Apresentação
O opúsculo de I. Kant Resposta à
pergunta: “Que é o iluminismo?” (1784) é, como se sabe, um texto clássico.
Por razões várias.
– É um dos manifestos mais
‘interessantes’ da Ilustração europeia. Como tal, figura não só como um
dos mais contundentes apelos ao exercício autônomo da razão, à liberdade
de pensamento, mas constitui ainda uma expressão sintomática de um momento
fundamental na estruturação da consciência moderna, com o seu afã de
novidade, de expansão e conquista do mundo e da natureza, de destruição da
ordem estática das sociedades, mas também com o seu desprezo da tradição,
com a vertigem do solipsismo.
– É, por outro lado, um texto-alvo no
recente debate sobre o projeto da modernidade e a reação pós-moderna
(assim na obra de M. Foucault e de J. Habermas, entre outros).
– Propõe ainda, de certo modo, um
ideal imperativo e inatingível – precisamente a consecução da genuína e
plena ilustração intelectual – e disso Kant parece dar-se conta no final
do ensaio, embora permaneça, contra o que promove, enredado nos
preconceitos da sua época, a saber, uma versão algo abstrata da razão
arrancada ao húmus da história, encarada sem os nexos relacionais que
ligam os seres humanos no seu destino; a inatenção ao papel quase
transcendental da linguagem na estruturação do pensamento; a falta
de consideração do vínculo entre razão e autoridade (nas suas múltiplas
formas), além da pedante convicção de que as idades anteriores aos tempos
modernos mergulhavam na ‘menoridade culpada’.
Estas observações, e muitas outras que
se poderiam aduzir, não serão um obstáculo para apreciar a luminosidade
deste opúsculo, merecidamente famoso; mesmo apesar dos seus limites,
encerra ainda uma exigência moral de auto-iluminação, que nunca é
bastante.
Artur Morão
Resposta à pergunta: “Que é
o Iluminismo?”
Iluminismo é a saída do homem da sua
menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade
de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal
menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na
carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se
servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a
coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem
do Iluminismo.
A preguiça e a covardia são as causas de os
homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do
controlo alheio (naturaliter maiorennes), continuarem, todavia, de bom
grado menores durante toda a vida; e também de a outros se tornar tão
fácil assumir-se como seus tutores. É tão cômodo ser menor. Se eu tiver um
livro que tem entendimento por mim, um diretor espiritual que em vez de
mim tem consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc.,
então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar,
quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa
aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo
sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é
que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles.
Depois de terem, primeiro, embrutecido os seus animais domésticos e
evitado cuidadosamente que estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo
para fora da carroça em que as encerraram, mostram-lhes em seguida o
perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é
assim tão grande, pois acabariam por aprender muito bem a andar. Só que um
tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante todas as tentativas
ulteriores.
É, pois, difícil a cada homem desprender-se
da menoridade que para ele se tomou quase uma natureza. Até lhe ganhou
amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu próprio
entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer semelhante tentativa.
Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes, do
mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua.
Mesmo quem deles se soltasse só daria um salto inseguro sobre o mais
pequeno fosso, porque não está habituado ao movimento livre. São, pois,
muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu
espírito arrancar-se à menoridade e encetar então um andamento seguro.
Mas é perfeitamente possível que um público a
si mesmo se esclareça. Mais ainda, é quase inevitável, se para tal lhe for
concedida a liberdade. Sempre haverá, de facto, alguns que pensam por si,
mesmo entre os tutores estabelecidos da grande massa que, após terem
arrojado de si o jugo da menoridade, espalharão à sua volta o espírito de
uma estimativa racional do próprio valor e da vocação de cada homem para
pensar por si mesmo. Importante aqui é que o público, antes por eles
sujeito a este jugo, os obriga doravante a permanecer sob ele quando por
alguns dos seus tutores, pessoalmente incapazes de qualquer ilustração, é
a isso incitado. Semear preconceitos é muito danoso, porque acabam por se
vingar dos que pessoalmente, ou os seus predecessores, foram os seus
autores. Por conseguinte, um público só muito lentamente consegue chegar à
ilustração. Por meio de uma revolução talvez se possa levar a cabo a queda
do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou dominadora, mas nunca
uma verdadeira reforma do modo de pensar. Novos preconceitos, justamente
como os antigos, servirão de rédeas à grande massa destituída
de pensamento.
