Por Ir\
Arnaldo M.A. Gonçalves (*)
Christopher Wren
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1.
Introdução
A
Ordem dos Franco-Maçons tem as suas raízes mergulhadas no tempo. Uns atribuem
as suas origens às corporações de construtores da Idade Média e às guildas de
artífices. Outros intentam encontrar os seus antecedentes aos mistérios do
Egipto (de Osíris e Ísis), ao Colégio dos Magos do Fogo (Caldeia), às
comunidades essénias (Palestina), aos Colegia Fabrorum (Roma), aos Cavaleiros
Templários ou aos Rosa-Cruzes.
O
que parece hoje claro é que num dado ponto do processo histórico, a maçonaria
operativa associada às grandes construções da Antiguidade (catedrais, igrejas
paroquiais ou castelos) perdeu o seu carácter “manual” associado à edificação e
abriu-se a outros detentores de “segredos”. Obreiros que não vinham dos
mesteres e das guildas, mas de classes sociais elevadas como a aristocracia, os
homens da Ciência, os clérigos, a aristocracia fundiária e os intelectuais.
Porque é que essa evolução ocorreu e em que contexto teve lugar é uma questão
em aberto sobre que não existem muitas respostas.
Na
origem etimológica a palavra “maçom” vem do germânico “mattjon” que deu lugar a
“metze” no alemão antigo e a “makyon” na língua franca para se transformar em
“machun” no francês antigo. Designava o “cortador”, o talhador da pedra, no
alemão “steinmazer” (trabalhador dos canteiros). No castelhano, a palavra afim
é “mazonero” referindo-se ao que fazia a massa ou argamassa para juntar as
pedras de uma construção embora a noção mais próxima do vocábulo alemão “metze”
seja “canteiro”. O prefixo “franco” aposto a maçom parece ter-se vulgarizado no
século XIV em Inglaterra para designar os trabalhadores da pedra que se
dedicavam a uma construção mais exigente e qualificada. Para alguns autores, o
vocábulo “free-mason” indica o trabalhador livre ou franqueado que não se
encontrava vinculado a regulamentos municipais ou reais vinculativos e que
podia circular entre os locais de construção. Para outros autores o vocábulo
significa o que trabalha a “free-stone” um tipo de pedra calcária que era
facilmente talhável ou de fácil cinzelização. O que se entendia por oposição
aos “rough-mason”. que trabalhavam a pedra bruta (Hurtado 2006, 32-34).
Do
termo “masson” vem a ideia originária da maçonaria operativa como a corporação
dos que realizavam grandes construções com um certo propósito espiritual ligado
à exaltação da divindade e que o faziam segundo arquétipos e planos teóricos
ligados à tecnologia da construção, à resistência dos materiais de construção e
à geometria aplicada. Nas palavras de René Guénon, a palavra “operativo” deve ser
tomada não como idêntico a prático mas no sentido do “acabamento do ser que é a
realização iniciática, com todo o conjunto de meios de diversa ordem que podem
ser empregues com vista a essa finalidade”(Guénon 1953, 195).
Por
simplificação, podemos identificar três escolas de pensamento quanto às origens
da maçonaria especulativa. Uma explicação tradicional liga-a à transformação
ocorrida na maçonaria inglesa em 24 de Junho de 1717 com a fusão de quatro
Lojas Maçónicas para a constituição da Grande Loja de Londres (Stevenson 1990;
Ridley 2002, 29). Uma outra explicação transcendental associa-a aos mistérios
da antiguidade vendo a Maçonaria testamentária dos grandes mistérios arcanos e
emancipando-se gradualmente da sua carga operativa (Wirth 1999; Guénon 1953;
Lepage 1990, Palou 1964). Uma terceira explicação liga-a à sorte da Ordem dos
Templários, à sua disseminação pela Europa continental e pela Escócia na
sequência da execução do Grão-Mestre Jacques de Molay e da perseguição dos seus
companheiros, vendo na maçonaria escocesa a linhagem mais autêntica dos
descendentes de Jesus, o gnóstico, a chamada ‘the Royal Blood line’ Baigent
& Leigh 2006; Knight & Lomas 1997; Knight & Lomas 1998).
Seja
qual for a explicação que se priorize é impossível considerar a maçonaria como
um edifício monolítico. Desde tempos idos ela passou por várias transformações
que se ligam à própria história da Europa, à emergência das grandes nações
europeias (e dos impérios), à perda da autoridade da Igreja (e do Papa) nos
assuntos políticos e à emergência do protestantismo como a outra extrema do
mundo cristão.
Talvez
seja mais correcto falar-se em “maçonarias” para qualificar os desenvolvimentos
que ocorreram em vários países em circunstâncias mais ou menos fiéis ao modelo
original (Jacques 1975). Parece identificar-se nessa evolução um modelo insular
(ou britânico) ligado à afirmação política da nobreza fundiária e dignatária em
contraponto ao poder absoluto do Rei e um modelo continental representado pelas
associações fraternais de assistência, de que a compagnonnage francesa é um bom
exemplo.
2.
A Maçonaria: Ordem dos Construtores.
Ao
longo dos tempos, a maçonaria assume-se como uma ordem iniciática construída à
volta da iniciação como processo de apreensão individual do segredo. Ser
iniciado significava entrar numa organização que se destinava ao estudo dos
mistérios da vida e da Criação e propunha aos que a abordam pistas de progresso
espiritual.
Se
tomarmos em consideração a arquitectura real das antigas civilizações
verificamos que os arquitectos e os maçons desempenharam um papel relevante e
que as associações iniciáticas ocupavam um papel central no sistema do poder
institucional. No Egipto, a instância cimeira do sistema social era ocupada
pelo Faraó enquanto Mestre da Obra, pelos seus conselheiros mais próximos e
pelos chefes das principais corporações de artífices. Por isso, a iniciação
constituía um evento fundamental porque era o ritual de passagem para o
iniciado se integrar no corpo social .
Os
Collegia romanos correspondiam a guildas que controlavam os vários ramos do
comércio. Vários imperadores romanos tentaram suprimi-los mas os seus éditos
revelaram-se ineficazes porque os membros conseguiram sempre provar a sua
ancestralidade e natureza religiosa. Vários destes collegia tornaram-se grupos
de solidariedade, religiosos ou funerários e detinham privilégios e isenções
pelo prestígio do trabalho que realizavam. As suas organizações eram idênticas
às lojas maçónicas, dispondo de constituições internas.
As
reuniões dos Collegia eram dirigidas por um magister e dois vigilantes
(decuriones), dispondo também de um secretário, um tesoureiro e um capelão
(sacerdos) Os collegia eram abertos a laicos designados por padroeiros ou
especulativos. As lojas dispunham de três graus (aprendizes, companheiros e
mestres) bem como de rituais de iniciação que dramatizavam a morte e a
ressurreição, usando abundantemente os símbolos maçónicos (esquadro, compasso,
fio de prumo, nível e círculo). O Imperador Diocleciano, na sua perseguição ao cristianismo,
tentou suprimir os collegia (entretanto transformados em Colégio de
Arquitectos) ordenando-lhes que fizessem uma estátua de Esculápio, o Deus da
medicina e da cura na mitologia greco-romana, o que eles recusaram. Diocleciano
terá mandado torturar quatro Mestres (Cláudio, Nicostrato, Sinfronio e
Castorio) e um Aprendiz até à morte. Os quatro seriam registados como os Quatro
Mestres Coroados, santos padroeiros dos maçons (Lomas 2006).
No
cristianismo as associações iniciáticas multiplicaram-se. Para os construtores
dos edifícios correntes e religiosos a iniciação constituía o acesso a uma
função socialmente reconhecida. Na organização social medieval, cada ofício
tinha a sua própria iniciação, algo que permitia a cada “mester” receber uma
influência espiritual que fazia do ofício não apenas o prolongamento da
habilidade manual mas a projecção do seu ser no sentido de uma realização
espiritual.
