Por
Richard Lebeau
Nenhum
documento egípcio menciona Moisés, o Êxodo ou os hebreus... mas será que
devemos negar sua existência histórica? Como imaginar que os redatores da
Bíblia tenham ousado fazer de um homem com nome estrangeiro um libertador? Como
imaginar que tenham narrado a história de um “mau judeu” que se casou com uma
não judia – originária da Núbia – e feito dele o profeta fundador do judaísmo,
deixando-o morrer fora da Terra Santa? Isso é, claro, inimaginável. É muito
provável que um homem chamado Moisés tenha vivido por volta do final do segundo
milênio a.C. Mas seria possível situá-lo na corrente da História e definir seu
meio social? A pesquisa do fim do século XX e início do XXI admite, de uma
maneira muito consensual, que o personagem de Moisés é uma figura reconstruída,
e por isso mesmo a sua historicidade escapa ao historiador, para quem ele
provavelmente permanecerá um enigma.
Entretanto,
ainda há duas hipóteses possíveis, desenvolvidas por muitos autores, que
identificaram Moisés a personagens egípcios ou semitas da corte egípcia. Os
mais ousados fazem dele um discípulo do “monoteísta” Akenaton. Alguns, ainda
mais audaciosos, identificam Moisés como esse faraó do século XIV a.C.,
negando-se a admitir, como se acredita, que a escritura da Bíblia só teve
início sete séculos mais tarde. Outros especialistas ligam a existência de
Moisés à expulsão dos hicsos do Egito, os invasores semitas que ocuparam o
Baixo Egito entre 1730 e 1530 a.C.
Hoje,
os pesquisadores seguem a pista de um semita de nome egípcio que teria chegado
ao topo da sociedade no período Raméssida (séculos XIII-XI a.C.). Sem um
resultado conclusivo. Antes de seguir as pistas da pesquisa contemporânea,
lembremos brevemente a história de Moisés, tal como a Bíblia a narra no livro
do Êxodo.
UM PRÍNCIPE QUE SE
TORNOU GUARDIÃO DE REBANHO
Moisés
nasceu quando os hebreus foram escravizados no Egito. Colocado em um cesto para
escapar à morte prometida pelo faraó a todas as crianças de sexo masculino do
povo hebreu, ele foi acolhido pela filha deste último.
Foi
educado na corte como um príncipe, até o dia em que matou um egípcio que havia
molestado um hebreu. Obrigado a fugir pelo Vale do Nilo, refugiou-se no país de
Midiã, onde se casou com a filha do sacerdote Jetro, que fez dele o pastor de
seu rebanho. Um dia, Deus lhe apareceu sob a forma de uma sarça ardente que
queimava, mas não se consumia. Durante essa aparição, Deus lhe revelou seu
nome, Javé, e lhe ordenou que fosse libertar seu povo, os hebreus, da
escravidão. Retornou então ao Egito, acompanhado por seu irmão, Aarão, para
pedir ao faraó que deixasse que os hebreus saíssem do Egito. Esse negou o
pedido a despeito dos nove prodígios já realizados por Araão e Moisés. O faraó
cedeu diante do último flagelo, a morte de todos os primogênitos egípcios,
incluindo a de seu filho mais velho.
No
início, ele implorou para que os hebreus deixassem o Egito imediatamente, mas,
depois, refletindo melhor, lançou-se em seu encalço. Encontrou-os nas margens
do Mar Vermelho, cujas águas se separaram, antes de engoli-lo com seu exército.
Os últimos quarenta anos de Moisés foram vividos no deserto; uma vida ritmada
pelas recriminações dos hebreus contra a fome e a sede.
MORTE SEM VER A
TERRA PROMETIDA
Durante
sua permanência no deserto, ele subiu o Monte Sinai, no pico do qual recebeu as
Tábuas da Lei. Construiu a Arca da Aliança – onde as tábuas foram guardadas –,
apresentando aos hebreus 613 leis e prescrições relativas aos sacrifícios, ao
puro e ao impuro e às festas. Regras a serem respeitadas por serem judeu.
Moisés morreu aos 120 anos, no Monte Nebo, sem que Deus lhe desse a autorização
de entrar na Terra Prometida.
