Separatismo no Sul:
A fala de Jorginho Mello reacende um debate antigo e contraditório
Uma declaração “em tom de brincadeira” do
governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), durante um evento em
Curitiba, reacendeu um tema sensível e polêmico: o separatismo da Região Sul.
Ao sugerir que, caso o “negócio não funcionasse bem lá para cima”, bastaria
“passar uma trena” para formar um novo país, Mello fez referência direta ao movimento
“O Sul é Meu País”, que há mais de três décadas defende a criação de uma nação
independente composta por Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Apesar da informalidade da fala, o episódio
trouxe à tona uma pauta identitária complexa, marcada por contradições
históricas, sociológicas e políticas.
Raízes do separatismo: entre revoltas e
centralismo
A ideia de separar o Sul do restante do Brasil
não é nova. Suas raízes remontam ao século XIX, em movimentos como a Revolução
Farroupilha (1835-1845), no Rio Grande do Sul, e a Guerra do Contestado
(1912-1916), entre Paraná e Santa Catarina. Tais conflitos refletiam tensões
contra o poder central do Império ou da República recém-instalada, que reprimia
duramente movimentos autonomistas por todo o país — incluindo a Cabanagem no
Grão-Pará e Canudos na Bahia.
Para o sociólogo Gabriel Pancera Aver, da Universidade Estadual de Londrina, o Brasil se unificou “em cima de uma série de violências”, o que deixou feridas e ressentimentos que reaparecem em discursos de identidade regional e de insatisfação com o modelo federativo.
O
movimento “O Sul é Meu País” e o ressentimento contra Brasília
Fundado em 1992, em meio a uma crise política nacional, o movimento O Sul é Meu País sobreviveu a outras iniciativas separatistas que perderam força com o tempo. Seu discurso se ancora fortemente no argumento de que o Sul contribui mais com impostos do que recebe em serviços públicos do governo federal.
A organização já promoveu consultas informais —
a mais significativa em 2017, quando cerca de 325 mil pessoas votaram a favor
da independência dos três Estados sulistas. Embora o número represente apenas
2% do eleitorado regional, é considerado relevante dada a informalidade da
votação, feita por voluntários em farmácias e postos de gasolina.
Segundo Aver, a força do grupo não vem apenas de argumentos econômicos, mas de um discurso identitário, baseado no sentimento de pertencimento a uma suposta “nação sulista”.
Identidade
sulista: tradição ou contradição?
É justamente nesse aspecto identitário que
surgem as maiores incoerências. Aver analisou quase cem textos de líderes do
movimento e identificou uma retórica oscilante entre dois polos: por vezes,
exalta-se a herança indígena guarani; em outras, valoriza-se a imigração
europeia — especialmente alemã e italiana — como pilares da “identidade
sulista”.
Esse hibridismo cultural, embora real, é
manipulado de forma seletiva para reforçar uma ideia de “superioridade
regional” em relação ao restante do Brasil, o que frequentemente beira a xenofobia.
Migrantes nordestinos, paulistas e mineiros são retratados como “invasores” ou
“estrangeiros”, embora sejam brasileiros.
“Não se parte do pressuposto de que o outro é ruim, mas de que eu sou bom”, resume o sociólogo.
‘Sulistas ou brasileiros?’: a identidade em
disputa
Um ponto central das contradições do separatismo sulista é a oscilação entre a identidade sulista e a identidade brasileira. Aver observa que, em determinados contextos, como em crises climáticas, a solidariedade nacional é invocada. Foi o que ocorreu durante a tragédia ambiental no Rio Grande do Sul em 2024, quando o apoio do governo federal foi essencial.
Em contraste, quando o discurso se volta à crítica da política social — com o falso argumento de que o Nordeste é dependente da União e o Sul não — a identidade regional é evocada como prioritária.
Essa dualidade ficou evidente em entrevistas realizadas durante as últimas eleições. Uma eleitora, embora identificada com o separatismo, declarou que votaria contra a separação se houvesse um plebiscito, justificando com o slogan: “Brasil acima de tudo”, expressão associada ao bolsonarismo.
Segundo Aver, o bolsonarismo conseguiu reconfigurar a identidade política de muitos sulistas, que passaram a se ver mais como “brasileiros conservadores” do que como “sulistas separatistas”. O pesquisador se pergunta se, diante da perda de força desse movimento nacionalista, essa identificação com o Brasil ainda se manteria.
Falta de projeto prático: mais retórica do que
proposta
Apesar de sua persistência e organização, O Sul
é Meu País carece de um projeto político viável. Ao contrário de movimentos
separatistas bem estruturados, como o da Catalunha, o grupo sulista não
apresenta propostas claras sobre questões essenciais como moeda, sistema
judiciário, defesa nacional ou tratados internacionais.
“Ao examinar o estatuto e os documentos do
movimento, percebo um vazio de proposta prática”, afirma Aver.
O atual presidente da organização, Ivan
Feloniuk, afirma que a entidade está entrando em uma “nova fase”, com a redação
de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para estabelecer um federalismo
mais radical, no qual a União ficaria responsável apenas por defesa e política
externa. Estados e regiões controlariam diretamente suas leis civis, penais e
trabalhistas.
A meta é apresentar a proposta no Congresso Nacional do movimento, previsto para novembro de 2025, em Canoas (RS), e buscar apoio parlamentar para levá-la ao debate público.
Conclusão: bravata, identidade e desafio
constitucional
A fala do governador Jorginho Mello pode ter sido feita com leveza, mas revela a permanência de um sentimento separatista que se retroalimenta de ressentimentos históricos, crises políticas e sentimentos de pertencimento regional. No entanto, como apontam os especialistas, trata-se de um movimento mais identitário e retórico do que prático.
A proposta de separação enfrenta barreiras legais intransponíveis — a Constituição brasileira veda a secessão — e contradições internas que dificultam a construção de um consenso popular em torno da ideia.
No fim, o separatismo sulista talvez diga mais sobre as tensões do pacto federativo brasileiro e sobre como diferentes regiões se veem (ou não se veem) como parte de um todo nacional do que sobre um real desejo de independência. O “país do Sul”, por ora, permanece apenas como uma ideia politicamente útil, mas estruturalmente inviável.
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