O
ofício do construtor (maçom) tinha grande prestígio social nele se
compreendendo os que usavam a madeira, a pedra bruta grosseira ou a pedra
trabalhada de forma requintada. A pedra indicava uma solidificação no espaço e
no tempo e as pedras talhadas ao ritmo dos construtores encontravam o seu lugar
próprio na edificação. Desta forma, construíam-se catedrais, igrejas e
monumentos. A pedra escolhida pela sua textura mineral para a construção era
colocada pelos “companheiros” iniciados sob a direção de um Mestre da Obra que
concebia, no plano teórico, a construção divinizada.
Discute-se
qual a exata natureza, organização e estrutura dos artífices que desenvolviam o
ofício de construtores. Alguns autores admitem que estariam organizados em
guildas idênticas aos outros ofícios sendo objeto de regulação mais ou menos
sofisticada. Outros autores assinalam que laborariam quase exclusivamente por
intermédio de pequenos mestres individuais, volantes, viajando entre os vários
locais de construção, à procura de trabalho e consoante os picos.
Knoop
e Jones argumentam que as guildas de maçons de carácter municipal eram muito
raras nos séculos XIV e XV e que isso se explica porque a maior parte do
trabalho era feito fora das cidades. Aí se localizavam as abadias, as
catedrais, os castelos mandados edificar pelos bispos, pelos reis e pelos
grandes senhores feudais (Knoop & Jones 1932, 344-366).
A
ser assim como Knoop e Jones argumentam, a “aprendizagem” não terá tido a
relevância e projeção que a historiografia (inclusive maçónica) lhe atribui. Na
perspectiva destes autores, a maior parte das edificações em pedra eram
construídas por “empreiteiros” ou corporações em sistema de administração direta,
dificilmente havendo espaço para um sistema de “formação no trabalho (Koop
& Jones 1932, 351). Por outro lado embora alguns maçons se tornassem
independentes e ainda outros mestres de obra a grande maioria continuou como
trabalhadores à jorna até ao fim da vida. Finalmente o sistema era complicado
pois na retribuição do mestre tinha de ser incluída uma parte para o aprendiz,
devendo o mestre providenciar-lhe ainda comida, alojamento e vestuário. O que
era uma situação pouco competitiva num sistema de baixo salário ao dia que
então prevalecia. O sistema de aprendizagem só se viria a consolidar em
Londres, já no século XV, daí espalhando-se para o resto da Inglaterra.
Por
outro lado, as guildas formaram um sistema de organização social que floresceu
apenas num dado período de desenvolvimento industrial (em Inglaterra)
destinando-se ao controlo da atividade industrial desenvolvida por pequenos
mestres e artífices independentes. As guildas não terão tido o papel crucial
que por vezes se figura nas grandes construções realizadas por conta da Igreja,
da Coroa ou dos senhores feudais. Estas construções foram realizadas por maçons
circunscritos ao sistema de ‘impressment’, uma prerrogativa real que permitia
aos reis e ao alto clero impor trabalho compulsivo aos maçons, vinculando-os a
título permanente a um determinado edifício por interesse da Coroa. Se foi
assim, o argumento conhecido da ligação das guildas de maçons operativos ‘livres’
às lojas de maçons especulativos do século XVIII perde parte da sua
credibilidade.
A
Loja terá tido um papel importante na vida desses maçons. Era a casa de madeira
onde os operários trabalhavam ao abrigo das intempéries e que podia albergar um
pequeno número de obreiros. Segundo se pensa a Loja era relativamente pequena
compreendendo o Mestre e os seus assistentes mais diretos, sendo o local onde
as refeições eram tomadas, os instrumentos de trabalho guardados assim como os
moldes que permitiam fazer (e replicar) os elementos mais complexos de
construção (Sherby 1964, 387-403). Os mestres alojavam-se em estalagens onde
viviam por períodos prolongados até que a construção ficasse de todo concluída.
Imagina-se que a Loja era aberta segundo um ritual não escrito que os maçons
operativos deveriam saber de cor, sendo os trabalhos eram precedidos de uma
oração religiosa ao Criador, designado por um nome sagrado (Colombier 1992,
43-4).
A
loja permitia que mestres, vigilantes, contramestres e outras categorias de
construtores se reunissem, preparando os desenhos e modelos respeitantes aos
vários elementos de construção, para depois executá-los. Ao que se crê, todo o
novo maçom, recebido em Loja, tinha de prestar juramento de guardar segredo da
informação que lhe era transmitida, depois da leitura das constituições
próprias de cada oficina (Palou 1964, 21-4). Os primeiros regulamentos de
organização do ofício remontam a meio do século XIV. Trata-se de um período de
maior segurança e desenvolvimento social e é crível que a Loja se tenha tornado
o centro da vida dos construtores e centro de formação dos que chegavam para
começar o ofício (Quérel 2008).
Papel
de destaque era ocupado, na organização medieval do trabalho, pelo Mestre Maçom
que não era ao contrário do que invoca um arquitecto conceptor das condições de
execução do trabalho. O Mestre Maçom operativo tinha uma responsabilidade mais
alargada, sendo ao mesmo tempo arquitecto da construção, oficial administrativo
que geria os materiais, o empreiteiro geral e o supervisor técnico da
construção. A ‘arte da construção’ não era transmitida por livros, plantas ou
desenhos de perspectiva mas através do exemplo vivo dos edifícios construídos. Os
conhecimentos obtidos pelos jovens maçons eram passados diretamente pelo Mestre
enriquecidos pela experiência de sucessos e insucessos.
O
Mestre maçom tinha que ficar associado, de forma estreita, à construção de modo
a se assegurar que as suas ideias eram susceptíveis de ser levadas à prática.
Não se resumia a isso a sua intervenção, pois quando o Office of Works
(Repartição de Obras) foi criado por Henrique III, em 1256, o Mestre-de-obras
ficou encarregue de fazer os registos de materiais, a compra de equipamentos e
utensílios e a contratação da mão-de-obra necessária. Os regulamentos do ofício
de maçom de Londres de 1356 determinavam que o Mestre tinha a obrigação de
estipular a jorna diária dos maçons e dos seus assistentes. Segundo o Mason’s
Ordinance da Catedral de Iorque de 1370, um maçom que procurasse trabalho era
sujeito a um período de experiência de uma semana ou mais para comprovar a sua
perícia. Se o trabalho fosse satisfatório era contratado, por ajuste entre os
supervisores e o Mestre da Obra (Sherby 1964, 396).
Os
maçons reuniam-se em Loja e o Mestre da Loja exercia nesta a autoridade com que
dirigia os trabalhos do canteiro, chamando a assembleia à ordem com um golpe de
martelo. A Loja era o local de iniciação nos mistérios do ofício. Quando da
recepção em Loja, o novo maçom era obrigado a “vestir a loja”, isto é, a
desembolsar uma dada quantia que segundo a tradição era entregue à oficina .
Mais tarde, os maçons operativos passaram a estar vinculados a regulamentos que
arrolavam regras de comportamento (Old Charges) que incluíam normas tão
diversas como saber estar à mesa ou como se dirigir ao Mestre, `a sua filha ou
mulher, bem como `as pessoas que os rodeavam. O manuscrito Regius (Poema de
Deveres Morais datado de 1390) é o mais importante destas antigas ‘charges’,
uma espécie de manual de conduta contendo instruções para os mestres e
directivas para os operários.
