Desde
os primórdios de nossa existência, buscamos incessantemente responder às mais
dilacerantes perguntas que agonizam a alma humana. Quem somos, para onde vamos,
por que estamos aqui, o que nos move, o que é o universo, são algumas das
indagações presentes na mente de cada indivíduo pensante, seja meditando em uma
caverna na planície africana de Olduwai, há 3 milhões de anos, ou em uma
estação espacial em órbita da Terra, no século XXI. Para aplacar a angústia
terrível que tais pensamentos nos trazem, muitas ferramentas simbólicas foram
desenvolvidas ao longo das eras – visavam dar algum amparo ao abismo sem fim
que nos envolve nestes momentos de dúvidas. Até pouco tempo, achávamos que os
templos ritualísticos, presentes em todas as culturas e épocas, eram espaços
erigidos pelos arquitetos visando possibilitar momentos de reflexão exatamente
neste sentido. Seriam instrumentos criados para nos aliviar espiritualmente,
sem maiores consequências objetivas no processo histórico dos povos. Mas, seu
significado e importância, a partir do final dos anos 1.990, foi
exponencialmente amplificado. Após levantamentos preliminares realizados em um
sítio no sul da Turquia, em uma montanha chamada Göbekli Tepe, os arqueólogos
concluíram que o surgimento do templo ali descoberto foi o evento desencadeador
da maior transformação sofrida pela humanidade. Primeiro veio o templo, depois
as cidades – é a conclusão do arqueólogo chefe das escavações, o alemão Karl Schimidt.
Quando o homem decidiu projetar um espaço reservado ao sagrado, estava
iniciando a longa jornada que geraria a totalidade cultural atual, e todos os
sistemas sociais, políticos, econômicos, filosóficos, técnicos e científicos
adjacentes, ou seja, aquilo que chamamos genericamente de Civilização. Sem
Göbekli Tepe, ainda estaríamos lascando pedras à luz das fogueiras. Por isso
torna-se irresistível entender o significado deste achado recente, que tanto
valor traz, com plena justiça, aos nossos trabalhos entre colunas.
1 - INTRODUÇÃO
O
ser humano moderno ou Homo sapiens surgiu há cerca de 150.000 anos, durante o
período Paleolítico Médio (300 a 40.000 anos atrás). Desde o início de sua
jornada histórica, seguindo os ensinamentos dos hominídeos anteriores, vivia da
coleta de frutas e tubérculos, que extraia da mãe-natureza de maneira
ecológica. Além do cardápio vegetariano, buscava proteína animal realizando
caçadas aos animais selvagens, atividade normalmente restrita aos homens. Isto
foi sua realidade cotidiana por aproximadamente 140.000 anos. As comunidades
gozavam uma vida tranqüila, ociosa e pacífica. A existência era uma constância
linear, apenas voltada às necessidades básicas, sem grandes sobressaltos no
status quo entre incontáveis gerações. Certamente as grandes preocupações
universais já existiam, mas os pensadores não deixaram registros arqueológicos
destes tormentos ancestrais, nestes primeiros milênios. Esta visão paradisíaca
do mundo, porém, estava com os dias contados.
Por
volta de 40 a 35.000 anos atrás, um fenômeno extraordinário ocorreu. A mente
operando no maior cérebro existente começava a produzir uma nova forma de se
encarar a realidade. Surgia o chamado pensamento simbólico, e este insight
passou a integrar todos os rituais tribais elementares. As imagens fundindo a
realidade com situações insólitas, provavelmente criadas durante viagens
transcendentais, forçavam sua manifestação concreta, tangível, e ex-corporis.
Os magos inicialmente expressavam estas visões bidimensionais advindas dos
momentos de intensa reflexão em magníficas pinturas. Sedimentadas em cavernas
da África, Europa e Oriente Médio, estas verdadeiras obras de arte da
humanidade foram achadas primeiramente em Altamira, na Espanha (1.879). Depois
surgiram as obras primas de Lascaux, na França (1.940), e inúmeras “galerias”
na África do Sul. Picasso afirmou que “definitivamente nada aprendemos ao longo
dos tempos” – uma forma significativa de elogiar os talentos artísticos do
passado. Todas estas reproduções apresentavam traços estilísticos similares,
apesar de oriundas de comunidades distintas e completamente isoladas. O que
levou ao desenvolvimento quase simultâneo destes estímulos criativos em tantos
grupos geograficamente separados ainda é um completo mistério. Os pictogramas
geométricos multicoloridos, os desenhos de animais da fauna local – como
bisões, mamutes e antílopes – geralmente em momentos de quase-morte ou morte
assim como as formas humanas ou zoomórficas, também nas mesmas situações
moribundas, sugerem que os magos apenas reproduziam fielmente o que
vislumbravam nos momentos mais intensos dos rituais a que se submetiam.
