MAÇONARIA- A FORÇA DE UM IDEAL

Por Ir.'. João Anatalino
No ano da graça de Nosso Senhor de 1741, apareceu publicado em um jornal maçônico da França um curioso discurso pronunciado por um certo senhor que se apresentava com o pomposo nome de Cavaleiro André Michel de Ramsay (foto), nobre escocês, que além de ostentar vários títulos de nobreza e manter ligações com muitas personalidades da época, como o bispo Fénelon, o Duque de Boillon, o Duque de Sully, além de ter sido preceptor dos filhos de James II, pretendente ao trono inglês, se dizia possuidor de uma mensagem renovadora de mentes e corações, destinada a promover uma Nova Ordem Mundial. Nesse discurso, pela primeira vez, se falava da existência de uma ligação histórica entre a Maçonaria e as Ordens de Cavalaria criadas no tempo das Cruzadas para defender as conquistas cristãs na Terra Santa.[1]
Ramsay era um maçom oriundo de uma Loja da Escócia, cuja identificação até hoje ainda não foi estabelecida, mas é certo que ele foi iniciado e era detentor de um grande respeito entre os maçons da época, pois quando fez o seu famoso discurso, ele foi apresentado como sendo o Grande Orador da Ordem, e como tal, suas palavras tiveram uma enorme repercussão, sendo consideradas, até hoje, como núcleo central do ideal maçônico.[2]

O que Ramsay disse foi simplesmente que a Maçonaria deveria se tornar uma espécie de “República” desenvolvida entre as nações, com o propósito de manter um estado de equilíbrio e ordem na sociedade, fundado na prática da virtude e no amor pelas coisas belas. “ O mundo todo não passa de uma grande República, da qual cada nação é uma família e cada indivíduo, um filho. É para fazer renascer e expandir essas máximas essenciais tomadas á natureza do Homem que nossa Sociedade (a Maçonaria) foi de início estabelecida. Queremos reunir todos os homens de espírito esclarecido, de costumes morigerados e humor agradável, não só pelo amor ás belas-artes, mas também e ainda mais pelos grandes princípios da virtude, da ciência e da religião, onde o interesse da Confraria se converte no interesse de todo o gênero humano, onde todas as nações podem colher conhecimentos sólidos e onde os súditos de todos os reinos podem aprender a se amar mutuamente sem renunciar à sua pátria”, escreveu ele.[3]

E com esse ideal, expresso de uma forma romântica e mística, mas ao mesmo tempo politica, ele deu início ao que se convencionou chamar de humanismo maçônico.

Esse discurso foi o marco regulatório de uma transformação ideológica que a Maçonaria vinha sofrendo ha mais de meio século mas só depois dele assumiu uma forma definitiva. Pois já se passara muitos anos desde que a velha tradição dos pedreiros livres havia sido incorporada pelos novos “cavaleiros” da Idade Moderna, que despidos das suas armaduras de combate e apeados dos seus antigos ideais quixotescos, estavam procurando uma nova ideologia, na qual pudessem reconhecer os traços de sua anterior nobreza e recuperar a aura do romantismo que fazia deles um arquétipo de grande apelo popular.

Foi então que Ramsay teve a sua grande inspiração: fundir a tradição simbólica e iniciática dos pedreiros livres ─ coisa que excitava a imaginação dos intelectuais da ideal da antiga cavalaria medieval, que ainda granjeara simpatias e interesse popular, graças ao romantismo de que sempre fora revestida.[4]

E onde ele foi buscar essa inspiração? Exatamente em um núcleo da antiga Cavalaria medieval, que na sua época ainda despertava um grande interesse e uma especial atenção, justamente pela aura de mistério e fascínio que a cercava. Esse núcleo era as Ordens de Cavalaria que foram fundadas na Terra Santa no tempo das Cruzadas.

Nossos antepassados, os Cruzados, reunidos de todas as partes da Cristandade na Terra Santa quiseram reunir assim, numa só Confraria, os indivíduos de todas as nações. Que gratidão se deve a esses homens superiores, que, sem interesse secundário, sem mesmo escutar a vontade natural de dominar, imaginaram um estabelecimento, cujo único objetivo é a união dos espíritos e dos corações, para torná-los melhor e formar, no correr dos tempos, uma nação toda espiritual, em que, sem prejuízo dos diversos deveres que exige a diferença dos Estados, criar-se-á um povo novo, que composto de várias nações, as cimentará de um certo modo pelo vínculo da virtude e da ciência”, (5 ) escreveu ele, lançando a ideia de que a Maçonaria, longe de ser uma sociedade esotérica fundada sobre a tradição da prática da arquitetura, era, na verdade, uma nova Cavalaria, defensora de um ideal de paz, progresso, conduta moral e ética exemplar, amante das belas-artes e difusora de uma crença onde o ecumenismo seria a própria religião.