Um
outro documento, o manuscrito Cooke, detalha a lenda de constituição da
maçonaria em Inglaterra atribuída ao rei Athelstan e a adopção do irmão do rei
pela corporação dos pedreiros. Esta adopção garantiu-lhes uma constituição real
e estatutos conformadores da profissão (The Matthew Cook Manuscript). De acordo
com a Carta Real, os maçons passaram a ter o direito a se reunirem em York e
serem governados por um Grão-Mestre, o Príncipe Edwin (The Regius Manuscript).
Com a morte do príncipe a maçonaria entrou em declínio nos cinquenta anos a
seguir, mas seria revitalizada em 1041 pelo Rei Eduardo, o Confessor, que
designou Leofric, Conde de Coventry, como superintendente dos maçons.
À
saída da Idade Média surge uma civilização nova que não tem no entanto as
mesmas bases e os mesmos objetivos da civilização cristã. Os fatores económicos
e políticos tornam-se essenciais e a religião ocupa um lugar decrescente nos
assuntos do Estado. É no momento em que se apaga a concepção sagrada da
sociedade que surgem as sociedades secretas. Os construtores já não são
apreciados como uma classe social de importância determinante até porque a nobreza
considera o trabalho manual ‘vil e desonroso’. Hermetistas, alquimistas e
astrólogos são olhados com suspeição. Luís XIV, em França, expulsa os
astrólogos da Academia das Ciências. A liberdade de associação é coarctada; os
governantes temem os pequenos grupos que imaginam a orquestrar conspirações
contra o poder real e que sob a forma de “fraternidades” preparam o surgimento
de partidos de oposição (Jacq 1975,14).
Entre
os grupos sob suspeita estão as lojas dos construtores que abriram as portas a
todos os que não se reviam nas doutrinas sociais dominantes, no domínio da
religião, das artes e das ciências, reforçando-se por essa via os laços entre
as minorias segregadas pela concentração do poder real nas monarquias absolutas
da Europa continental. A Maçonaria já não oferece uma qualificação profissional
direta (aos que a procuram) mas interioriza os antigos ideais de iniciação em
ritualismos que atraem as classes nobres e cultas. Contudo a mentalidade
profana que consolida a ascensão da burguesia mercantil toma conta da
maçonaria. A maçonaria politiza-se e o simbolismo e a espiritualidade pungente
dos maçons medievais torna-se um objecto de museu. Os rituais são adaptados aos
gostos diletantes da época.
De
certa forma, a constituição da Grande Loja de Londres em 1717 é o toque de
finados da antiga mensagem espiritual dos maçons operativos quando a maçonaria
se institucionaliza e se transforma em Ordem. A história tem sido contada
inúmeras vezes: vários maçons pertencendo a quatro lojas londrinas (Loja n.º 1
do Ganso Grelhado, n.º 2 da Coroa, n.º 3 da Taberna da Macieira e n.º 4 da
Taberna Caneca de Vinho) reuniram-se com irmãos mais antigos, na Taberna da
Macieira. Resolveram restaurar a comunicação trimestral entre os oficiais das
Lojas, reunir-se em assembleia nas festas anuais e escolher de entre eles um
Grão-Mestre (Anderson 1723). A identificação da maçonaria com os pubs tinha uma
razão prática. Era o local onde as pessoas comuns se reuniam e que funcionava
ao mesmo tempo como local de refeições e como clube de convívio.
As
lojas reuniam no segundo andar dos pubs onde conduziam as suas cerimónias num
ritual abreviado entre a chegada dos pratos e os brindes ou onde jantavam
depois da sessão; os obreiros usavam luvas e espadas. O local de sessão não tinha
mobiliário especial e os símbolos eram desenhados num painel ou traçados a giz
(ou a carvão) no chão para depois serem apagados no final da sessão. O jantar
tinha um papel central em todo o cerimonial, bem como a música e as canções. As
sessões tinham por objectivo essencial o convívio fraternal entre obreiros
(Zeldis, Pietre-Stone). A loja maçónica era um refúgio de paz e tranquilidade
num tempo de incerteza política em que a memória da guerra religiosa (entre
protestantes e católicos e entre protestantes “oficiais” e “dissidentes”)
estava presente na memória de todos.
Quem
eram os ‘dissenters’? Os ‘dissenters’ integravam um grupo de protestantes
ingleses que se separaram da Igreja Estabelecida (a Igreja Anglicana) durante
os séculos XVI, XVII e XVIII. Depois do restabelecimento da monarquia inglesa
em 1660 e como o Acto de Uniformidade de 1662 que exigia a ordenação dos
clérigos protestantes muitos abandonaram a Igreja Anglicana, recusando-se a
usar o hábito e a interferência da Coroa em assuntos religiosos. Parte
significativa deles emigrou para as colónias britânicas no Novo Mundo dando
origem aos Estados Unidos da América.
As
viagens marítimas e as invenções técnicas transformaram a economia medieval
abrindo novas perspectivas de progresso e humanismo que fizeram recuar o
fanatismo e a intolerância associadas à Idade Média. Um tempo novo surgia
fértil para o crescimento da maçonaria especulativa (Zeldis, idem).
Christopher
Wren
Christopher Wren |
Estes
maçons especulativos decidiram constituir-se em Grande Loja, reunindo-se para o
efeito em assembleia na festividade de S. João Baptista, na Taberna do Ganso
Grelhado, na praça da Catedral de S. Paulo. Tendo como reza a tradição eleito
“com mão levantada o nobre Anthony Sayer como Grão-Mestre o qual foi imediatamente
investido nos adornos do ofício pelo mestre mais antigo e instalado, sendo
felicitado pela assembleia que lhe rendeu homenagem”. A subida do Rei Jorge I
ao trono levou várias lojas a procurar um protector mais activo, face à
incapacidade física de Sir Christopher Wren ‘na expectativa de terem à sua
frente um Irmão nobre’ (Vibert 2010) . É importante perceber que a criação da
Grande Loja de Londres em 1717 não acontece num vazio. Ela resulta da
transformação da Grande Loja dos maçons operativos que usufruía de grande
protecção da monarquia inglesa.
A
maçonaria tinha vivido um período de grande prosperidade em Inglaterra sob a
protecção do Rei Carlos II. Rei que havia sido iniciado na Arte Real durante o
seu exílio em França durante a república de Oliver Cromwell. Tal período
culminou, após o regresso do Rei a Inglaterra, com a eleição em 1663 de Henry
Jermyn, Conde de St. Albans, como Grão-Mestre, tendo Christopher Wren e John
Webb como seus Grandes Vigilantes. Em Junho de 1666, Thomas Savage, Conde de Rivers,
sucedeu a Jermyn como Grão-Mestre, tendo Christopher Wren como seu
Vice-Grão-Mestre. Christopher Wren era por profissão arquitecto e dirigiu a
reconstrução da cidade de Londres pasto de um grande incêndio nesse mesmo ano
de 1666. O Grão-Mestre Wren fez adoptar novos regulamentos de construção que
impuseram que as futuras construções citadinas fossem feitas em pedra e tijolo,
em vez da tradicional madeira.
O
Rei Carlos II e o Grão-Mestre Conde Rivers incumbiram Christopher Wren da
planificação urbanística, cujo plano de reordenamento não colheu contudo a
aprovação da Câmara de Comuns (do Parlamento) sendo a cidade reconstruída de
acordo com a antiga traça. Christopher Wren dirigiu a reconstrução da Catedral
de S. Paulo, tendo a cerimónia (maçónica) de lançamento da pedra fundamental
tido a presença do Rei, do Grão-Mestre e seus adjuntos, da nobreza londrina, do
Mayor, dos bispos e do clero. A Fraternidade Maçónica participou na construção
de variadíssimas igrejas paroquiais e outros edifícios públicos.
