MAÇONARIA E O "SAGRADO FEMININO"

Por João Anatalino

O CULTO DO “SAGRADO FEMININO”
A expressão “Filhos da Viúva” é bastante antiga e parece estar conectada com antigos cultos matriarcais, no qual se cultuava um princípio feminino, ligado principalmente á questão da fertilidade da terra. Ela aparece, originalmente, no antigo Egito, onde os iniciados nos Mistérios de Ísis e Osíris recebiam esse apelido. É sabido que os antigos rituais praticados nos templos egípcios, dedicados á Ísis, tinham um duplo propósito: de um lado honrar a deusa, para que esta promovesse a fertilidade da terra, fazendo com que o país obtivesse boas colheitas, e de outro lado despertar nos praticantes desse ritual uma espécie de iluminação espiritual, semelhante a um renascimento em outro estado de consciência.

Com o tempo esse ritual adquiriu uma conotação política e social, pois os chamados “iniciados” nesses Mistérios passaram a constituir uma classe de elite na sociedade egípcia, concentradora do “poder que vinha dos deuses”. Essa mesma conformação pode ser encontrada entre outros povos antigos que praticavam ritos semelhantes. Em especial as variantes gregas dos Mistérios de Elêusis e os Mistérios da Samotrácia, nos quais se buscava honrar esse “princípio feminino” que identifica a fertilidade, tanto em relação á terra, quanto á própria vida humana.

Ísis, como sabe, ficou viúva em face do assassinato de seu irmão e consorte, Osíris. Daí os iniciados nos Mistérios de Ísis e Osíris serem chamados de “Filhos da Viúva.” Ela simbolizava o “sagrado feminino” em toda sua integridade. 

OS TEMPLÁRIOS E O “SAGRADO FEMININO”
Esse título também foi aplicado aos cavaleiros da Ordem do Templo, face ás indicações, bastante prováveis, de que eles praticassem algum tipo de ritual consagrado ao chamado “principio feminino”. Esse princípio foi identificado em símbolos que reproduziam o crescente lunar, representando a deusa egípcia Ísis. Esse culto, supostamente praticado em capítulos avançados da ritualística templária, era simbolizado pelo desenho de uma lua crescente, com estrelas nas duas pontas, e em cima um sol chamado de Abraxas (variante gnóstica para o deus Osíris). Essa iconografia simbolizava o processo segundo o qual a fertilidade da terra era promovida, e também representava a elevação da própria alma, conforme representada nos Mistérios Egípcios e em cultos gnósticos adotados pelos Templários.[1]

Essa hipótese deriva do fato de os senescais de Filipe, o Belo, terem encontrado entre os pertences templários sequestrados na preceptoria de Paris uma cabeça de prata, que continha, dentro dela, ossos de uma cabeça menor, supostamente de uma mulher, envolvida em linho e púrpura. Essa cabeça tinha um título escrito em baixo que dizia: Caput LVIII e um signo misterioso que foi interpretado como sendo o signo da virgem (Virgo). Além disso, sabe-se que o próprio São Bernardo de Clervaux, inspirador e organizador da Ordem do Templo, era um devoto da Virgem.  Consta que ele a cultuava de uma forma mística e bastante heterodoxa. Segundo uma tradição muito divulgada na Idade Média, ele teria sido alimentado pelo leite que brotara dos seios da estátua de uma Virgem Negra.[2]

Que havia um culto á Virgem entre os Templários (a viúva Maria, mãe de Jesus, ou Maria Madalena, suposta esposa de Jesus, ou a própria deusa Ísis) é inegável, porquanto as últimas palavras de Tiago de Molay, grão-mestre do Templo, antes de ser amarrado no poste para ser queimado na fogueira, foram um pedido ao carrasco para fazer uma oração á Virgem.

Ressalte-se que o próprio cristianismo não ficou imune á influência do “sagrado feminino”. A Virgem Maria,  nas mais variadas tradições marianas, é cultuada como um símbolo lunar.  Muitas tradições relativas  a esse culto sobreviveram nas tradições da sociedade ocidental. A lua de mel como símbolo do himeneu (a entrega da virgindade da noiva ao seu marido), a mística da lua cheia, como fase propícia para mudanças de personalidade e início de empreendimentos, a influência lunar na sexualidade das mulheres etc., são todos exemplos conectados com o culto ao sagrado feminino.

O “SAGRADO FEMININO” NA LITERATURA
Por Ir.’. João Anatalino
É revelador também o fato de os próprios franceses, como povo, já cultuarem, de longo tempo, o “sagrado feminino”. Há registros de que nas proximidades da atual igreja de Saint-Germain-des-Prés, a mais antiga da capital francesa, os primitivos habitantes da cidade (então chamado de Lutécia), haviam construído um templo dedicado a Ísis. Por isso os moradores do lugar eram conhecidos pelos romanos como Para-Ísis, ou seja “cultores de Ísis”, que resultou no nome “parísios”, pelo qual os habitantes da cidade ficaram conhecidos. Deriva desse antigo culto a tradição dos franceses de honrar a Notre Dame, que mais que uma reminiscência á Maria, mãe de Jesus, é uma tradição que já vem do tempo dos druidas, que cultuavam a Mãe Terra e a ela prestavam culto. Do termo (Para-Ísis, parísios) teria vindo o nome Paris[3]