 Nesse contexto Ramsay encontrou um lugar para a tradição natural cultivada pela Maçonaria, ou seja, a Arquitetura. Precisava, sem dúvida, fazer isso, pois se não o fizesse ele teria rompido violentamente com a própria estrutura simbólica cultivada pela Ordem e o objetivo que ele procurava, o de fundir as duas grandes tradições em todo consistente, não seria alcançado. Porque para a nova sociedade que pretendia divulgar, ele precisava do simbolismo esotérico de uma e do espirito romântico da outra. Juntas, essas duas tradições tinham apelo psicológico forte o suficiente para atrair a atenção e provocar o desejo das pessoas de escol, de fazer parte de tal sociedade.Foi por isso que ele escreveu em seu discurso: “ No tempo dos Cruzados na Palestina, vários príncipes, senhores e cidadãos associaram-se e fizeram o voto de restabelecer os templos dos cristãos na Terra Santa e de se empenhar de reconduzir a Arquitetura á sua primeira instituição. Concordaram com vários sinais antigos e palavras simbólicas tiradas da essência da religião, para se reconhecer entre si, quando no meio dos infiéis e  sarracenos. Esses sinais e essas palavras só eram comunicadas aqueles que prometiam solenemente, e muitas vezes aos pés dos altares, nunca os revelar. Essa promessa sagrada não era, portanto, um juramento execrável, como se diz, mas um laço respeitável para unir os cristãos em uma mesma Confraria. (...) Certo tempo depois nossa Ordem se uniu intimamente aos Cavaleiros de São João De Jerusalém.  Desde então, Nossas Lojas trouxeram todas o nome de Lojas de São João”.(6)

Evidente que todas essas informações saíram do bestunto de Ramsay justamente para justificar a união entre a Maçonaria praticada pelos ingleses, em suas chamadas Lojas de São João, as quais, já de longa data, tinham adotado esse santo (São João Batista) como seu padroeiro e a nova Maçonaria de tradição cavaleiresca que ele queria divulgar. Assim, cavaleiros, pedreiros livres e alquimistas se tornaram sócios e legatários de uma única tradição, que seria herdada pelos maçons. Foi essa nova Maçonaria, misto de romantismo quixotesco e esoterismo rosa-cruciano que se espalhou pelo mundo ocidental, resultando nos principais ritos que hoje conhecemos.[7]

Estranhamente, mas não sem razão, Ramsay preferiu vincular a sua Maçonaria aos cavaleiros de São João do Hospital ao invés dos Templários. Primeiro porque os Templários, em sua época, ainda não haviam se libertado da aura de hereges e malditos, que a mídia católica lhes havia colado. A imagem dos Templários só seria recuperada depois da Revolução Francesa, que apeou do poder os últimos descendentes de Filipe, o Belo, responsável pela destruição da Ordem dos Cavaleiros do Templo. E foi justamente através das obras dos autores maçons que essa recuperação se deu.[8]

Mas de onde o Cavaleiro Ramsay teria tirado sua inspiração para fazer da sua Maçonaria uma nova Cavalaria (uma nação toda espiritual) destinada a unir os espíritos (diferenciados) de todo o mundo para criar uma nova civilização, unida pelos grandes princípios da virtude, da ciência e da religião?Em nossa opinião, da mesma fonte em que beberam os fundadores da Ordem do Templo, ou seja, o idealismo cavalheiresco que norteou a realização das Cruzadas e a criação das Ordens de Cavalaria que foram fundadas na Terra Santa. Esse ideal foi bem expresso nas Regras redigidas por São Bernardo de Clairvaux para servir de estatuto para os Cavaleiros Templários. Era um ideal que se assentava na ideia da fundação de um verdadeiro reino de Cristo sobre a terra, onde a consciência seria o guia.[9]