Durante
o reinado de Jaime II (irmão do Rei Carlos II) a maçonaria deixou de ter a
relevância que tinha tido até aí, morrendo o novo Grão-Mestre, o Conde de
Arlington, antes do rei ser coroado. Christopher Wren foi eleito Grão-Mestre
mas as lojas passaram por um período de funcionamento irregular circunscrito ao
Sul de Inglaterra (Lomas 2006, 45-6).
A
maçonaria operativa desapareceu no fim da Idade Média. As lojas que lhe
sobreviveram reduziam-se a um punhado. Enuncia-se muitas vezes a questão se há
alguma ligação entre as associações de companheiros e as lojas dos maçons
especulativos. Os autores dividem-se quanto a essa questão. Sabe-se que as
associações de companheiros são assinaladas em França e na Alemanha durante o
século XIII e as suas práticas secretas têm pontos de similitude com as dos
maçons. René Guinon afirma por exemplo que a maçonaria e o companheirismo não
passam de uma e mesma organização de que saíram dois ramos, provavelmente
durante a Renascença.
Marius
Lepage assinala que existe historicamente uma dupla corrente de influências: do
continente para a Inglaterra (durante a Idade Média) e a seguir da Inglaterra
para o continente (fim do século XVIII). Isso leva este autor francês a afirmar
(o que discordarão seguramente os historiadores ingleses) que a maçonaria
inglesa é filha das organizações de companheiros continentais, especialmente
das alemães e francesas (Lepage 1990).
Será
provavelmente mais prudente dizer-se que a maçonaria continental experimenta
uma evolução que tem a ver com os seus condicionamentos históricos, sociais e
culturais colhendo seguramente parte da inspiração nas associações corporativas
dos companheiros construtores, na sua disciplina de classe e hierarquização
profissional. Regras que lhes permitiam funcionar como um lóbi de pressão junto
de empregadores, impondo que apenas os maçons que faziam parte das associações
fossem recrutados para as obras, fixando mínimos salariais e condições estritas
para a aceitação de membros que pouco tinham a ver com as condições fluidas que
apontámos quanto à maçonaria operativa inglesa. Na mesma linha de raciocínio
não é curial identificar-se a criação da maçonaria especulativa – continental –
como uma invenção puramente inglesa desenraizada das transformações sociais que
acompanham o surgimento do século das Luzes, o Iluminismo e a dessacralização
da vida comunitária na Europa continental.
3.
A Maçonaria Especulativa em Inglaterra e França
O
nascimento da maçonaria especulativa, em resultado a criação da Grande Loja de
Londres (GLL), inicia um período de grande pujança na vida da Ordem com o
surgimento de novas lojas em Inglaterra, as quais atingiram o número de
sessenta e quatro em 1725, cinquenta das quais localizadas na cidade de
Londres. No continente, surgirá uma loja em Paris em 1725 e outras seis nos
anos seguintes, as quais constituíram, em 1743, uma Grande Loja Provincial com
a designação de Grande Loja Inglesa de França (GLIF). Esta autonomizou-se,
posteriormente, com a designação de Grande Loja de França (Lepage 1990, 47 e
62). Esta expansão não foi generalizada por todo o continente europeu: em 1707,
a Dieta imperial (alemã) aprovou um decreto suprimindo a autoridade da Grande
Loja de Estrasburgo sobre os maçons alemães. Em 1731 e 1732 dois novos decretos
declararam ilegais as confrarias dos construtores, sendo estas forçadas à
clandestinidade (Jacq 1975, 23).
Apesar
da criação da Grande Loja de Londres (GLL), outras lojas inglesas não seguiram
a tendência geral de subordinação a esta Obediência e mantiveram-se autónomas,
preservando as antigas tradições rituais. Em 1751 estas lojas juntaram-se numa
Grande Loja rival com a designação “A Antiga e Honrosa Sociedade dos Maçons
Livres e Aceites”. Escolheram como sua côte d’armes quatro animais
representados na visão bíblica de Ezequiel (o leão, o boi, o homem e a águia).
Estes maçons designavam-se como os ‘Antigos’ por guardarem as antigas práticas
rituais, contrapondo-se aos maçons da GLL que designavam dos ‘Modernos’. A
criação da Grande Loja dos Antigos de York recebeu apoio de outras Grandes
Lojas.
UGLE
As
duas obediências seriam unificadas, quase cem anos depois (1813), pela criação
da Grande Loja Unida de Inglaterra, sendo dela primeiro Grão-Mestre, o duque de
Sussex, até à sua morte em 1843 (MacNulty 1991, 70-1). Em 1782 iniciou-se o
costume da Grande Loja inglesa ser dirigida por um membro da família real com a
eleição do Henrique Frederico, Duque de Cumberland e irmão do Rei Jorge III,
como Grão-Mestre. A ele se sucederia o Príncipe de Gales em 1790.
A
maçonaria estabeleceu-se em França entre 1718 e 1725, em Espanha em 1728, em
Praga em 1729, Nápoles em 1723 e na Suécia em 1735. Nas colónias americanas a
maçonaria foi reconhecida com a indicação do Grão-Mestre Provincial de Nova
Iorque, Nova Jersey e Pensilvânia pela Grande Loja de Inglaterra em 1730. A
maçonaria terá chegado a Portugal entre 1735 e 1743. Existem indicações que uma
loja inglesa identificada pela Inquisição sob o título “Loja dos Mercadores
Heréticos” estaria em actividade no nosso país em 1727. Esta loja seria
regularizada em 1735 pela Grande Loja de Inglaterra com o número 135, tendo uma
segunda loja sido criada em 1733, a qual adoptaria o nome de ‘Casa Real dos
Pedreiros Livres da Lusitânia’ (Gonçalves, Pietre-Stone).
A
maçonaria francesa empreendeu o seu próprio caminho e em 1737 os franceses
tomaram conta da maçonaria nacional. O duque de Aumont passou a intitular-se
‘Mestre das Lojas’, celebrando com um jantar aberto à aristocracia a sua
ascensão a chefe da maçonaria francesa. A nobreza acorria às lojas e a 24 de
Junho de 1738, o Grão-Mestre da GLL designa o duque de Autin (Governador de
Orleães) como Grão-Mestre da maçonaria francesa. O duque de Autin faria aprovar
uma nova Constituição e a maçonaria deixou definitivamente as tabernas
acolhendo-se aos salões respeitáveis da aristocracia.
Criada
em Inglaterra por pastores protestantes, a maçonaria retém do cristianismo um
deísmo muito amplo e o essencial da moral evangélica. Na França do Antigo
Regime representa uma novidade com sucesso imediato. Responde à necessidade de
sociabilidade que desperta nas relações entre as classes sociais, já que
oferece aos que a procuram a filosofia das Luzes abrindo as vias do ocultismo e
do misticismo. O misticismo de Dom Pernetey e dos Iluminados de Avinhão, o ocultismo
de Martinès de Pasqualy ou de Saint Germain, as influências de homens célebres
como Cagliostro, Mesmer ou Casanova são o reflexo da vivência das lojas. Nesse
contexto, a ordem maçónica tem a honra de captar Voltaire e fazê-lo iniciar na
Loja Três Irmãs em Abril de 1778. Como diz Chevalier nas lojas francesas
pratica-se muita filantropia e papel determinante será conferido às lojas de
adopção femininas (as Irmãs da Candura) lojas que atraíam a alta nobreza
(Chevalier 1975, 411).