Mas, para esta ilustração, nada mais se exige
do que a liberdade; e, claro está, a mais inofensiva entre
tudo o que se pode chamar liberdade, a saber, a de fazer um uso
públicoda sua razão em todos os elementos. Agora, porém, de todos os
lados ouço gritar: não raciocines! Diz o oficial: não
raciocines, mas faz exercícios! Diz o funcionário de Finanças: não
raciocines, paga! E o clérigo: não raciocines, acredita! (Apenas um único
senhor no mundo diz: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre
o que quiserdes, mas obedecei!) Por toda a parte se depara com a restrição
da liberdade. Mas qual é a restrição que se opõe ao Iluminismo? Qual a
restrição que o não impede, antes o fomenta? Respondo: o uso público da
própria razão deve sempre ser livre e só ele pode, entre os homens, levar
a cabo a ilustração; mas o uso privado da razão pode,
muitas vezes, coarctar-se fortemente sem que, no entanto, se entrave
assim notavelmente o progresso da ilustração. Por uso público da própria
razão entendo aquele que qualquer um, enquanto erudito, dela
faz perante o grande público do mundo letrado. Chamo uso
privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo
público ou função a ele confiado. Ora, em muitos assuntos que têm
a ver com o interesse da comunidade, é necessário um certo mecanismo em
virtude do qual alguns membros da comunidade se comportarão de um modo
puramente passivo com o propósito de, mediante uma unanimidade artificial,
serem orientados pelo governo para fins públicos ou de, pelo menos, serem
impedidos de destruir tais fins. Neste caso, não é decerto permitido
raciocinar, mas tem de se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da
máquina se considera também como elemento de uma comunidade total, e até
da sociedade civil mundial, portanto, na qualidade de um erudito que se
dirige por escrito a um público em entendimento genuíno, pode certamente
raciocinar sem que assim sofram qualquer dano os negócios a que, em parte,
como membro passivo, se encontra sujeito. Seria, pois, muito pernicioso se
um oficial, a quem o seu superior ordenou algo, quisesse em serviço
sofismar em voz alta acerca da inconveniência ou utilidade dessa ordem;
tem de obedecer, mas não se lhe pode impedir de um modo justo, enquanto
perito, fazer observações sobre os erros do serviço militar e expô-las ao
seu público para que as julgue. O cidadão não pode recusar-se a pagar os impostos
que lhe são exigidos; e uma censura impertinente de tais obrigações, se
por ele devem ser cumpridas, pode mesmo punir-se como um escândalo (que
poderia causar uma insubordinação geral). Mas, apesar disso, não age
contra o dever de um cidadão se, como erudito, ele expuser as suas ideias
contra a inconveniência ou também a injustiça de tais prescrições.
Do mesmo modo, um clérigo está obrigado a ensinar os instruendos de
catecismo e a sua comunidade em conformidade com o símbolo da Igreja, a
cujo serviço se encontra, pois ele foi admitido com esta condição. Mas,
como erudito, tem plena liberdade e até a missão de participar ao público
todos os seus pensamentos cuidadosamente examinados e bem-intencionados
sobre o que de errôneo há naquele símbolo, e as propostas para uma melhor
regulamentação das matérias que respeitam à religião e à Igreja. Nada aqui
existe que possa constituir um peso na consciência. Com efeito, o que ele
ensina em virtude da sua função, como ministro da Igreja, expõe-no como
algo em relação ao qual não tem o livre poder de ensinar segundo a sua opinião
própria, mas está obrigado a expor segundo a prescrição e em nome de
outrem. Dirá: a nossa Igreja ensina isto ou aquilo; são estes os
argumentos comprovativos de que ela se serve. Em seguida, ele extrai toda
a utilidade prática para a sua comunidade de preceitos que ele próprio não
subscreveria com plena convicção, mas a cuja exposição se pode, no
entanto, comprometer, porque não é de todo impossível que neles resida
alguma verdade oculta. De qualquer modo, porém, não deve neles haver coisa
alguma que se oponha à religião interior, pois se julgasse encontrar aí
semelhante contradição, então não poderia em consciência desempenhar o seu
ministério; teria de renunciar. Por conseguinte, o uso que um professor
contratado faz da sua razão perante a sua comunidade é apenas um uso
privado, porque ela, por maior que seja, é sempre apenas
uma assembleia doméstica; e no tocante a tal uso, ele como sacerdote não é
livre e também o não pode ser, porque exerce uma incumbência alheia. Em
contrapartida, como erudito que, mediante escritos, fala a um público
genuíno, a saber, ao mundo, por conseguinte, o clérigo, no uso público da
sua razão, goza de uma liberdade ilimitada de se servir da própria razão e
de falar em seu nome próprio. É, de facto, um absurdo, que leva à
perpetuação dos absurdos, que os tutores do povo (em coisas espirituais)
tenham de ser, por sua vez, menores.
