A Bíblia diz que Adão é o ser humano que teve
sua alma insuflada pelo “sopro divino”. Em termos de ciência neurologica
podemos entender essa metáfora como aquisição da camada neural que deu ao homem
a capacidade de refletir. Já para a Maçonaria esse "sopro" é a
sabedoria que permitiu ao homem colocar “ordo ab chao”, ou seja, adquirir
consciência de si mesmo e do mundo para organizá-lo de uma forma lógica.
No Zhoar(a Bíblia cabalista) essa imagem é
descrita do seguinte modo: “Quando o homem inferior descende (dentro deste
mundo), do mesmo modo que quando entra na forma superior (nele mesmo), ao mesmo
tempo isso lhe confere a base de suas almas ou dois espíritos. (Ou seja) o
homem está formado por dois lados: tem o direito ou reto e o esquerdo ou
sinistro. E pode ser observado de ambos os lados. Em relação ao lado direito,
ele tem NShMThA QDIShA (Neschamotha Qadisha), a sagrada inteligência; enquanto
em relação ao lado esquerdo, ele tem NPShChIH,( Nephesh Chia), a alma animal”.[1
Aqui, mais uma vez, conseguimos ver as
estranhas imagens da inteligência cabalística cantando um dueto bem afinado com
as teses dos modernos cientistas e teóricos do evolucionismo, que vêem o homem
como resultado de uma longa evolução que se processou no correr de milhares de
anos e que foi conduzida pela sua necessidade de desenvolver meios cada vez
mais eficazes de sobrevivência, em face de um ambiente hostil. Assim, o homem,
á medida que ia descobrindo essas estratégias, que o fazia cada vez mais sábio,
ia também adicionando novas camadas neurais á estrutura do seu cérebro, as
quais foram também legadas aos seus descendentes como herança biológica. Por
isso é que a interpretação cabalística desse fenômeno diz mais adiante que “O
homem pecou, e por isso foi se expandindo até o lado esquerdo; e então, aqueles
que carecem de forma também foram expandidos. Isso se refere aos espíritos da
matéria, que receberam o domínio das sendas inferiores da Alma de Adão, e aí
assentaram as bases da concupiscência). Quando (e portanto) foram unidos e
ligados, (na base da concupiscência, juntos com a conexão, as duas almas do
homem e o espírito animal), tiveram lugar, portanto, as gerações, como os
animais dos quais muitas vidas são geradas, todas em uma mesma conexão.[2]
Aqui se explica a notável dualidade que se
encontra no homem, de um lado evoluindo na própria biogênese que conforma todas
as espécies animais e por outro lado construindo um espírito, através da sua
capacidade reflexiva. Um anjo-animal, que tem, por dentro a Neschamotha
Qadisha (sagrada inteligência) e por fora a Nephesh Chia,
a alma animal.[3]
Por isso os estranhos dizeres do Senhor com
respeito á serpente: porei inimizade entre ti e a mulher, e entre tua
descendência e a sua (dela) descendência. Ela te ferirá a cabeça e tu lhe
ferirás o calcanhar”. [4] Quer dizer, haverá sempre um
conflito no espírito do homem entre a sua espiritualidade (a mulher, sua parte
feminina) e a sua materialidade (a sua origem animal). Enquanto a primeira o
concita a buscar um patamar de espiritualidade cada vez maior (ferindo-lhe a
cabeça), este o cutuca no sentido de atender, cada vez mais aos seus sentidos,
o seu apego á matéria. Dessa forma se entende a “inimizade” posta entre matéria
e espírito, que só pode ser superada pela gnose que ilumina.
A
desordem cósmica
Destarte, o “pecado de Adão”, visto pela
ciência como sendo a aquisição da inteligência pelo ser humano, para os
cabalistas significa também a instituição da desordem no âmbito da Criação,
pois tanto o surgimento da vida a partir das combinações energéticas da matéria
pode ser visto como se fosse um “ponto fora da curva” como dizem os
matemáticos, ou como uma “emergência descontínua”, no dizer de Teilhard de
Chardin. Da mesma forma se pode considerar a aquisição da capacidade reflexiva
por parte do ser humano. Ela desequilibrou o processo natural da vida,
colocando o ser humano bem acima, em termos de complexidade, de todos os demais
espécimes que a natureza havia criado até então.