Infelizmente
esta fase das pinturas rupestres também teve seu fim. Subitamente, por volta de
15.000 anos atrás, os artistas perderam a inspiração. Não se dedicavam mais às
artes nas rochas úmidas do interior das cavernas. Como a razão deste fato
também era um enigma, gerou o surgimento de muitas teorias visando explicar o
que teria desencadeado esta “pane” na mente criativa. A mais coerente se
referia à precariedade desta fase, que baseava a subsistência dos indivíduos na
caça e na coleta. Assim, era de se esperar que os surtos criativos fossem
interrompidos, pois as comunidades eram extremamente frágeis e desorganizadas a
ponto de quase se extinguirem por completo várias vezes – estas crises poderiam
ter levado ao nosso desaparecimento total, muito antes de termos cultivado o
primeiro cereal ou domesticado qualquer animal.
Mas,
a partir das escavações na Turquia, em 1.994, a luz surgiu em meio às trevas.
Uma resposta científica começava a aflorar. A razão do ocaso dos cultos em
cavernas se devia à busca por uma melhor elaboração dos rituais, que estavam se
tornando mais complexos – e por isso deviam abandonar os limitados palcos das
grutas . As telas de rochas com imagens bidimensionais já não satisfaziam o que
a mente em expansão requeria em termos de exercício de linguagem simbólica. A
partir de agora não seria mais a natureza quem forneceria as estruturas
templárias necessárias aos serviços espiritualizados. O próprio homem passava a
criar obras de engenharia direcionadas às causas dos mundos ocultos. E assim se
fez: surgiu o primeiro templo da humanidade, a cerca de 50 km ao norte da atual
fronteira turco-síria.
2
- O TEMPLO DE GÖBLEKI TEPE
Em
1.963 um novo sítio arqueológico foi localizado no sudeste da Turquia. Em uma
montanha de aspecto bizarro, ferramentas de sílex e alguns artefatos de ossos
estavam depositados sob uma fina camada de solo. O valor deste achado foi
completamente ignorado àquela época. Mas, a partir de 1.994, novos estudos
desenvolvidos por arqueólogos do Instituto Arqueológico Alemão ( D.A.I.) e do
Museu de Sanliurfa – a cidade turca a aproximadamente 15 km de distância -
abalaram os alicerces de todo conhecimento relativo à evolução histórica da
humanidade.
O
que surgiu, a partir dos primeiros levantamentos, foi a mais extraordinária
descoberta arqueológica dos últimos cinqüenta anos, ou talvez de todos os
tempos.
A
montanha enigmática foi criada artificialmente pelo homem, e mede agora
aproximadamente 300 metros de diâmetro. Em seu interior se localiza um dos mais
impressionantes tesouros arqueológicos jamais descobertos. Sua idade é um
mistério, pois as escavações ainda não se encerraram. Dados preliminares
indicam que o estrato mais profundo pesquisado até o momento data de 12.000
anos atrás, ou 7.000 a mais que Stonehenge, e 4.500 anos mais antigo em relação
ao poderoso sítio de Çatal-Hüyüki, na Anatólia. Nesta fase ainda não existia a
roda, nem o domínio das técnicas de cerâmica e muito menos tinha surgido a
metalurgia do cobre, do bronze ou do ferro – tudo ali foi realizado com
ferramentas toscas de sílex, de pedras e de ossos de animais. E o que mais
intriga: a humanidade era basicamente constituída por grupos isolados e nômades
de caçadores-coletores. As vilas, as cidades, ou qualquer outra forma de
estrutura social mais elaborada ainda estavam por vir.
Foram
desenterradas grandes estruturas circulares ou ovais constituídas de arranjos
complexos de rochas, nitidamente com características de templos ritualísticos.