Mas não deveria uma sociedade de clérigos,
por exemplo, uma assembleia eclesiástica ou uma venerável classis (como
a si mesma se denomina entre os Holandeses) estar autorizada sob juramento
a comprometer-se entre si com um certo símbolo imutável para assim se
instituir uma interminável super tutela sobre cada um dos seus membros e,
por meio deles, sobre o povo, e deste modo a eternizar? Digo: isso é de
todo impossível. Semelhante contrato, que decidiria excluir para sempre
toda a ulterior ilustração do gênero humano, é absolutamente nulo e sem
validade, mesmo que fosse confirmado pela autoridade suprema por parlamentos
e pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não se pode coligar e
conjurar para colocar a seguinte num estado em que se tornará impossível a
ampliação dos seus conhecimentos (sobretudo os mais urgentes), a
purificação dos erros e, em geral, o avanço progressivo na ilustração.
Isso seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original
consiste justamente neste avanço. E os vindouros têm toda a
legitimidade para recusar essas resoluções decretadas de um modo incompetente e
criminoso. A pedra de toque de tudo o que se pode decretar como lei sobre
um povo reside na pergunta: poderia um povo impor a si próprio essa lei?
Seria decerto possível, na expectativa, por assim dizer, de uma
lei melhor, por um determinado e curto prazo, para introduzir uma certa
ordem. Ao mesmo tempo, facultar-se-ia a cada cidadão, em especial ao
clérigo, na qualidade de erudito, fazer publicamente, isto é, por
escritos, as suas observações sobre o que há de errôneo nas instituições
anteriores; entretanto, a ordem introduzida continuaria em vigência até
que o discernimento da natureza de tais coisas se tivesse de tal modo
difundido e testado publicamente que os cidadãos, unindo as suas vozes
(embora não todas), poderiam apresentar a sua proposta diante do trono a
fim de protegerem as comunidades que, de acordo com o seu conceito do
melhor discernimento, se teriam coadunado numa organização religiosa
modificada, sem todavia impedir os que quisessem ater-se à
antiga. Mas é de todo interdito coadunar-se numa constituição religiosa
pertinaz, por ninguém posta publicamente em dúvida, mesmo só durante o
tempo de vida de um homem e deste modo aniquilar, por assim dizer, um
período de tempo no progresso da humanidade para o melhor e torná-lo
infecundo e prejudicial para a posteridade. Um homem, para a sua pessoa, e
mesmo então só por algum tempo, pode, no que lhe incumbe saber, adiar a
ilustração; mas renunciar a ela, quer seja para si, quer ainda mais para a
descendência, significa lesar e calcar aos pés o sagrado direito da
humanidade. O que não é lícito a um povo decidir em relação a si mesmo
menos o pode ainda um monarca decidir sobre o povo, pois a sua autoridade
legislativa assenta precisamente no facto de na sua vontade unificar a
vontade conjunta do povo. Quando ele vê que toda a melhoria verdadeira ou
presumida coincide com a ordem civil, pode então permitir que em tudo o
mais os seus súbditos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer
para a salvação da sua alma. Não é isso que lhe importa, mas compete-lhe obstar
a que alguém impeça à força outrem de trabalhar segundo toda a sua
capacidade na determinação e fomento da mesma. Constitui até um dano para
a sua majestade imiscuir-se em tais assuntos,ao honrar com a inspeção do
seu governo os escritos em que os seus súbditos procuram clarificar as
suas ideias, quer quando ele faz isso a partir do seu discernimento
superior, pelo que se sujeita à censura ‘Caesar non est supra
grammaticos’ [1] quer também, e ainda mais, quando rebaixa
o seu poder supremo a ponto de, no seu Estado, apoiar o despotismo
espiritual de alguns tiranos contra os demais súditos.