As
lojas inserem-se no que se tem designado por uma ‘maçonaria de sociedade’, uma
maçonaria impregnada do elemento aristocrático, associada à oferta de um
divertimento mundano, à animação dos ‘irmãos’ e das ‘irmãs’ num teatro de
sociedade. Elas são palco de uma sociabilidade maçónica marcada por bailes,
concertos de amadores, jogos literários e por cerimónias de recepção em que a
encenação determina o êxito e a transmissão da essência do grau (Beaurepaire
2005). A ‘maçonaria de sociedade’ é dirigida pela melhor aristocracia francesa
(pelos duques de Montmorency -Luxembourg e de Orléans), como na Alemanha o é
pelos Schlosslogen e os Hofglogen ou na Rússia pela família imperial. A
‘maçonaria de sociedade’ funciona ao ritmo de abertura das lojas, convenientemente
associada ao recrutamento de certos ‘nomes’, ao envio de cartas-convite, à
leitura de anúncios nas lojas irmãs, bem como aos bailes e festas que marcam a
entrada no teatro mundano. As lojas figuram nos guias de viajem e é de bom tom
visitá-las.
A
maçonaria combina sociabilidade mundana e hospitalidade doméstica. Emancipa-se
do quadro dos Templos para se espalhar pelos apartamentos e hotéis
particulares: um quadro de loja portátil, cortinas, fauteuils e graus
conferidos, por comunicação, asseguram a mobilidade na cadeia de união
(Baurepaire, idem).
É
matéria polémica se a maçonaria inspirou os eventos políticos que conduziram à
Revolução Francesa de 1789. Os maçons eram numerosos entre aristocratas, quer
dizer os privilegiados. Não estariam particularmente animados do espírito
democrático, pelo que será abusivo dizer-se que a maçonaria quis intervir de
forma deliberada no plano político. Como veículo de ideias (novas) ela
desempenhou um papel importante no período pré-revolucionário. Os maçons
estavam longe de partilharem as mesmas ideias e a Ordem não lhes impunha uma
doutrina precisa. Como recorda Chevalier os maçons eram de tal forma moderados
que o terror jacobino concluiu que ser maçom e cidadão constituía qualidades
incompatíveis. Durante a revolução, a maçonaria desapareceu tal como as
Academias e a grande maioria dos maçons encontrou na ‘igualdade’ do Terminador
um sabor bem amargo. O turbilhão revolucionário teve os seus efeitos nas lojas
e a participação de clérigos acabou rapidamente o que teve consequências na
luta que oporia a Ordem à Igreja Católica em boa parte dos séculos XIX e XX
(Chevalier 1975, 323).
De
forma irónica, a maçonaria especulativa ascende das cinzas da maçonaria das
corporações, marcada pelo abandono do espírito fundador da construção, pela
reserva no acesso a uma elite de construtores e pela perseguição dos
verdadeiros construtores nalguns pontos da Europa. Se se tiver em consideração
o tipo de obreiros que preenchiam as lojas dos princípios do século XVIII
encontramos eclesiásticos, homens políticos, alta burguesia, teístas e
ateístas, cientistas e ocultistas . Na maçonaria tradicional (operativa) a
lealdade na conduta unia os obreiros à volta de um mesmo desígnio: construir o
Templo à glória de Deus e traduzir a experiência espiritual em símbolos. Na
maçonaria especulativa essa ideia central ganha os favores apenas de uma das
correntes maçónicas. A maçonaria torna-se um local de prestígio a que é
importante pertencer-se para se progredir socialmente.
4.
Os maçons aceites. Um consenso ético de sobreposição.
Os
maçons mudam: deixam de ser uma espécie de congregação de maçons operativos que
aceitam todas as doutrinas da Santa Madre da Igreja e tornam-se uma organização
de cavalheiros educados e eruditos. Homens que privilegiam a tolerância
religiosa e a fraternidade entre indivíduos de diferentes religiões e
argumentam que a simples crença numa divindade substitui as controversas
doutrinas teológicas. Na linguagem da época, os maçons operativos foram
substituídos pelos ‘maçons aceites’ ou ‘cavalheiros maçons’ ou ainda ‘maçons
especulativos’ (Knoop & Jones 1947).
Albert
Mackey na sua Enciclopédia de Maçonaria alega que existe uma clara linha
divisória entre os ramos operativo e especulativo da maçonaria, embora se deva
assumir que a variante operativa é o ‘esqueleto sobre o qual foram aplicados os
músculos, tendões e nervos do sistema especulativo’ (MacKey 1999). Mackey
define-a como a ‘aplicação científica e a consagração religiosa das regras e
princípios, linguagem, ferramentas e materiais da maçonaria operativa na
veneração de Deus, na purificação do coração, na interiorização dos dogmas da
filosofia da religião’. Trata-se de um sistema ético e como todos os sistemas
éticos tem três sub-doutrinas, morais, religiosas e filosóficas.
O
primeiro subsistema moral define a maçonaria como uma ‘ciência da moralidade’,
fraternidade ou associação de homens unidos por um vínculo particular que
inculca, como laivo fundamental dos seus ensinamentos, um dever de gentileza e
cordialidade. Há três grandes deveres que o aprendiz está obrigado: para com
Deus, o vizinho e si próprio. O dever para com o vizinho é actuar segundo o
esquadro e tratá-lo com gostaríamos que nos tratasse a nós próprios. O segundo
subsistema religioso não está preso a uma teologia particular mas determina a
crença em Deus e na imortalidade da alma, porque ‘conhecemos o espírito
fraterno e universal de Deus antes de podermos apreciar convenientemente a
fraternidade dos homens’.
O
terceiro e último subsistema filosófico procura transformar o neófito num maçon
zeloso, levando-o a conhecer e interpretar os símbolos (especial dimensão dos
ensinamentos maçónicos) e a relacioná-los com a procura da palavra perdida, a
demanda da verdade divina, a forma e maneira dessas descobertas, premiando os
que preservam e têm fé. Mackey conclui que enquanto a antiga maçonaria
operativa foi o berço da especulativa e transmitia ensinamentos nas suas
Constituições sobre as doutrinas morais e religiosas não fazia qualquer
referência às doutrinas filosóficas (MacKey idem).
Não
se conhece a razão de ser da transformação da Maçonaria operativa em
especulativa. Alec Mellor alega que para preencher os vazios e alimentar a
tesouraria as lojas operativas recorreram a um expediente clássico: abrir as
lojas a interessados que se distinguiam na arquitectura, a mecenas e sábios,
que foram sendo admitidos sob o nome de ‘maçons cavalheiros’, ou ‘maçons
aceitos’, iniciados nos segredos do ofício e sujeitos aos antigos juramentos
(Mellor 1989, 13-4). O crescimento do elemento ‘aceite’ levou ao
desaparecimento dos profissionais dos ofícios, embora algumas lojas meramente
operativas subsistissem em Inglaterra e na Escócia. Mellor sugere que uma outra
hipótese plausível da transformação da maçonaria operativa em especulativa terá
sido a acção da Royal Society, que a partir de 1667 passou a admitir nas
fileiras homens eminentes de todas a religiões, inclusive os católicos mais
dogmáticos.
Désaguillers
O
pastor Théophile Désaguillers (1638-1739), um dos fundadores da maçonaria
especulativa, foi membro da Royal Society como de outras academias
estrangeiras, inclusive a Academia de Ciências de Paris. Désaguillers era
membro da Loja Antiguidade n.º 2 (uma das fundadoras da Grande Loja de Londres)
tornando-se Grão-Mestre em 1719. O que daria a natureza especulativa à
maçonaria foi a criação da Grande Loja de Londres que Mellor considera ter sido
um expediente para ‘salvar uma maçonaria agonizante’ criando-se um organismo
federador, tendo à frente um Grão-Mestre, o primeiro ‘Anthony Sayer,
cavalheiro’ (Mellor 1989, 16).