Para recuperar o equilíbrio que essa
nascente qualidade do homem provocou na natureza (coisa que talvez não tenha
conseguido até hoje), quanto ela não teve (ou ainda terá) que se reestruturar
para isso? [5]
Destaque-se que as modernas teses
evolucionistas identificam uma fase reptiliana na mais primitiva das
combinações cerebrais que a espécie humana já teve. Coleman nos mostra, em seu
excelente trabalho, como o cérebro humano evoluiu, partindo das suas primeiras
conformações, até o desenvolvido equipamento neurológico que ostentamos hoje.[6] Por outro lado Teilhard de
Chardin ensina que as espécies vivas evoluem por aquisição de propriedades, as
quais vão sendo adquiridas através das combinações celulares que se processam
em níveis cada vez mais complexos. É o que ele chama de aditividade
dirigida. Quer dizer, através do fenômeno da hereditariedade, cada
geração acrescenta á espécie um grau maior de evolução, adquirido do
aprendizado feito em cada experiência de vida. Usando suas próprias palavras, “Por
acumulação contínua de propriedades (qualquer que seja o mecanismo dessa
hereditariedade) a Vida faz como “bola de neve”. Ajunta caracteres sobre
caracteres no seu protoplasma. Vai se compli-cando cada vez mais...)” nós
podemos ter uma compreensão mais clara desse processo.[7]
Ou como diz Coleman ao descrever a evolução
do cérebro humano, desde o estágio reptiliano até a avançada conformação de
hoje: “Ao longo de milhões de anos, o cérebro humano cresceu de
baixo para cima, os centros superiores desenvolvendo-se como elaborações das
partes inferiores, mais antigas (...)” [8].
Assim, a evolução do nosso cérebro foi
seguindo um caminho mais ou menos semelhante ao da própria Criação, conforme se
depreende do desenho da Árvore da Vida. Não devemos nos esquecer que para os
cabalistas, Adão, antes do pecado, era um corpo etéreo (um espírito) que não tinha
nenhuma relação de parentesco com a criação animal. Ele era, como diz Gershon
Scholem,“ uma figura puramente espiritual, uma “grande alma”, cujo
corpo mesmo era uma substância espiritual, um corpo etéreo, ou corpo de luz. As
potências superiores continuavam a fluir para dentro dele, conquanto refratadas
e ofuscadas em sua descida. Ele era, assim, um microcosmo a refletir a vida de
todos os mundos.”[9] Tornou-se humano por aquisição
da propriedade de refletir. Com isso gerou uma desordem cósmica que foi preciso
restabelecer.
Tikun:
a restauração da ordem
A Cabala ensina também que o corpo do Adão
terrestre foi refletido na terra a partir do seu modelo celeste Adão Kadmon,
para cumprir uma tarefa. Essa tarefa era a de resgatar as “centelhas” (almas)
da Luz de Deus que se espalharam pelo vazio cósmico no momento em Deus se
manifestou (ou a sua energia se espalhou em consequência do Big-Bang). Se Adão
houvesse cumprido sua tarefa, a Criação teria terminado no Sabbath (o Sábado),
consumada na união do masculino com o feminino ( a união de Adão e Eva). E o
paraíso seria o prêmio final dessa tarefa. Mas Adão fracassou e a história
humana começa, então, com a retirada da vestimenta etérea que cobria o corpo do
casal humano. Assim se explica a estranha informação constante de Gênesis,
3;21; “ E o Eterno Deus fez para o homem e para sua mulher túnicas de
pele e os fez vestir.” Isto é, deu vestimentas de ser humano aos seres espirituais.