Se, pois, se fizer a pergunta – Vivemos nós
agora numa época esclarecida? – a resposta é: não. Mas vivemos numa época
do Iluminismo. Falta ainda muito para que os homens tomados em
conjunto, da maneira como as coisas agora estão, se encontrem já numa
situação ou nela se possam apenas vir a pôr de, em matéria de religião, se
servirem bem e com segurança do seu próprio entendimento, sem a orientação
de outrem. Temos apenas claros indícios de que se lhes abre agora o campo
em que podem actuar livremente, e diminuem pouco a pouco os obstáculos à
ilustração geral ou à saída dos homens da menoridade de que são culpados.
Assim considerada, esta época é a época do Iluminismo, ou o século
de Frederico.
Um príncipe que não acha indigno de si dizer
que tem por dever nada prescrever aos homens em matéria de religião, mas
deixar-lhes aí a plena liberdade, que, por conseguinte, recusa o arrogante
nome de tolerância, é efetivamente esclarecido e merece ser
encomiado pelo mundo grato e pela posteridade como aquele que, pela
primeira vez, libertou o gênero humano da menoridade, pelo menos por parte
do governo, e concedeu a cada qual a liberdade de se servir da própria razão
em tudo o que é assunto da consciência. Sob o seu auspício, clérigos
veneráveis podem, sem prejuízo do seu dever ministerial e na qualidade de
eruditos, expor livre e publicamente ao mundo para que este examine os
seus juízos e as suas ideias que, aqui ou além, se afastam do símbolo
admitido; mas, mais permitido é ainda a quem não está limitado por nenhum
dever de ofício. Este espírito de liberdade difunde-se também no exterior,
mesmo onde entra em conflito com obstáculos externos de um governo que a
si mesmo se compreende mal. Com efeito, perante tal governo brilha um
exemplo de que, no seio da liberdade, não há o mínimo a recear pela ordem
pública e pela unidade da comunidade. Os homens libertam-se pouco a pouco
da brutalidade, quando de nenhum modo se procura, de propósito, conservá-los
nela.
Apresentei o ponto central do Iluminismo, a
saída do homem da sua menoridade culpada, sobretudo nas coisas de
religião, porque em relação às artes e às ciências os nossos
governantes não têm interesse algum em exercer a tutela sobre os seus
súbditos; por outro lado, a tutela religiosa, além de ser
mais prejudicial, é também a mais desonrosa de todas. Mas o modo de pensar
de um chefe de Estado, que favorece a primeira, vai ainda mais além e
discerne que mesmo no tocante à sua legislação não há
perigo em permitir aos seus súbditos fazer uso público da sua própria
razão e expor publicamente ao mundo as suas ideias sobre a sua melhor
formulação, inclusive por meio de uma ousada crítica da legislação que já
existe; um exemplo brilhante que temos é que nenhum monarca superou aquele
que admiramos.
Mas também só aquele que, já esclarecido, não
receia as sombras e que, ao mesmo tempo, dispõe de um exército bem
disciplinado e numeroso para garantir a ordem pública – pode dizer o que a
um Estado livre não é permitido ousar: raciocinai tanto quanto
quiserdes e sobre o que quiserdes; mas obedecei! Revela-se aqui
um estranho e não esperado curso das coisas humanas; como, aliás, quando
ele se considera em conjunto, quase tudo nele é paradoxal. Um grau maior
da liberdade civil afigura-se vantajosa para a liberdade do espírito do
povo e, no entanto, estabelece-lhe limites intransponíveis; um grau menor
cria-lhe, pelo contrário, o espaço para ela se alargar segundo toda a sua
capacidade. Se a natureza, sob este duro invólucro, desenvolveu o germe de
que delicadamente cuida, a saber, a tendência e a vocação para o
pensamento livre, então ela atua também gradualmente sobre o modo
do sentir do povo (pelo que este se tornará cada vez mais capaz de agir segundo
a liberdade) e, por fim, até mesmo sobre os princípios do governo que
acha salutar para si próprio tratar o homem, que agora é mais do que uma máquina,
segundo a sua dignidade.
Königsberg na Prússia, 30 de Setembro
de 1784.
Autor: Immanuel Kant
Tradução: Artur Morão
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