O “reino de Cristo sobre a terra” não era uma mera metáfora espiritual, mas sim uma realidade politica que os líderes cruzados, juntamente com o papa Urbano II, tinham em mente quando iniciaram a primeira Cruzada. Esse ideal era uma inspiração cavaleiresca, que tinha como mentor justamente o grande Bernardo de Clairvaux, redator das regras da Ordem do Templo. A finalidade dessa cruzada não era meramente libertar Jerusalém do domínio sarraceno, como geralmente se pensa, mas sim estabelecer o domínio cristão na região onde o cristianismo tinha nascido. Destarte, a missão que os cruzados tinham era exatamente aquela que Jesus se atribuiu, ou seja, implantar um reino messiânico na terra, com capital em Jerusalém. E a missão que São Bernardo deu aos Templários era exatamente a de defender esse novo reino messiânico que os cruzados fundaram ao conquistar Jerusalém. Essa missão foi expressa na metáfora de reconstrução do Templo de Jerusalém sobre as ruínas do antigo Templo de Salomão, metáfora essa que significava o restabelecimento do reino de Israel nos moldes em que ele existira nos tempos bíblicos. O próprio Jesus havia usado esse simbolismo na revelação que fez aos seus discípulos, de que aquele magnífico edifício que eles estavam contemplando ─ o Templo de Jerusalém ─ seria destruído e dele não ficaria pedra sobre pedra. Essa metáfora, que era também uma profecia, se referia principalmente á Nova Ordem que ele iria implantar no lugar daquela que existia naqueles dias. Essa profecia foi feita na quarta-feira da semana da Páscoa, pois Jesus esperava que no domingo, quando a sagrada semana judaica terminasse, a sua revolução já estivesse estabelecida.[10]

Para os Templários a idéia de reconstrução do Templo simbolizava o desejo de um renascimento da humanidade a partir das virtudes cristãs, na forma como São Bernardo as entendia. Encaixava-se perfeitamente na mística de uma época, onde o romantismo mágico se misturava á virtude cristã, para compor o caráter do homem perfeito. Esse homem perfeito era justamente o Cavaleiro Templário, conforme definido na regra elaborada por São Bernardo, ou seja, um monge, misto de santo e guerreiro, como o próprio Jesus havia sido, na visão do famoso abade de Clairvaux. A ressurreição de Jesus, no caso, era entendida pelo Círculo Interior dos Templários como um simbolismo que significava o surgimento de uma nova religião “um novo Templo”, que iria congregar toda a humanidade. Era nesse sentido que eles estariam cumprindo a missão de Jesus iniciou.

Uma boa fonte de compreensão da filosofia dos Templários são os trovadores provençais. Esses famosos “poetas” medievais não eram meros artistas que entretiam as nobres senhoras nos serões das cortes cavaleirescas. Em grande parte, eram filósofos esotéricos que levavam, de corte em corte, ideias de uma crença não muito ortodoxa, que tinha mais a ver com o cristianismo místico, praticado pelos cultores do gnosticismo, do que com a doutrina admitida pela Igreja de Roma. Daí a preocupação que o Vaticano sempre demonstrou com o chamado trovadorismo, muitas vezes condenando suas produções artísticas como mensagens eivadas de heresias. O trovadorismo, especialmente aquele que se referia á literatura ligada aos contos do Graal foram claramente inspirada em motivos Templários. Cabe lembrar que a Igreja sempre condenou os romances do Graal por entender que eles veiculavam ideías pagãs, heréticas e perigosas para a fé cristã e contrárias aos ensinamentos dos evangelhos.

A ideia de que a Ordem do Templo era uma organização iniciática fica clara nas atas do julgamento ao que os Templários foram submetidos. Embora o Templo administrasse uma imensidade de interesses profanos, era o conteúdo espiritualista da sua doutrina que atraia os intelectuais da época. E era também esse conteúdo que incomodava a Igreja, pois tais ensinamentos, de caráter secreto, supostamente contrariavam aqueles admitidos por Roma como únicas verdades espirituais. Exatamente como a Maçonaria se apresentava nos dias de Ramsay.