A
egiptologia poderia auxiliar os historiadores a situar Moisés na História. Um
documento excepcional descoberto em Karnak, no final do século XIX, a Estela
Triunfal de Meneptah, menciona pela primeira vez a existência de Israel e o
sucessor de Ramsés II. Ali, está gravado: “Os príncipes se prosternaram e pedem
a Amon; ninguém ergue a cabeça entre os Nove Arcos. A Líbia está derrotada; o
império hitita está em paz; Canaã está devastada; Ascalão foi conquistada;
Gazer foi tomada; Yeoman foi destruída; Israel foi devastado; sua semente não
existe mais; a Síria tornou-se uma viúva para o Egito; todos os países foram
pacificados”.
Esse
texto comprova que um povo chamado Israel já vivia, por volta de 1210 a.C., em
Canaã. Moisés deve então ter vivido antes desta data. Sob o reino de qual
faraó? O texto bíblico nos diz que os israelitas foram obrigados a fornecer
tijolos para as cidades-armazém de Pi-Ramsés e de Pitom. Embora se saiba que
Ramsés II foi o construtor de Pi-Ramsés, “a casa de Ramsés”, a arqueologia
revelou que a cidade de Pitom foi edificada cerca de cinco séculos após seu
desaparecimento. Portanto é difícil designá-lo como sendo o faraó do Êxodo.
Hoje, os historiadores voltam seus olhos para o fim da XIX dinastia e para o
reino de Meneptah.
Moisés
carregava um nome egípcio construído sobre o afixo “m-s-s”, que encontramos,
por exemplo, em “Ramsés” – “Rá gerou”. No caso do Moisés bíblico, o nome do
deus desapareceu. Uma prática comum no período Raméssida. Sabe-se de um oficial
chamado Mes ou ainda um contramestre do mesmo nome que organizou uma greve na
aldeia dos artesãos de Deir el-Medineh, perto do Vale dos Reis. Mes se tornou o
hebraico “Moshé”. O fato de Moisés ter um nome egípcio é importante, isso
permite afi rmar que este nome não foi “inventado” do nada. Se para os
israelitas tivesse sido possível forjar um herói nacional, eles certamente não
teriam lhe dado um nome egípcio, mas sim um tipicamente hebreu.
Mas
isto não basta para fazer do Moisés bíblico um personagem de origem egípcia.
Muitos documentos egípcios também mencionam a existência de altos funcionários
reais de origem semítica, homens originários da Ásia Menor ou do Levante. Eles
carregavam um duplo patronímico, composto por um primeiro nome semítico e um
outro, egípcio, construído sobre a raiz “m-s-s”. É em direção destes altos
funcionários que os olhares dos pesquisadores da Bíblia se voltam para
encontrar o Moisés histórico.
OS BENEFÍCIOS DA
ASCENSÃO SOCIAL
Durante
todo o Novo Império (séculos XVI-XI a.C.), o Egito, que se tornara uma potência
imperialista, se cobriu de enormes monumentos, construídos por uma mão de obra
semítica composta por prisioneiros. Nós sabemos, sob o reino de Ramsés II, do
recrutamento forçado de estrangeiros para trabalhar nos canteiros de obra
reais. Esta mão de obra, móvel e inquieta em certas ocasiões, também podia
atingir o topo do poder. “Para o Novo Império, contam-se não menos de
seiscentos estrangeiros que indubitavelmente ocuparam cargos muito elevados no
clero e na administração”, observa o egiptólogo Pascal Vernus. Esses semitas
adotaram os costumes e os nomes locais. Em Saqqara, as escavações de Alain
Zivie revelaram um vizir de Amenófis III de origem semítica chamado Aper-El.
Era uma criança do Kep – título honorífico concedido àqueles que tinham sido
educados na corte real, ao lado dos príncipes e dos filhos dos reis vassalos do
faraó. O sucesso de alguns semitas no Egito despertou um grande interesse nos
estudiosos.
A
egiptologia revela a existência de um alto funcionário chamado Ben-Ozen, que
viveu sob o reino de Ramsés II (por volta de 1300 – 1235 a.C.) e era originário
de Bashan, na Transjordânia. Sua relação com Moisés? Ele trazia um nome
egípcio, Ramsesemperrê, construído sobre o afi xo “m-s-s”. Teria servido como
mediador em um confl ito que opôs os beduínos aos funcionários egípcios.
