Por João Anatalino
O santuário da tradição
Sabemos que a Cabala vê no
desenho do universo uma forma projetada pela mente de Deus. Nesse sentido ele é
como se fosse um plano de arquitetura pré-concebido e estruturado com extrema
precisão. Esse plano é demonstrado admiravelmente na extraordinária simbologia
dos Quatro Mundos e no desenho da Árvore da Vida. Nessas duas concepções
simbólicas, onde a intuição dos mestres cabalistas superou seus próprios
conhecimentos positivos á respeito do mundo, encontramos um projeto
extremamente sugestivo da evolução do todo universal, com suas visões passadas,
presentes e futuras, com todas as suas especificações e finalidades.
Nessa visão estrutural do
plano cósmico fica mais simples encontrar um lugar para o complexo das
intuições humanas, que a nossa mente, por falta de uma linguagem apropriada,
não consegue explicar. Os pressupostos da metafísica, que tanta perplexidade
causa aos estudiosos quando são comprovadas em testes de laboratório, assumem
contornos mais visíveis, mais inteligíveis e mais belos até, porque nesse caso
eles vêm vestidos de uma simbologia que nos enche os olhos e uma poesia que nos
alegra a alma.
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Não é, pois, sem razão, que a Maçonaria ─ aos nossos olhos uma experiência social e espiritual com um pé firmemente apoiado na tradição cabalística ─ chama Deus de Grande Arquiteto do Universo. E o porquê de o Templo onde se reúnem os maçons ter sido concebido como um simulacro do Cosmo, adotando uma estrutura semelhante ao desenho da Árvore da Vida.
Isso ocorre porque nessa visão
mística do processo de construção do edifício universal, a Divindade é
comparada a um arquiteto que projeta o edifício e depois os seus
mestres de obras, os arcanjos (arcontes), e os seus pedreiros, os homens,
o constroem. É nesse mesmo sentido que a planta do Templo maçônico é desenhada
como se fosse uma espécie de mandala mágica, e construído de forma a captar a
energia criadora, para que o psiquismo dos Irmãos ali reunidos seja carregado
com as melhores virtudes, e os vícios porventura existentes sejam dissolvidos.
Essa é a ciência maçônica por excelência, que é sintetizada na chamada
“egrégora”, palavra que designa a energia cósmica captada pela mente das
pessoas reunidas no Templo, em estreita união, e convergentes para a consecução
de um mesmo objetivo.
Esse também, diga-se de
passagem, é o elo simbólico que justifica a tradição maçônica de considerar o
templo onde os Irmãos se reúnem uma cópia do Templo de Jerusalém, na forma como
ele foi projetado pelo arquiteto Hiram Abbif e construído pelos arquitetos do
rei Salomão.(1)
Todo iniciado na tradição
maçônica sabe que o Templo de Jerusalém foi erigido segundo instruções
místicas, que visavam reproduzir nesse edifício o próprio desenho do Cosmo, e
que, segundo acreditavam os israelitas, era a “morada de Deus ”. (2)
Essa visão se justifica
plenamente, pois na construção de um edifício, quanto mais sofisticado ele for,
mais encontraremos noções de ciência aplicada. Nele se aplicam
conhecimentos de física, química, geologia, sociologia, matemática,
astronomia e muitas outras disciplinas, necessárias á perfeita
construção e adequação do logradouro às necessidades que ele visa atender.
É o que dizia Fulcanelli, por exemplo, quando se referia á catedral gótica, que
no seu entender, era um verdadeiro santuário de tradição e aplicação das
ciências físicas e sociais. (3)
O segredo do Tabernáculo
A Cabala chama de Sod aos
enigmas que estão ligados ao desenho estrutural do universo, os quais foram
reproduzidos na planta do primeiro Templo de Jerusalém. Por isso ele era
originalmente chamado de Santuário da Solidão, pois ali reinava o Ùnico, o
Santo dos Santos, que não tinha par entre todas as potestades do universo.
Como se sabe, o Templo de
Jerusalém foi desenhado a partir das instruções que Deus deu a Moisés para a
construção do Tabernáculo. Todos os utensílios, os adereços, as vestes dos
sacerdotes e as próprias medidas do Templo tinham uma função específica e um
significado arcano de grande importância.