Assim, embora Ramsay tivesse preferido, por razões políticas e pragmáticas (manutenção de um vínculo que já existia), vincular a sua Maçonaria à Ordem dos Cavaleiros de São João, na verdade, era nos Templários que ele estava pensando. A Ordem Maçônica, na prática, estaria ressuscitando os ideais desses proscritos cavaleiros que ostentaram, em seu tempo, a aura de santos e malditos. Exatamente o que boa parte da opinião pública e a mídia religiosa estavam atribuindo á Maçonaria da sua época. Esse discurso, feito na França, por ocasião do estabelecimento do Rito Escocês em Lojas daquele país, tinha, assim, uma razão toda especial. Pois fora na França que a Ordem dos Templários tinha sido abolida. Tinha que ser, pois, na França que essa ordem deveria ser restabelecida. Por isso ele conclui seu discurso dizendo que “ No tempo feliz em que o amor da paz se tornou a virtude dos heróis, a nação (francesa), uma das mais espirituais da Europa, tornar-se-á o centro da Ordem. Ela derramará sobre nossas obras, nossos estatutos e nossos costumes, as graças, a delicadeza e o bom gosto, qualidades essenciais numa Ordem cuja base é a Sabedoria, a Força e a Beleza do gênio. (...)[11].
Em 1789, exatamente 48 anos depois, o povo francês saiu ás ruas para derrubar um regime que, entre outras coisas, era acusado de ter mandado para a fogueira os líderes Templários. Esse povo, em sua grande maioria, era liderado por burgueses, intelectuais e nobres maçons. O que o pensamento de Ramsay e sua cruzada para estabelecer uma nova cavalaria espiritual teve a ver com esse movimento ainda não foi recenseado a contento. Mas no momento crítico em que estamos vivendo, nos parece útil recompor essas e outras antigas manifestações do espírito maçônico para não esquecermos de onde viemos e, mais do que isso, da força que um ideal têm no contexto geral dos movimentos que fazem a História.

[1] Idem, pg. 72
[2] Ibidem, pg. 72
[3] Principalmente os dois principais ritos que ainda hoje se praticam na Maçonaria, o REAA (Rito Escocês Antigo e Aceito ) e o Rito do Arco Real.
[4] Ver a esse respeito Baigent, Leigh e Lincoln-. The Holly Blood and The Holly Grail, Ed. Harrow, Londres, 1966. O rei Luís XVI, guilhotinado junto com sua rainha Maria Antonieta, era da família dos Capetos, a qual também Filipe, o Belo, pertencia.
[5] No ideal definido por São Bernardo o cavaleiro templário, a exemplo do maçom, deveria ser limpo e puro, um “cavaleiro perfeito”, bem diferente do seu homônimo da época, que ele considerava um vagabundo beligerante e descomprometido com qualquer causa nobre.
[6] Assim, a profecia relativa á destruição do templo e a sua reconstrução em três dias não se referia á sua morte e ressurreição, como dizem os exegetas do Evangelho, mas sim á vitória da sua revolução. Isso porque a missão de Jesus não era a de fundar uma nova religião, mas sim o de estabelecer um reino mesmo. Como esse propósito falhou, seus discípulos (particularmente Paulo de Tarso) deram novos rumos á sua extraordinária experiência, resultando no cristianismo. Essa tese é defendida pela chamada escola do idealismo alemão, cujos nomes mais conhecidos são Herman Samuel Reinarus ((1694-1768) e. Ernest Renan (1823-1892)
[7] Jean Palou, op citado, pg. 75
[8) Principalmente os dois principais ritos que ainda hoje se praticam na Maçonaria, o REAA (Rito Escocês Antigo e Aceito ) e o Rito do Arco Real.
[9] Ver a esse respeito Baigent, Leigh e Lincoln-. The Holly Blood and The Holly Grail, Ed. Harrow, Londres, 1966. O rei Luís XVI, guilhotinado junto com sua rainha Maria Antonieta, era da família dos Capetos, a qual também Filipe, o Belo, pertencia.
[10] No ideal definido por São Bernardo o cavaleiro templário, a exemplo do maçom, deveria ser limpo e puro, um “cavaleiro perfeito”, bem diferente do seu homônimo da época, que ele considerava um vagabundo beligerante e descomprometido com qualquer causa nobre.
[11] Assim, a profecia relativa á destruição do templo e a sua reconstrução em três dias não se referia á sua morte e ressurreição, como dizem os exegetas do Evangelho, mas sim á vitória da sua revolução. Isso porque a missão de Jesus não era a de fundar uma nova religião, mas sim o de estabelecer um reino mesmo. Como esse propósito falhou, seus discípulos (particularmente Paulo de Tarso) deram novos rumos á sua extraordinária experiência, resultando no cristianismo. Essa tese é defendida pela chamada escola do idealismo alemão, cujos nomes mais conhecidos são Herman Samuel Reinarus ((1694-1768) e. Ernest Renan (1823-1892)
[1]2 Jean Palou, op citado, pg. 75


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