A
maçonaria especulativa não é algo artificial e composto para efeitos de
manutenção dos antigos privilégios das guildas operativas. É uma extensão
natural das tentativas dos homens de descobrir as suas origens, de compreender
o sentido da vida e perceber qual o seu destino final. Embora a maçonaria,
enquanto ordem formada por maçons especulativos, date da segunda década do
século XVIII ela não inventou os rituais. Os maçons especulativos perceberam a
importância dos rituais antigos que condensaram, codificaram e simplificaram
sob a forma usada nos cerimoniais especulativos (Falconer, The Square and the
Compasses). Os que criaram as primeiras lojas especulativas não viram o
trabalho ritual como um fim em si mesmo mas como uma base para um
enriquecimento e debate filosófico. Os cerimoniais cumpridos em Templo deveriam
ser um veículo não cerceador, sendo subsidiários da principal função de
permitir a cada um comunicar os seus pensamentos em grupo. Os rituais foram
concebidos para permitir libertar os obreiros de assuntos profanos, que de
outra forma impediriam a libertação dos espíritos. A transmissão exacta do
texto do ritual não tinha sentido, a não ser que fosse comunicado de forma a
captar a atenção da sua mente, despertar o interesse e incitar a sua
compreensão (Falconer, idem).
Constituindo
uma base de trabalho, os rituais especulativos deviam permitir a discussão de
assuntos com relevância ou interesse, até porque diferentemente de outros
animais os seres humanos têm uma enorme curiosidade sobre as suas origens e o
que os rodeia. Desde que a história tem registos há 6000 anos, há indicações
crescentes de mitos e explicações religiosas (e outras) que procuram dar
respostas para esse questionar objectivo que se integra nos propósitos da
maçonaria especulativa.
No
fim do século XVIII, o ideal da maçonaria moderna traduzia-se em exaltar
templos à virtude e esmagar as paixões, combatendo os vícios. Estas intenções
de aperfeiçoamento moral completam-se com a vontade de bem-fazer, de
assistência, que está reservada aos homens que ocupam um lugar elevado na
sociedade. Neste período, as minorias ocupam-se do ocultismo e nesta arte
secreta destacam-se nomes como os do filósofo Saint-Martin, do místico
Willermoz ou do controverso Cagliostro. Baralha-se espiritualidade e teosofia,
simbolismo e adivinhação (Jacq 1975, 255-260).
5.
A Maçonaria Republicana no século XIX
A
maçonaria do século XIX é antes de tudo política e social (pelo menos no
continente europeu), uma vez que a maioria dos maçons não se preocupam tanto
com o esoterismo da iniciação e a prática simbólica mas com o comprometimento
político da Ordem. As várias tendências e forças políticas da época
confundem-se nas lojas. A maçonaria não se apoia nos templos mas em palavras de
ordem sonantes como <liberdade, igualdade e fraternidade>. A Ordem
maçónica não adopta uma orientação política específica já que ela favorece um
quadro de discussão mais ou menos amplo sobre os temas da actualidade. A
maçonaria novecentista toma contudo posições políticas claras e promove os
valores democráticos e republicanos. O ‘livre-pensamento’ sob todas as formas
torna-se o seu princípio cardinal. A maçonaria pequeno-burguesa transforma-se
num super-partido que luta contra a Igreja (e a sua doutrina) e encontra o seu
ponto de glória na criação da Sociedade das Nações.
Três
exemplos podem avocar-se do significativo grupo de maçons políticos e
intelectuais do século XIX. Émile Justin Combes, presidente do conselho do seu
departamento municipal, senador, torna-se presidente do grupo da esquerda
democrática em 1893. É iniciado na Loja Les Amis Réunis de Barbezieux e
filia-se em Pons na Loja Tolérance et Étoile de Saintonge. Entra no governo de
Léon Bourgeois como ministro da instrução pública, das artes e da cultura e
desdobra-se na defesa da república e do laicismo. Manda encerrar em poucos dias
2500 escolas religiosas. Em 1904 faz publicar uma lei que interdita os padres
de ensinar (Daudin 2003, 34). Jules François Ferry, advogado e redactor do
jornal Le Temps é eleito deputado republicano em 1869 e torna-se perfeito do
Seine e depois em Paris em 1870. É um anticlerical determinado, ministro da
instrução pública constrói uma rede de escolas públicas suprimindo as
congregações religiosas. Determina-se em enfraquecer a Igreja enquanto poder
com projecção política e ideológica sobre a sociedade do tempo (Daudin 2003,
60). É iniciado na Loja Clémenté Amitié de Paris e adere a outra Loja, a
Alsace-Loraine. Como ministro da educação impulsiona as grandes reformas
educativas da República Francesa: laicismo, gratuitidade do ensino primário,
extensão do ensino secundário público às raparigas. Léon Gambetta advogado e
político, membro do governo de defesa nacional. Foi membro do governo de Jules
Grévy, chegando à presidência do Conselho. Foi membro de várias lojas do Grande
Oriente de França, designadamente La Réforme de Marselha. É responsável pela
introdução da discussão política nas lojas do Grande Oriente, recebendo por
isso críticas dos mais tradicionalistas como Oswald Wirth (Daudin 2003,
291).
Esta
predominante associação da via iniciática ao combate político e republicano
agrava-se no século XX, o que é contemporâneo por um lado da emergência de
ideologias fascistas que conduzem ao nazismo na Alemanha e ao fascismo em
Itália, Espanha e Portugal. Há uma fragilização do espírito iniciático na
maioria e das lojas e as ideias-força da igualdade, da fraternidade e do
combate pela liberdade tornam-se prevalecentes. A aposta no igualitarismo sem princípios
conduz à confusão entre valores espirituais e políticos no seio das lojas.
Estas transformam-se em escolas nocturnas ou reuniões de comités. Os partidos
que emergem com o republicanismo confundem-se com as lojas, arregimentam
milicianos para os golpes militares que desferem contras a monarquias europeias
de direito divino. A mistura entre os propósitos e valores da maçonaria e da
carbonária foi generalizado. A segmentação entre maçons e antimaçons é
acentuada com a publicação da encíclica Ecclesiam pelo Papa Pio XII de 13 de
Setembro de 1821.
Pio
VII
Pio VII |
Nela
se exprime claramente a abjuração dos maçons pelo chefe da Igreja Católica
(Encíclica Ecclesiam, Papa Pio VII):
Nada
ignora o prodigioso número de homens culpados que se uniram nestes tempos tão difíceis, contra o Senhor e contra Cristo, e
aplicaram todos os esforços em enganar os fiéis dirigindo-os para uma falsa e
vã filosofia e arrancando-os ao seio da Igreja com a esperança de arruinar essa mesma Igreja. Para
alcançar mais facilmente os seus fins a maior parte deles formaram sociedades ocultas, seitas clandestinas,
procurando por essa via agregar o maior número ao seu complô. (…) nesse aspecto
é necessário assinalar que há uma nova sociedade formada recentemente e que se
propaga por toda a Itália e outros países, a qual ainda que dividida em vários ramos e escondendo-se sob vários
nomes, segundo as circunstâncias, é única tanto pelo conjunto de opiniões e
pontos de vista como pela sua constituição. Ela a maioria das vezes aparece designada
pelo nome de Carbonária.
Este
desafio do chefe da Igreja Católica aos maçons conduz ao reforço do poder
interno dos que visavam combater a Igreja e fazer cessar os seus privilégios
acumulados por séculos de associação entre o poder temporal e espiritual. Isso
conduz à rejeição da dimensão espiritual da Maçonaria e à supressão do Grande
Arquitecto do Universo como princípio instituidor da Ordem Maçónica. Trata-se
de uma realidade ditada pelas circunstâncias do continente europeu que a
Maçonaria Inglesa desconhece até pelo facto de, na sequência do cisma com Roma,
a Igreja Nacional Inglesa ter-se reformado institucionalmente reconhecendo o
Rei como autoridade suprema da Igreja Anglicana. Assim se explica que parte
importante do episcopado seja formada por maçons que detêm posições importante
na Ordem. A mesma tendência foi seguida nos países escandinavos e na Alemanha
em que os luteranos foram autorizados a continuarem na maçonaria, revelando a
estrutura das confissões protestantes simpatia pela actividade das lojas. A
‘profissão política’ das lojas do Grande Oriente de França não deixou de ser
criticado pela corrente tradicionalista que a considerou uma adulteração dos
princípios e do ideário maçónico. Guénon por exemplo dizia o seguinte (Guénon
1953, 265):
O
que é lamentável e que há que verificar é a ignorância completa em muitos
maçons do simbolismo e da sua interpretação esotérica, o abandono dos estudos
iniciáticos sem os quais o ritualismo
não é mais que um conjunto de cerimónias vazias de sentido.