O Tabernáculo tinha três
divisões representando o céu (o altar onde ficava o Santo dos
Santos), o mar (onde ficava o Lavatório, a grande bacia de
bronze) e a terra (o Átrio, onde ficava o povo e altar do
holocausto). Os quatro tipos de tecido usados na confecção do Tabernáculo
simbolizavam os quatro elementos; a sobrepeliz do Sacerdote Supremo (Cohen
gadol) com suas variações cromáticas era a imagem do universo nascente, que
em sua origem apresentava uma profusão fantástica de cores.(4)
As campainhas significavam a
harmonia do som, já que um dos elementos com os quais Deus faz o universo é o
som; as doze pedras preciosas no peitoral do sacerdote e os doze pães da preposição
simbolizavam, no plano cósmico, os doze signos do zodíaco e no sociológico as
doze tribos de Israel, maquete da Humanidade Autêntica. As duas esmeraldas nas
ombreiras do sacerdote eram o sol e a lua. Na mitra do sacerdote as quatro
letras do Nome de Deus (IHVH), diziam que todo o universo era construído a
partir das letras do Nome Sagrado. O candelabro de sete braços (menorah) significava
os sete planetas conhecidos na época. A mesa arrumada na direção norte, com os
pães da preposição e o sal, todos arranjados na forma de uma mandala mágica,
homenageavam a chuva e o vento, forças necessárias á produção da terra. A
grande bacia de bronze que os sacerdotes usavam para lavar os pés e as mãos
simbolizavam a limpeza de caráter que o homem devia mostrar frente á divindade.
Assim, na simbologia do Templo de Jerusalém e de seus utensílios estava
descrita toda a estrutura de constituição física do universo e, além disso, um
vigoroso código de moral para guiar os seus construtores. Essa também seria a formulação
simbólica que viria a inspirar, na Idade Média, os maçons operativos na mística
da sua arte. Por isso é que eles mostravam, na execução do trabalho puramente
operativo, o desvelo próprio de um artista que sente estar copiando a própria
obra de Deus; e na alma que assim se consagra a esse trabalho havia um
sentimento de ascese que transcendia o plano físico para levá-lo ao
arrebatamento próprio daqueles que se dedicam á uma prática de natureza
sagrada. Estava, assim, nascida a mística operativa que deu origem á
Maçonaria.(5)
O templo e o homem
Por outro lado, são muitas as
tradições que sustentam ser o organismo humano, integrado á sua parte
espiritual, um desenho do próprio universo, do qual reflete sua formulação
mecânica e suas leis de formação e desenvolvimento. Essa analogia entre o homem
e o universo se revela no postulado, tão caro aos hermetistas e já bem aceito
por cientistas de renome, de que no microcosmo (o homem) se repetem as mesmas
leis que formatam o macrocosmo (o universo).(6)
Se tudo isso é verdade
provada ou mera especulação, só Deus poderia dizer. Nós só podemos
deduzir e acreditar ou não. Mas há algumas coisas que não podem ser
ignoradas. Uma delas é o que diz a teoria da evolução. Segundo essa teoria,
todas as espécies vivas são "fabricadas" pela natureza com um
"programa" específico que as submete a um processo
evolutivo inexorável. Esse “programa” é necessário tendo em vista as constantes
mudanças ambientais a que o universo está sujeito. A espécie que não
consegue adaptar-se a essas mudanças acaba sendo substituída por outras
mais competentes.
Essa é uma lei existente na
natureza, chamada pelos antropólogos, de lei dos revezamentos. (7)
Ela existe para promover uma
necessária evolução nas espécies por ela produzidas por meio do aperfeiçoamento
das suas habilidades e capacidades. Não se aplica somente ás espécies vivas,
mas á toda a realidade universal, inclusive aos elementos químicos e
a matéria bruta em geral. Pois todos os elementos químicos também são
obtidos por interação de seus componentes, da mesma forma que os
organismos moleculares. Quer dizer, repetem-se na matéria bruta os mesmos
processos que formatam a matéria orgânica e tanto uma quanto a outra estão
sujeitas ás mesmas leis de nascimento, formação, desenvolvimento e
desaparecimento, o qual se dá pelo fenômeno da transformação seletiva.
Por isso, a teoria da evolução
encontra mais paralelos na doutrina da Cabala do que nas outras tradições
religiosas. Aqui ela é figurada através de um desenho mágico ─ filosófico, chamado
Árvore Sefirótica, ou Árvore da Vida, esquema místico que representa as
manifestações da divindade no mundo das realidades sensíveis. Nesse desenho,
cada sefirá é uma fase de construção do universo e reflete um processo de
evolução perene, constante e ordenado, que serve tanto para explicar o processo
de construção das realidades do mundo material, como das realidades do mundo
espiritual.
