Por Barbosa Nunes*
As
manhãs dos domingos estarão menos alegres. A dama adorada, sentada em seu trono
e aplaudida por um auditório composto por pais e avós, nos brindava com as
melhores páginas das músicas caipira/ sertaneja, interpretadas especialmente
por aqueles que não têm espaço na sofisticada televisão brasileira. Que
maravilha de seres humanos. Desde 1980 presenças de coração, com graça e amor, vivendo
momentos de felicidade, que são negados pela sociedade moderna em grande
maioria, aos pertencentes a terceira idade, milhares deles vivendo
solitariamente, abandonados e sem carinho.
"Viola
Minha Viola" transformou-se em um auditório nacional, conduzido pela
pureza e simpatia de Ignês Magdalena Aranha de Lima, que nasceu na cidade de
São Paulo, em 04 de março de 1925, artisticamente recebendo o nome guardado
eternamente em nossos corações, Inezita Barroso. Foi cantora, atriz,
instrumentista, bibliotecária, folclorista, professora, apresentadora de rádio
e televisão. Recebeu o título de Doutora Honoris Causa em Folclore e Arte
Digital pela Universidade de Lisboa. Atuou também em espetáculos, álbuns,
cinema, teatro, produzindo peças musicais de renome nacional e internacional.
Adotou o sobrenome Barroso após casar-se aos 22 anos com o advogado cearense
Adolfo Cabral Barroso. Teve só uma filha, Marta Barroso.
Com
7 anos, Inezita Barroso começou a cantar e tocar viola e violão. Estudou em
conservatório e aprendeu piano. Nasceu em família abastada e apaixonada pela
cultura. Foi distinguida com prêmios importantes como Trofeu Roquette Pinto,
Prêmios Guarani e Saci, condecorada com a Medalha Ipiranga, recebendo título de
Comendadora da Música Raiz. Proferiu muitas palestras sobre folclore e lecionou
em diversas faculdades, sendo homenageada com o título Honoris Causa em
Folclore Brasileiro. Em Goiás, foi homenageada com a Comenda Anhanguera, como
seu conterrâneo que desbravou sertões, ela também foi uma bandeirante da música
caipira. Lutadora por suas convicções muito antes do feminismo virar moda.
Arley
Pereira escreveu para a Editora 34 o livro "Inezita Barroso, a História de
uma Brasileira", em que ele conta: "Inezita já nos anos 1920, menina
bem nascida, comandava a turma de garotos ao mundo cor de rosa dos laços de
fita. Na fazenda, a jovem sinhazinha preferia a companhia da caipirada aos
saraus de piano. Só passava as férias no meio dos peões".
Acrescenta
que aos 7 anos ganhou um violão, mas ela gostava mesmo era de viola, coisa
proibida para mulheres. Nas festas de aniversário ouvia Raul Torres, amigo de
seu pai. Caminhou brilhantemente defendendo uma música por muito tempo excluída
das programações de rádio e televisão. Gravou mais de 80 discos, interpretou
para o astro Vittório Gassman. Tornou-se amiga da fadista Amália Rodrigues,
interpretou diversos gêneros musicais, inclusive o marcante samba
"Ronda", mas entregou-se de corpo e alma à música de raiz, desde
1950, quando estreou no rádio, tornando-se artista profissional em 1951, em
recital de Pernambuco, onde apresentou-se a convite do maestro Capiba, famoso
autor de frevos.
Num
brado de revolta, um grito de independência da mulher, corajosamente compôs e
começou a cantar uma música que trouxe de início crítica pejorativa, muita
graça e com incorreções, mas imortalizada, contando os desequilíbrios de uma
mulher. Hoje não há roda de viola, festas e em boates chiques que esta página
do folclore brasileiro, quando iniciada não é acompanhada pelos presentes. Nem
é preciso dizer o seu nome. "Moda da Pinga". Muitos intitulam como
"Marvada Pinga".
"Co'a
marvada pinga é que eu me atrapaio, Eu entro na venda e já dô meu taio, Pego no
copo e dali num saio, Ali mesmo eu bebo, ali mesmo eu caio, Só pra carregá é
queu dô trabaio, oi lá!
Venho
da cidade, já venho cantando, Trago um garrafão que venho chupando, Venho pros
caminho, venho trupicando, Chifrando os barranco, venho cambeteando, E no lugar
que eu caio já fico roncando, oi lá!
O
marido me disse, ele me falô, Largue de bebê, peço pro favor, Prosa de home
nunca dei valor, Bebo com o sor quente pra esfriá o calô, Se bebo de noite é
pra fazer suadô, oi lá!
Cada
vez que eu caio, caio deferente, Meaço pra trás e caio pra frente, Caio
devagar, caio de repente, Vou de currupio, vou deretamente, Mas sendo de pinga
eu caio contente, oi lá!
Pego
o garrafão é já balanceio, Que é pra mode vê se tá mesmo cheio, Num bebo de vez
por que acho feio, No primeiro gorpe chego inté no meio, No segundo trago é que
eu desvazeio, oi lá!
Eu
bebo da pinga porque gosto dela, Eu bebo da branca, bebo da amarela, Bebo no
copo, bebo na tigela, Bebo temperada com cravo e canela, Seja quarqué tempo vai
pinga na goela, oi lá!
Eu
fui numa festa no rio Tietê, Eu lá fui chegando no amanhece, Já me deram pinga
pra mim bebê, Já me deram pinga pra mim bebê, tava sem fervê, oi lá!
Eu
bebi demais e fiquei mamada, Eu caí no chão e fiquei deitada, Aí eu fui pra
casa de braço dado, Ai de braço dado é com dois sordado, Ai, muito
obrigado!"
Música
ousada. Grito de autonomia da mulher que bebe e se embriaga, mas se posiciona
assim dizendo: "Prosa de home nunca dei valor".
Inezita
Barroso cantou páginas como "Tristeza do Jeca", "João de
Barro", "Rio de Lágrimas", "Menino da Porteira",
"Romaria", "Poeira", "Pagode em Brasília",
"Adeus Minas Gerais" e diversos outros ritmos, inclusive tango. Mas a
saudade de Inezita baterá muito forte sempre quando ouvirmos sua composição,
também um hino de expressão perfeita de sentimento.
"Lampião
de gás, Lampião de gás, Quanta saudade, Você me traz. Da sua luzinha verde
azulada, Que iluminava a minha janela, Do almofadinha lá na calçada, Palheta
branca, calça apertada.
Do
bilboquê, do diabolô, Me dá foguinho, vai no vizinho, De pular corda, brincar
de roda
De
benjamim, jagunçu e Chiquinho. Lampião de gás, Lampião de gás, Quanta saudade
Você me traz.
Do
bonde aberto, do carvoeiro, Do vossoureiro, com seu pregão, Da vovózinha, muito
branquinha, Fazendo roscas, sequilhos e pão, Da garoinha fria, fininha.
Escorregando pela vidraça, Do sabugueiro grande e cheiroso, Lá no quintal da
rua da graça.
Lampião
de gás, Lampião de gás, Quanta saudade Você me traz".
Inezita
Barroso. Você não foi. Você estará entre nós eternamente. No espaço celestial,
todos os domingos de manhã, surgirá entre estrelas iluminadas e aplaudida pelos
nossos pais e avós que lá se encontram, todos de pé, sorridentemente, ouvindo
dizendo com o seu sorriso encantador:
"VIOLA
MINHA VIOLA, ÊTA PROGRAMA QUE EU GOSTO"!
*Barbosa Nunes é Grão-Mestre Geral Adjunto do GOB
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