O culto á mulher, como símbolo do sagrado feminino, projetou-se inclusive na literatura medieval e tornou-se um dos principais gêneros literários da época. É revelador que esse tipo de literatura tenha nascido justamente na Provença, ou seja, no chamado território do Languedoc. A poesia provençal parece ter tido origem nas tradições populares cantadas em prosa e versos por artistas ambulantes, que iam de cidade em cidade e se apresentavam em feiras e recitais organizados por nobres senhores, para distrair convidados em seus serões. Desenvolveu-se, nesse tipo de manifestação artística, uma forma de lirismo quase religioso, no qual o amor do cavaleiro por sua dama afirmava-se como um culto, quase uma religião. O trovador, na Corte e na literatura, comportava-se em relação à sua dama como se fosse um vassalo em relação ao seu senhor, ao qual devia homenagem, fidelidade e socorro em caso de perigo, combatendo e morrendo por ela, se necessário. Não se tratava de uma relação sentimental de envolvimento físico, mas sim de uma relação de caráter espiritual, na qual a dama escolhida era uma espécie de ídolo, um objeto de adoração, onde o próprio nome da amada devia ser mantido em segredo. A este ideal romântico correspondia um tipo idealizado de mulher que mais se assemelhava á uma deusa, uma ninfa, uma fada, algo muito além de uma criatura de carne e osso. A Laura dos poemas de Petrarca, a Beatriz de Dante, a Isolda de Tristão, a Guinevere dos contos da Távola Redonda, a caricata Dulcinéia do Dom Quixote, são exemplos dessa simbologia do “sagrado feminino”, que a literatura provençal imortalizou. Registre-se que o declínio da literatura provençal ocorreu principalmente em razão da repressão movida pela Igreja de Roma contra os cátaros, que acabou envolvendo todo o povo do Languedoc e arruinou um grande número de nobres dessa região. Ressalte-se que tanto a literatura provençal, que idealizava o valente cavaleiro e seu amor platônico, quanto a tradição cavalheiresca de honrar o “sagrado feminino” nunca foi bem visto pela Igreja e sempre sofreu as mais ácidas críticas do clero.[4]

O SAGRADO FEMININO E A MAÇONARIA
A maçonaria, como muitos dos símbolos que foram adotados pela sua tradição, acabou adaptando o título “Filho da Viúva” para representar diversos temas que são desenvolvidos em seu ritual.

Na tradição gnóstica há uma curiosa lenda oriunda da seita cainita, segundo a qual a famosa Rainha de Sabá, chamada Barcis, quando visitou o reino de Israel, na época de Salomão, teria se apaixonado pelo arquiteto do Templo, o mestre Hiram Abiff (ou Adonhiram). Do romance dos dois teria nascido um filho. Esse menino nasceu após o assassinato do mestre pelos Jubelos, razão pela qual, esse filho do “maior maçom da terra” era chamado de “filho da viúva”. Essa lenda foi tema de uma ópera composta pelo famoso poeta e escritor francês Gerard de Nerval, que ao que parece, nunca foi encenada, mas teve circulação bastante divulgada entre os maçons franceses no século XIX. [5]

Destarte, viúva, no caso, seria a própria instituição da maçonaria, já que seu fundador, Hiram Abiff, também foi assassinado. No caso, seus filhos, os maçons, seriam órfãos de pai.

Assim, na tradição da maçonaria, a expressão “Filho da Viúva” serve tanto para designar os Templários “órfãos” em relação á extinção de sua Ordem e a morte de seu “pai”, o grão-mestre Tiago de Molay, quanto aos partidários da família real inglesa, os Stuarts, em relação á morte de seu rei Carlos I, decapitado por ordem do Parlamento inglês. A viúva daquele rei teria organizado a resistência, sendo a maioria dos seus partidários constituída de maçons. A propósito, foram os stuartistas refugiados na França que desenvolveram a maior parte dos graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, tal como o conhecemos hoje.

Historicamente, sabe-se que esse título também era aplicado aos filhos das viúvas dos pedreiros medievais, as quais a lei sálica proibia de receber as heranças de seus maridos mortos. Assim os filhos dessas mulheres eram chamados de “Filhos da Viúva”. Esses “filhos das viúvas”, que geralmente continuavam a profissão dos pais, foram os próprios maçons operativos, antecessores dos maçons atuais. A Igreja, mais tarde, os recompôs nesse direito, mas o título, aplicado aos construtores das igrejas medievais, tornou-se uma tradição que acompanhou durante muito tempo esses profissionais.
Assim, embora a maçonaria também conserve uma tradição de misoginia (não admitindo mulheres em seus quadros), não se pode negar que ela, em sua estrutura, está ligada, de alguma forma, ao culto do “sagrado feminino”. Nesse sentido seria bom que as Lojas olhassem com mais carinho e atenção para suas “fraternidades das acácias”, no sentido de integrá-las ao movimento maçônico.

[1] Veja-se Arthur Verluis- Os Mistérios Egípcios- São Paulo, 1978
[2] Os Mistérios Templários- Louis Charpentier - Difel, Rio de Janeiro, 19
[3] Essa é uma das teses que busca explicar o nome da capital francesa. A outra é que o nome Paris foi dado á cidade em homenagem á Paris, o principe troiano, já que a cidade de Lutécia (antigo nome de Paris) teria sido fundada por um sobrinho desse principe, que escapara de Tróia após a sua queda para os gregos. Cf. Mémoires de la Société nationale des antiquaires de France, Paris, 1926

[4] Decorrente, provavelmente da misoginia da igreja medieval, que ao mesmo tempo em que idealizava a mulher como símbolo da fertilidade e da continuidade da existência humana, via nela um perigo para a alma humana, um “objeto de luxúria e pecado”, que o diabo constantemente eliciava para perder os homens. Ressalte-se que essa misoginia foi expressa pelo próprio São Bernardo nas Regras que ele escreveu para os Templários, proibindo-os que eles “tocassem em mulher”.

[5] Robert Ambelain- A Franco Maçonaria- São Paulo, 1986

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