A Árvore da Vida mostra o
mundo (e o homem) sendo construído como se ele fosse um lago que transborda e
vaza para outro lago, até formar o grande mar universal, onde todas as formas
de existência, físicas e espirituais, podem ser encontradas. Essa visão
não deve ser considerada uma alucinação mística nem apenas uma especulação
metafísica. Sabemos que quando dois elementos químicos se juntam eles formam um
composto. Conservam suas características particulares, mas também
formam um terceiro elemento com diferentes propriedades. O composto, que é
o filho nascido dessa união, possui as propriedades dos elementos que o formaram
e agrega aquelas que são desenvolvidas por ele próprio. Nessa fórmula está o
segredo da teoria da evolução. Dois átomos de hidrogênio combinados com um
de oxigênio formam uma molécula de água. A água é um composto,
"filho de H²0," que tem H (hidrogênio) e O (oxigênio) na sua
composição, mas também tem outras propriedades que seus "pais",
individualmente, não possuem. Ela tem a propriedade de incubar a vida. A
água é necessária à vida. É o leito onde ela nasce. É nesse sentido que
Teilhard de Chardin vê o homem como sendo um “complexo-consciência”, ou seja,
um composto feito por elementos orgânicos, obtidos por sínteses naturais
(seleção natural) e elementos psíquicos, produzidos por sínteses mentais cada
vez mais elaboradas, que resultam em um espírito individual, e estes, em um ser
pluralístico, que no final comporão um ser espiritual coletivo que ele chama de
Ponto Ômega.(8)
Assim também acontece com
o restante do universo. Cada fase da evolução é uma combinação de elementos.
Cada nova fase desenvolve suas próprias particularidades, que são as
propriedades com as quais ela contribui para o desenvolvimento do universo como
um todo. Por isso cada fase constitui um passo a mais no processo de
evolução porque o composto que nasce da união dos elementos é sempre um
resultado mais complexo dos que os elementos que o formam. Nada se perde
do que já foi conquistado, apenas se transforma em algo novo, com diferentes
propriedades, sempre em um estágio mais avançado de evolução.
Por isso o novo é sempre maior
que a soma das suas partes. Novas propriedades são adicionadas ao
universo a partir de cada interação praticada por seus elementos. E assim ele
se supera em cada momento da sua constituição.
Criacionismo e
evolucionismo
Um plano de evolução do mundo
físico e da vida em seus aspectos material e espiritual é o que nos proporciona
a doutrina da Cabala. Ela oferece uma explicação de como o universo se forma,
como se desenvolve e à que finalidade se presta. Da mesma forma, a vida que se cria
e evolui dentro dele. É uma evolução que se desenha em um processo iniciado no
mais ínfimo grão de matéria (um quanta de energia) tornando-se matéria que se
complexifica, evolui tornando-se vida, em vida que se espiritualiza, em
espírito que se diviniza, sempre num sentido ascendente, através de sínteses
químicas e mentais cada vez mais complexas, seguindo o mesmo rumo: a flecha da
evolução. Nossa missão, nesse esquema, torna-se clara e insofismável, pois
sendo uma presença indispensável nesse processo, o homem torna-se o centro da
perspectiva universal, já que é a partir da sua mente que o universo se
organiza e adquire uma identidade.
Assim, não
podemos compartilhar dos receios daqueles que temem pelo futuro da
humanidade. A humanidade jamais perecerá: ela apenas se transformará. Os
adeptos da teoria da evolução dizem que o ser humano evoluiu de uma matriz
animal até a configuração que temos agora. Já aqueles que acreditam no
criacionismo dizem que nós nascemos perfeitos, mas nos tornamos imperfeitos por
força de uma série de quedas e ascensões em nosso processo evolutivo.(9)
São duas teorias
diametralmente opostas. Uns dizendo que já fomos piores do que somos hoje e
outros sustentando que já fomos melhores. Mas no fundo elas se completam, pois
ambas sustentam que a vida está submetida á um processo de evolução que é
inexorável. Se nascemos rastejantes como répteis e através de um processo de
evolução nos alçamos até a altura do céu, ou se nascemos no céu e por um motivo
qualquer descemos á terra e agora estamos nos esforçando para voltar ao céu,
são apenas formas diferentes de ler o mesmo processo. Uma vai do pé para a
cabeça, outra da cabeça para o pé. Acreditar em uma ou outra depende da
sensibilidade de cada um.
Só se Deus não existisse
Para nós não importa saber
quem tem razão. Na verdade, o que nos parece tão assustador com os rumos
que a humanidade vem tomando é resultado apenas da nossa ignorância.