O pecado de Adão fez com que a Schehiná (a
Luz de Deus, presença divina no universo) fosse espalhada pelo mundo. Dessa
forma, a missão do homem Adão, como ser humano, passou a ser a tarefa da
reunir, de novo as centelhas da Schehiná dispersa, o que se dará,
por fim, quando se concretizar o processo do Tikun, ou seja, a
restauração da ordem no caos, que foi instituída com a queda do homem do céu e
sua transformação em ser humano. Por isso o salmista diz: “ o que é o
homem para que Te lembres dele? E o filho do homem, para que tu o visites? Pois
pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste.(Salmos 8:5).
A
função do Messias
Essa restauração (o Tikun) será
conduzida pelo Messias, através de um processo do qual todos participaremos.
Assim, a redenção de todas as almas é uma consequência dos nossos atos. O
Messias é o “professor”, o guia que nos conduz nesse processo. Como bem observa
Gershon Scholem, não devemos nos esquecer que essa concepção da doutrina
cabalista, que encampa várias idéias gnósticas, reflete a própria vida de
Israel enquanto nação, com sua história de ascensões e quedas, e o exílio que
marcou a vida do povo judeu. Nesse sentido, diz esse autor, “Israel é a própria Schehiná,
e sua dispersão histórica pelo mundo é o símbolo do caos, o qual só será
ordenado com a realização do Tikun. Por isso, “no decurso do seu
exílio, Israel deve ir á toda parte, a cada um dos cantos do mundo, pois em
todo lugar há uma centelha da Schehiná á espera de ser descoberta, apanhada e
restaurada por um ato religioso.” [10] Nesse sentido, a própria nação
de Israel seria o “Messias” realizador desse processo.
Essas idéias foram desenvolvidas por Isaac
Luria e compartilhadas por uma forte corrente cabalista, conhecida como
messiânica. É de se notar o estreito paralelo que existe entre essas concepções
e as teses desenvolvidas por Teilhard de Chardin no sentido de que, um dia,
toda a espiritualidade desenvolvida pela humanidade se reunirá em um ponto
único, chamadoPonto Ômega, que ele identifica com a própria alma de
Cristo.[11] Essa idéia, como veremos, irá
também refletir na doutrina da reencarnação, desenvolvida pela Cabala. Pois o
exílio do corpo, em sua história externa, encontra paralelo no exílio das
almas, em suas migrações de encarnação em encarnação, de uma forma de
existência á outra.[12] E refletirá não só na história
do povo judeu, na sua procura por uma redenção, em termos políticos, com a
reconstituição da sua nação, como também irá inspirar, no terreno político,
várias outras propostas messiânicas, como a que fundamentou a formação dos
Estados Unidos da América, a Novus Ordo Seclorum, a própria
Alemanha nazista e até as experiências sócialistas que se cristalizaram na
primeira metade do século vinte.[13]
E dela não escapará a própria experiência
maçônica, que em todos os seus temas espiritualistas, e na estrutura do seu
próprio catecismo ritual, reflete a enorme influência que recebeu da doutrina
cabalista.
[3] Um dos
significados da palavra nephesh, em hebraico, é
serpente. Por isso, nas doutrinas místicas, a origem da sabedoria humana está
ligada ao mito da serpente. Mas nephesh significa também
sangue, espírito vital. Por isso em muitos cultos ofitas há o registro de
sacrifícios de sangue, significando que a oferta do sangue á divindade é o
mesmo que ofertar-lhe o espírito vital.
[5] Emergência
descontínua é o termo usado por Chardin para designar um acontecimento
excepcional, que atropela as tendências naturais. O surgimento da vida é uma
dessas emergências descontínuas e a aquisição, por parte da espécie humana, da
capacidade reflexiva, é outro desses fenômenos naturais. Por isso a sua obra
fundamental se chama o “Fenômeno Humano”.
[11] O Fenômeno Humano, citado. Ver também,
a esse respeito a nossa obra “Conhecendo a Arte Real”, Ed. Madras, São Paulo,
2006.
[13] A “Nova Ordem do Século” era o título
que os maçons americanos davam á sua nascente nação. Ver, nesse sentido “A
Cidade Secreta da Maçonaria, citado.
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