Pensa-se evidentemente no episódio bíblico em que Moisés assume a defesa de um
escravo hebreu. Infelizmente, a documentação egiptológica não registra nenhuma
revolta dos beduínos e não menciona nenhuma fuga sob a condução de um alto
dignitário egípcio. Ben-Ozen nunca deixou o Egito. Não poderia, portanto, ser
Moisés.
UM REVOLUCIONÁRIO
OU UM VICE-REI DA NÚBIA
Houve
outro candidato chamado Beiya, ou Bay, um alto funcionário envolvido em uma
guerra civil. Ele se aliou à rainha Tauseret, de origem cananeia, viúva do
faraó precedente, Seti II. Juntos, eles queriam tomar o poder e colocar Siptah,
o filho da soberana, no trono. A morte prematura deste último em condições
obscuras permitiu a alguns autores ver aí a maldição divina lançada contra os
primogênitos do Egito. A conspiração terminou mal. Os documentos egípcios nos
contam a fuga de Bay, acompanhado por um exército de cananeus, que partiu
“roubando dos egípcios ouro e prata”. De acordo com o professor Thomas Römer,
do Collège de France, esse episódio poderia evocar “a tradição bíblica da espoliação
dos egípcios”. “Os filhos de Israel tinham agido segundo a palavra de Moisés:
eles haviam pedido aos egípcios objetos de prata, objetos de ouro e roupas.”
Observemos que Bay também tem um nome egípcio, Ramsès-Kha-em-neterou,
construído sobre o afi xo “m-s-s”, e que o “ya” final de seu nome semita
poderia ser o sufi xo de “Yahvé” (Javé).
Esses
numerosos paralelos com a história bíblica não permitem afirmar que Bay tenha
sido o Moisés da Bíblia. Hoje, sabe-se que ele foi preso, executado imediatamente,
e seu nome apagado onde quer que se encontrasse. Lembremos que Moisés escapou
de seus perseguidores, que se afogaram no Mar Vermelho. Além disso, é difícil
imaginar que um homem cujo nome foi apagado dos monumentos que ele construiu e
cujo patronímico se trocou tenha deixado um rastro na memória dos homens por
séculos, até atingir os redatores da Bíblia.
Recentemente,
o egiptólogo Rolf Krauss viu em Amenmeses, um usurpador que tomou o poder entre
1200 e 1196 a.C., um dos homens que poderiam ter inspirados esses redatores da
Bíblia. Não apenas ele leva, como os dois altos dignitários citados acima, um
nome construído sobre o afixo “m-s-s”, mas também esse vice-rei da Núbia teria
partido desta longínqua região para conquistar o poder faraônico. Ora, sabe-se
que certas lendas judias extrabíblicas conduzem Moisés à Núbia. Além disso, a
própria Bíblia dá a Moisés uma mulher etíope. Esse faraó tomou o poder ao fi m
de uma guerra civil. Ninguém sabe o que lhe aconteceu depois de ter sido
derrubado do trono.
O
período Raméssida conheceu outros potenciais candidatos, como um homem, que
permaneceu anônimo, e que conduziu uma revolta de operários que trabalhavam a
serviço do faraó nas minas de cobre do Sinai. Se não era um semita e se a
revolta não se passou no Egito, este homem foi, em todo caso, alguém que se
opôs às autoridades egípcias e que tomou partido em favor dos explorados. O
Moisés da Bíblia tem, portanto, alguma coisa dele, “mas se tomarmos o texto
bíblico ao pé da letra, não era mais plausível ser ele que qualquer outro”,
explica Thomas Römer. Assim sendo, é muito provável que o Moisés bíblico seja
uma figura literária composta a partir de vários personagens que realmente
existiram e que são confirmados pelas fontes egípcias.
Richard Lebeau é
historiador egiptólogo
Fonte: Historia Viva
1 Comentários
Oportuno e esclarecedor. Mas é preciso ter muita coragem e ousadia para aceitar estes fatos e ir contra a maioria que prefere e aceita sem questionar,de forma literal os textos bíblicos
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