Não temos como saber o que poderá acontecer a cada nova experiência interativa
que os elementos do universo promovem. Isso porque o Criador colocou nesse
processo uma lei chamada “principio da incerteza” (deduzido pelo físico alemão
Werner Heisenberg). Segundo esse princípio é impossível prever o que acontecerá
no futuro porque não temos como saber qual a posição e a velocidade que as
partículas de energia que formam a massa física do universo assumirão no
momento seguinte da sua aceleração. Só podemos estudar as tendências que ele
tem de acontecer de certo modo, mas nunca uma certeza de que será exatamente
assim. Isso porque a tendência de uma partícula se comportar desta ou daquela
maneira só pode ser deduzida a partir dos seus comportamentos no momento em que
são observadas. Mas a própria observação do movimento da partícula já concorre
para modificar esse movimento. Portanto, ao aplicar aos elementos do universo o
nosso pensamento nós já o estamos modificando. Assim, é impossível saber como
ele será no futuro porque o mundo sempre poderá será diferente em função da
própria observação que dele fazemos.(10)
Isso é válido para o mundo da
física quântica e também para a nossa vida em geral. Essa é uma boa sabedoria
que a moderna observação científica nos dá, e a Cabala também.
O que se deduz disso tudo é
que, se o universo futuro será bom ou ruim para nós, isso só depende
do nosso comportamento no presente. Mas isso não nos será dado saber á nível de
consciência individual. E depois, bem e mal são conceitos puramente humanos.
Quando não formos mais o que somos hoje, talvez não precisemos mais desses
conceitos para justificar os nossos sentimentos a respeito. Dessa forma, o que
podemos dizer com certeza é que o mundo só não teria futuro se Deus
não existisse. Mas Ele simplesmente (e felizmente) existe.
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1.Esse pressuposto é colocado
tendo em vista a tradição maçônica e não a história propriamente dita, pois
historicamente, conforme relata a Bíblia e também o historiador Flavio Josefo,
Hiram não era arquiteto, mais sim um metalúrgico que fundiu as colunas de
bronze do Templo e os utensílios de culto neles usados. Segundo algumas
tradições maçônicas o verdadeiro arquiteto do Templo de Jerusalém foi Adonhiram
(Hiram, filho de Adon). Essa tradição é cultivada no Rito Adonhiramita, cuja
organização é atribuída ao Barão Theódore Tschoudy (1727- 1769), nobre francês,
reformador da Maçonaria francesa. Ver, a esse respeito, Jean Palou- Maçonaria
Simbólica e Iniciática- Ed. Pensamento, 1986.
2. Alex Horne- O Templo do Rei
Salomão na Tradição Maçônica. São Paulo. Ed. Pensamento, 1998.
3.Fulcanelli. O Mistério das
Catedrais. Lisboa, Ed. Esfinge, 1964.
4. Ver, nesse sentido, a
imagem apresentada por Stephen Hawking sobre a coloração inicial do universo
saído do Big-Bang. O Universo em Uma Casca de Nóz- citado. Sobre esse assunto
ver ainda a concepção de Gershon Scholem sobre a experiência mística, onde ele
diz que “quase todos os místicos do nosso conhecimento retratam essas
estruturas como configurações de luzes e cores”. Não seria essa uma indicação
de que o nosso inconsciente tem, de fato, uma ligação mística com o início de
todas as coisas?
5. lusão á crença dos
antigos maçons que construíam os templos religiosos na Idade Média, de que eles
eram os “operários do Bom Deus”, pois estavam construindo na terra as moradas
da divindade. Por isso o caráter sacro da sua arte. Na Imagem, reconstituição
do Templo de Jerusalém: Fonte: Alex Horne: O Templo de Salomão na Tradição
Maçônica.
6. Em linguagem hermética, “o
que está em cima é igual ao que está em baixo.”.
7.Lei dos revezamentos, em
antropologia, é a lei segundo a qual os organismos que não
desenvolvem uma estrutura capaz de sobreviver em ambientes desfavoráveis e
diferentes daqueles nos quais vivem, fatalmente serão substituídos por outros
mais competentes. Com isso a natureza mantém o processo da vida sempre ativo e
com claro sentido evolutivo. Ver, nesse sentido, Teilhard de Chardin - O
Fenômeno Humano, citado.
8. Teilhard de Chardin- O
Fenômeno Humano, Ed. Cultrix, 1990.
9.Evolucionistas são aqueles
que acreditam que as espécies vivas, e por consequência, os seres humanos, são
produto de uma seleção natural (teoria de Charles Darwin). Os criacionistas são
aqueles que acreditam que a espécie humana já nasceu do jeito que ela é hoje: a
fórmula bíblica literal.
10. O princípio da incerteza é
um enunciado da mecânica quântica, feito em 1927 pelo físico Werner Heisenberg,
que diz ser impossível medir com precisão a velocidade de deslocamento de
partículas atômicas, porque a própria interação entre o movimento delas e o ato
de medir sua velocidade interfere nessa medida.
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