Em
1877, as novas Constituições do Grande Oriente de França suprimem a referência
ao Grande Arquitecto do Universo (GADU). Na Assembleia Geral que teve lugar a
13 de Setembro de 1877, o GODF proclama que não é necessário a um candidato à
maçonaria, na sua área de jurisdição, declarar a crença no GADU. Em 1878 dá-se
a ruptura com a Grande Loja Unida de Inglaterra que deixa de reconhecer o GODF
como potência regular (Buta, Pietre-Stone).
Oswald
Wirth
Oswald Wirth |
Ao
lado desta maçonaria politizada e social emerge uma maçonaria iniciática cujo
representante mais conhecido é Oswald Wirth que funda em 1912 a revista Le
Symbolisme onde difunde a via simbólica e ritualista. Iniciado em 1882 na Loja
La Bienfaisance Châlonnaise critica o abandono do simbolismo pela maçonaria
francesa. Filia-se na Loja Travail et Les Vrais Amis Fidèles da Grande Loja
Simbólica Escocesa. Participa na criação da Grande Loja de França nela se
mantendo até à sua morte, em 1943. Publica vários livros importantes ‘O Livro
do Aprendiz’, ‘O Livro do Companheiro’, ‘O Livro do Mestre’, ‘O Ideal
Iniciático’ ou ‘Os Mistérios da Arte Real’.
Na
sua continuação, Édouard de Ribaucourt vem defender que a herança dos
construtores das catedrais é o principal acervo da maçonaria e que o GADU ‘e
uma base intangível da Ordem tal como o Livro da Lei Sagrada simbolizado na
Bíblia (Jacq 1975, 244). Ao confrontar o Grande Oriente da França com estas
ideias, Ribaucourt é demitido do Grande Oriente e funda em 1913 a Grande Loja
Nacional Independente e Regular para a França e as Colónias Francesas, a qual
se tornará mais tarde a Grande Loja Nacional Francesa. No manifesto de 27 de
Dezembro de 1913, proclama ‘fomos levados para salvaguardar a integridade dos
nossos rituais rectificados e a manter em França a verdadeira Maçonaria de
Tradição, a única que existe a nível internacional, a nos constituirmos em
Grande Loja Nacional independente para a França e as colónias francesas’ (Jacq
idem).
6.
O regresso à via tradicional no século XX
As
primeiras décadas do século XX vêem por isso a maçonaria francesa envolvida nos
grandes confrontos políticos desse tempo. Em 1917, a maçonaria encoraja a
revolução russa contra o Império dos czares, rebelião em que participam as
lojas russas clandestinas dirigidas por Nikolai Nekrasov e Alexander Kerensky e
apoiadas pelos franceses. A possibilidade de legalização da maçonaria russa, a
seguir à Revolução de Outubro, frustra-se quando Lenine e Trotsky ilegalizam a
maçonaria, vendo-a um instrumento dos interesses dos países capitalistas. Em
França, o Partido Radical, o braço político da maçonaria, decresce no apoio que
tinha antes da Primeira Guerra Mundial. Surgem novos partidos de esquerda que
não se revêem nos valores e ideário da maçonaria. O Grande Oriente de França e
a Grande Loja Francesa participam no Congresso de Genebra de 1921 com o
objectivo de repensar-se e redefinir-se os objectivos da Ordem depois da
destruição trazida pela Guerra.
A
maçonaria é definida como uma instituição filosófica e progressiva que procura
o progresso material, social, intelectual e moral e o bem-estar da humanidade
(Jacq 1975, 246). O Congresso define que a maçonaria francesa deve-se situar na
união das esquerdas para organizar uma efectiva defesa nacional. Em Novembro de
1922, o quarto congresso da Internacional Comunista, em Moscovo, decreta o
rompimento de relações com a maçonaria universal. Os filiados comunistas que
sejam maçons – determina a Internacional Comunista - deverão demitir-se das
obediências a que pertencem. A maioria dos maçons franceses abandona o partido
comunista e mantém-se nas lojas. As relações entre os dois lados arrefecem e
apenas em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial, são restabelecidas.
Em
1929, a Grande Loja Unida de Inglaterra questiona a conformidade das
obediências francesas face aos princípios da regularidade. A saber o
reconhecimento da soberania absoluta da GLUI, a crença na vontade revelada de
um Grande Arquitecto, a existência visível em Loja das Três Grandes Luzes da
Maçonaria (O Livro da Lei Sagrada, o Esquadro e o Compasso) e a interdição de
toda a discussão política e religiosa. A estes critérios, apenas a Grande Loja
Nacional Francesa, se adequa. O Grande Oriente de França opta por se manter na
‘irregularidade’ a ceder à exigência de reconhecimento da soberania inglesa em
questões de orientação maçónica. No princípio do século XX, afirmam-se,
portanto, duas tendências distintas no seio da Maçonaria Universal: de um lado,
a Grande Loja Unida de Inglaterra como guardiã das tradições e do carácter
simbólico e iniciático da maçonaria; do outro, o Grande Oriente de França,
defensor de uma maçonaria aberta, laica, livre-pensadora onde a prática
política é considerada uma via legítima para o aperfeiçoamento individual e o
progresso da Humanidade.
Cartaz
de Propaganda (Governo de Vichy)
A
Segunda Guerra Mundial interrompe a acção dos maçons que visavam a restauração
da dimensão tradicionalista da Ordem. Aos movimentos anti-maçónicos segue-se a
perseguição geral, que se inicia com o decreto do governo de Vichy de 14 de
Agosto de 1940, que interdita e suprime todas as sociedades secretas.
Multiplicam-se em França as prisões e execuções sumárias e os funcionários
públicos maçons são despedidos, assim como é proibida a admissão de indivíduos
conectados com a Ordem. Três anos depois, por decreto de 15 de Dezembro de
1943, o General de Gaulle anula o decreto do governo de Vichy legalizando a
actividade das lojas maçónicas em França (Jacq 1975, 250-4). A maçonaria
encontra-se num estado debilitado com as lojas dizimadas pela guerra, tornando
indispensável a sua depuração e reintegrando os obreiros que não haviam sido
cúmplices dos ocupantes alemães. O Grande Oriente de França conta com 5500
filiados contra os 35000 que detinha em 1939 (Deleclos & Caradeau 2006,
584).
O
recrutamento é estimulado e em 1947 as diversas obediências maçónicas retomam a
sua actividade mantendo umas a orientação mais interventiva (ou menos
interventiva), nas questões sociais e políticas, que havia marcado a sua
orientação antes da eclosão da Segunda Guerra. As cinco grandes obediências
francesas (o Grande Oriente de França, a Grande Loja de França, a Grande Loja
Nacional Francesa e o Direito Humano) procuram retomar a sua própria
identidade. O Grande Oriente continua marcado pelos valores da Terceira
República e a acção social. O Direito Humano mantem uma orientação semelhante.
