte do Padre Gabriel Maire? De que valeram sua luta contra a corrupção e seu sacrifício?

Contemplo o meu país, e o vejo eleito pelo Forum Econômico Mundial como o 5º mais corrupto do planeta. Escuto os gritos de dor e fome dos miseráveis, vítimas daquela insegurança jurídica que aniquila qualquer economia nacional. Percorro as prisões, e nelas apenas encontro os anônimos das periferias - aquelas nas quais o Estado somente entra a bordo de tanques de guerra.

De que serviu, Padre Gabriel Maire, seu sacrifício? Desde sua morte, a situação só piorou! Mas que poderia este Sacerdote fazer, ao fim do cabo? Pouco, muito pouco. Porém, havia que se ouvir Abraham Lincoln, a ponderar que “a probabilidade de fracassarmos na luta não nos deve deter no impulso de combater por uma causa justa”. É verdade: afinal, como pontificou James Baldwin, “nem tudo o que se enfrenta pode ser modificado. Mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado”.

E assim as luzes do idealismo deste Sacerdote foram projetadas contra uma escuridão que muitos, mansamente, toleravam e ainda toleram. Calcule-se o impacto desta lufada de ar fresco! Porém, como preceitua conhecido ditado árabe, “os homens são como tapetes, às vezes precisam ser sacudidos”.

Sobre ele, assim disseram os maus: um maluco, este Padre - trocou Paris, na França, por Porto de Santana, em Cariacica! Sim, um maluco - mas daqueles aos quais se referiu George Bernard Shaw: “precisamos de algumas pessoas malucas; vejam só para onde as pessoas normais nos levaram”. Aliás, sobre a loucura de tentar lutar pelo bem, nunca tão verdadeiras as palavras de Akira Kurosawa, a exclamar que “em um mundo louco, apenas os loucos são sãos”.

E eis que, em meio a tantos desatinos, a caminhada deste religioso foi interrompida – afinal, já dizia José Ortega y Gasset que “a violência é a retórica do nosso tempo”. Mas, e eis aí o que nos importa, não foi em vão sua existência! O mal ainda existe, é certo. A impunidade ainda grassa. Os maus continuam a ser cortejados pelas pessoas de bem. Sim, isto tudo é verdade. Porém, restou um legado: nunca a impunidade e o mal estiveram tão expostos, tão claramente colocados em contraste com nossas instituições. Esta, e não tenho dúvidas em afirmar, a herança maior do Padre Gabriel Maire, que falou quando todos se calavam, e que ao ser calado nos legou o dever de observar a lição ensinada por Cícero, segundo quem “um homem não deve abster-se tanto que chegue a esquecer-se de que é homem”.

Sim, é a nossa vez de falar. É hora de as pessoas de bem atormentadas pela impunidade dos maus, materializada em processos bolorentos há décadas parados dentro de gavetas, gritarem, com Cícero, ‘Mundo das Leis, ó Mundo das Leis, até quando abusarás de nossa paciência’?

Ao mundo das leis admite-se o erro, pois que errar é humano. Mas a omissão e a covardia, estas são imperdoáveis. É quando peço licença a um outro filho ilustre da França, Émile Zola, para, com menos brilho mas igual sentimento, dizer uma vez mais "j’accuse" - eu acuso.

Eu acuso aqueles que, fazendo mau uso da nobre ciência do Direito, inviabilizam a Justiça. Eu acuso aqueles que constroem muros em torno dos pretórios, cegando todo um povo. Eu acuso aqueles que dão voz aos maus, confundindo os bons. Eu acuso aqueles bons que, por um silêncio ensurdecedor, tanto mal fazem.

Eu os acuso por cada crime que o exemplo da impunidade gera. Sim, eu os acuso de assassinato. De corrupção. De improbidade. De chacina. De tortura. De pedofilia. De traição à Pátria. De genocídio, até. Em suas mãos, lavadas na bacia de Pilatos, há inifinitamente mais sangue que nas dos anônimos que populam nossas mais infames masmorras.

Lutar contra este estado de coisas há que ser nossa missão. Eis o que devemos a este dedicado Sacerdote, o qual, e dirijo-me à sua família, digo ter vivido até o último dia de sua vida dentro daquele conceito de William Shakespeare segundo o qual “morrem os covardes muito antes de morrerem; os bravos provam a morte uma só vez”.

Sirva de consolo aos seus entes queridos o verso de Francisco Otaviano, a exclamar que “quem passou pela vida em branca nuvem, e em plácido palácio adormeceu, quem não sentiu o frio da desgraça, quem passou pela vida e não sofreu, foi espectro de homem - não foi homem, só passou pela vida, não viveu”. Sejamos todos, pois, cada um nós, dignos da herança do Padre Gabriel Roger Felix Maire, um bravo e um homem.

Quanto a mim, enquanto juiz, ao desempenhar o triste papel de abandonar pelo caminho de minha toga o cadáver insepulto que é este processo, somente resta, uma vez mais, pedir desculpas - particularmente no meu caso, amargas desculpas.

Excusez-moi, France, parce que la mort de votre fils Gabriel reste impunie. Excusez-moi, Église Catholique en France, parce que notre omission a fait d'un Père un martyr. Excusez-moi, Père Gabriel - excusez-moi, Père - pour l’absence de justice. Excusez-moi !

Fica, assim, decretada a impunidade, digo, a prescrição.



Prêmio Innovare

Em 2013, quando presidia o Tribunal de Justiça, Pedro Feu Rosa recebeu o Prêmio Innovare, que reconhece práticas inovadoras na Justiça, ao implantar o programa "Botão do Pânico" na proteção a vítimas de violência doméstica no Espírito Santo, Estado com o maior índice de violência doméstica no Brasil.

Na ocasião, medidas protetivas eram desobedecidas e as vítimas eram reiteradamente agredidas. O Botão do Pânico deu às vítimas o poder de reagir imediatamente e a segurança de que serão atendidas imediatamente, em caso de perigo.

A iniciativa nasceu a partir de um protocolo de intenções publicado na gestão de Feu Rosa, que serviu como norte para o seu mandato em 2012/2013. Em seguida, foi fechada uma parceria entre o Poder Judiciário Estadual, Município de Vitória e Instituto Nacional de Tecnologia Preventiva (INTP).



Postar um comentário

0 Comentários