A Grande Loja Nacional Francesa integra os maçons ingleses e americanos que
vivem em França e isso conduz ao abandono do principal rito da obediência – o
Rito Escocês Rectificado – e a adopção do Rito de Emulação seguido pelas lojas
inglesas. Problemas no funcionamento desta última grande loja levam a uma cisão
em 1958, com a criação da Grande Loja Nacional Francesa Opera que adopta, mais
tarde, a designação de Grande Loja Tradicional e Simbólica Opéra. Grande
Oriente e Grande Loja Nacional disputam a maioria dos maçons franceses. Novas
obediências surgem entretanto, sendo a mais significativa a Grande Loja
Feminina de França, organização exclusiva de mulheres, que resulta da
autonomização das lojas de adopção do Grande Oriente. Outras obediências mais
pequenas são a Ordem Iniciática Tradicional da Arte Real, a Grande Loja Mista
Internacional, a Grande Loja Mista de França e a Grande Loja Independente e
Soberana dos Ritos Unidos.
Não
constituindo seguramente um problema exclusivamente francês, as grandes
questões com que se confronta a Maçonaria Especulativa são desde logo: a
divisão administrativa e jurídica entre as obediências, as lojas ‘regulares’
reconhecidas como tal pela Grande Loja Unida de Inglaterra e outras que os
primeiros dizem ‘irregulares’. E se a Maçonaria não é uma religião, no sentido
do cristianismo, do judaísmo ou do Islão, não passa despercebido que estas religiões
têm uma dimensão exotérica que intervém em sociedade, moldando o comportamento
dos ‘fiéis’, fixando valores referenciais que se manifestam nas instituições
que caracterizam as sociedades em que uma e outra religião são dominantes. No
capítulo maçónico, isso tem como consequências a interdição de visita a lojas
consideradas ‘irregulares’, por parte de lojas e obediências alinhadas com a
Grande Loja Unida de Inglaterra e, também, o inverso. O segundo problema é a
exclusão das mulheres da actividade maçónica. Isso cria um problema pois
transforma as obediências mistas e femininas militantes de uma causa de
‘igualdade dos géneros’ e contra a discriminação sexual. Na verdade, a regra de
interdição do acesso das mulheres à maçonaria estabelecida nas Constituições de
Anderson não é compaginável com a realidade dos nossos dias onde na vida civil
e profana não só não existe discriminação em resultado do género como ela é
socialmente combatida.
Maçonaria
Mista (Espanha)
O
terceiro problema é o da perda de influência da maçonaria na esfera social, já
não tanto na esfera político, uma vez que a maçonaria regular desistiu de ter
uma intervenção mais vincada no plano das causas sociais. Embora
individualmente os maçons conservem alguma intervenção como activistas das
causas da família, do planeamento familiar, da política criminal e da abolição
da pena de morte, e também a nível partidário e sindical, a sua militância está
aquém do que aconteceu em décadas anteriores. Não constitui, aliás, a regra
geral entre maçons. Algumas associações inter-obediências surgem nas últimas
décadas mas dificilmente se pode interpretar a sua acção como a tentativa de
criar vias de comunicação que ultrapassem as divisões programáticas e de
alinhamento. Em regra são associações que procuram mostrar ao mundo e ao poder
legislativo o poder da unidade moral da maçonaria, apesar da sua diversidade e
fragmentação. O quarto problema é a ênfase do ‘negocismo’ que uma imprensa
voraz de escândalo se aplica a colar à maçonaria. A possibilidade de um maçom
usar a sua pertença à maçonaria para fazer lobby por um dado projecto
empresarial é sempre algo possível mas não exclusivo da maçonaria enquanto
organização. Pode ser replicado por qualquer outra organização social em que um
grupo de pessoas partilha uma identidade comum e a coloca ao serviço do grupo.
Diga-se em abono da verdade que as obediências não têm meios de prevenir este
tipo de fenómenos. Sendo as lojas plataformas naturais de encontro entre
pessoas diferentes, esta vocação para o agrupamento de interesses é congénita,
não sendo contudo muito diferente das associações de condiscípulos, das
agremiações desportivas, dos sindicatos ou uniões de empregadores ou das
inúmeras associações internacionais como os rotários, os Lions, a Civitan International,
ou o National Exchange Club.
7.
Posfácio
Traçámos
um quadro, se bem que sintético, da transformação da maçonaria operativa em
especulativa, explicando que a primeira surgiu no contexto da sociedade
medieval de forma a permitir a transmissão do conhecimento dos construtores e
das suas associações num tempo em que não havia livros, nem desenhos, nem
planos de construção, sendo os edifícios finalizados a prova da arte dos seus
arquitectos e artífices. Referimos, também, a ligação entre a vivência
religiosa das comunidades da Idade Média e o plano material da vida em
comunidade.
A
passagem da era medieval à moderna foi acompanhada pela erosão do papel social
dos construtores das catedrais, das igrejas paroquiais, dos castelos e
monumentos, à medida que a máquina foi ocupando o lugar do trabalho braçal dos
homens e o engenho dos artistas. Colocada na eminência de desaparecer, a
maçonaria operativa viu-se forçada a abrir as suas portas a maçons não
operativos, designadamente nobres, aristocratas, clérigos e intelectuais que
pertencendo às classes superiores da sociedade poderiam lhe assegurar a sua
sobrevivência. Com esta mudança a maçonaria torna-se definitivamente
especulativa e busca a protecção de um benfeitor endinheirado ligado à casa real,
Foi essa a tendência da maçonaria inglesa com a criação da Grande Loja de
Londres em 1717 que impulsiona a criação de outras obediências na Europa
continental e daí para todo o mundo.
No
século XIX, a natureza especulativa dos rituais e das práticas cerimoniais
deixa de atrair a atenção dos obreiros das lojas e estas tornaram-se palco do
debate político e das lutas sociais com a afirmação do projecto republicano
contras as monarquias de direito divino que dominavam a Europa. Já no século XX
a maçonaria especulativa tornar-se-ia mais plural e diversa com a explosão de
obediências teístas alinhadas (e reconhecidas) pela maçonaria britânica e
outras mais laicas e interventivas alinhadas com o Grande Oriente de França.
Este cisma, entre estas duas grandes famílias maçónicas, mantem-se até aos
nossos dias, apesar de tentativas para ultrapassar a divisão doutrinária e
administrativa. Na sua cauda, surgem novas obediências com menor peso nacional
e internacional, resultantes de disputas de liderança ou divergências sobre o
papel que à maçonaria está reservada. Esta pluralidade de obediências é
deplorada por alguns, mas é sintoma da riqueza e diversidade da maçonaria e a
razão porque um tão grande número de pessoas se revê nos valores e nas
respostas da maçonaria para os problemas do mundo. O papel da maçonaria
feminina e mista crescente em lojas e influência é um dos desafios que se
colocam às maçonarias de tradição e liberal e algo que nunca esteve na
ponderação dos que, há quase trezentos anos, lhe estabeleceram o corpo dos seus
princípios fundadores. Deve a maçonaria abrir-se aos novos ventos da
modernidade ou manter-se inabalavelmente fiel aos mandamentos e princípios
constitutivos? Essa é a pergunta para que não há resposta. Pelo menos por
agora.
Arnaldo M.A. Gonçalves |
**Macau é uma das regiões
administrativas especiais da República Popular da China desde 20 de dezembro de
1999, sendo a outra Hong Kong.
NE:
Mantemos a grafia original usada nesse
artigo que é do português de Portugal e Macau
Referências
·
Anderson,
James (1723). Constitutions de la confrérie des Francs e Acceptés Maçons,
Tradução de M. Paillard, IV Parte, inhttp://www.arbredor.com/extraits/constitutions.pdf
·
Baigent, Michael e Leigh, Richard (2006). O Templo e a Loja: o surgimento
da Maçonaria e a Herança Templária. São Paulo: Madras.
·
Beaurepaire,
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