Formadas por pilares ou monólitos de calcáreo com quatro metros de altura, são
semelhantes aos santuários de pedras bem mais recentes encontrados na Europa e
na Ásia – como Woodhenge e Nevali Çori. No meio dos círculos surge uma espécie
de átrio, onde se posicionam duas rochas maiores, com mais de 5 metros. Os
monólitos circundantes têm forma de T, e são unidos por uma espécie de muro de
pedras menores empilhadas, que os envolvem pelo lado externo. Nas faces das
rochas existem elaborados entalhes ou esculturas reproduzindo, em relevo,
figuras diversas como leões, raposas, javalis, pássaros, garças, escorpiões,
patos, formigas, e alguns insetos ainda não identificados. Os blocos centrais
maiores tem entalhes de mãos, braços e pernas, mas não apresentam olhos, bocas
ou mesmo faces – podem representar figuras antropomórficas assexuadas.
Outro
fato que impressiona, além da idade dos monumentos, é que ainda não se
descobriu tudo que se encontra sob a terra. Até a 12ª e última campanha,
encerrada em outubro de 2.006, cerca de quatro destes círculos foram
descobertos, totalizando apenas 40 rochas expostas. Porém, estudos
geomagnéticos indicam que existem mais de 240 rochas sob o solo, ou 16 novos
conjuntos circulares ainda intocados. Mais um sinal que indica a existência de
muitos estratos incólumes são as rochas achadas nas pedreiras – que se
posiciona a 1 km do centro do sítio - com cerca de 9 metros de comprimento. O
detalhe é que não desenterraram nenhuma pedra deste tamanho nos círculos já
expostos. Então, se conclui que nas camadas mais profundas ainda vão ser
localizadas pedras deste porte, além de muitas outras surpresas.
Não
existem evidências de habitações na área. Todas as estruturas encontradas são
consideradas exclusivamente voltadas aos cultos – inequivocamente são templos.
Por
volta de 8.000 anos atrás, a comunidade resolveu encerrar as atividades do
imenso santuário. Propositadamente, Göbekli Tepe foi sistemática e
cuidadosamente soterrado. A forma como a terra se posiciona entre as rochas não
deixa dúvidas quanto a isso. A razão desta medida radical não está bem
definida. Pode ser que o aumento demasiado da comunidade levou à
impossibilidade de sustentação das pessoas. Ou o crescimento das cidades,
somado à multiplicação das vertentes religiosas, esvaziou o culto ali
praticado.
3
- CULTO ANCESTRAL
O
santuário certamente seguia as mesmas tradições ritualísticas iniciadas no
Paleolítico, pelas tribos errantes de caçadores. Só que agora a liturgia e o
trabalho com os diversos elementos simbólicos arquetípicos se mostravam mais
elaborado. Durante a noite, sob a luz e o calor de tochas, os relevos dos
animais entalhados se destacam de maneira impressionante. Parecem adquirir vida
própria, com o tremular das chamas. Os cultos praticados antigamente nas
cavernas tomavam força entre as imensas rochas, com muito mais energia
simbólica e maior capacidade de proporcionar os efeitos esperados pelas
meditações profundas.
Toda
estrutura seria dedicada a uma espécie de culto aos antepassados? Provavelmente
sim, dizem os especialistas, apesar de não terem sido achados túmulos ou covas
no interior do sítio. Existem estátuas em pedra representando figuras humanas,
mas não deuses. Como tais alegorias têm braços e pernas, mas não cabeças, devem
representar trabalhadores.
A
idéia de culto ao mundo transcendental dos espíritos se justifica considerando
a própria história da religiosidade. É sabido que os serviços articulados
dedicados exclusivamente às divindades tiveram início entre os Sumérios,
milênios depois, em meio a grandes palácios na Mesopotâmia.
4
- A AGRICULTURA E A GÊNESE DA CIVILIZAÇÃO
Quando
Göbekli Tepe foi construído ainda não havia ocorrido a chamada Revolução
Neolítica, que trouxe o domínio das técnicas agrícolas e de domesticação de
animais, datada de 10.000 anos atrás.Este fenômeno agrícola é considerado o
marco inicial do desenvolvimento humano, pois a partir dele o homem passou a se
fixar nos sítios produtivos e assim pôde estruturar as primeiras comunidades
organizadas.
Então,
surge a pergunta mais enigmática: como os homens se organizaram, há 12.000 anos
ou mais, com o objetivo de erigir um complexo santuário? Por isso este achado
arqueológico se reveste de tanta relevância - simplesmente trouxe um dos mais
extraordinários paradoxos histórico-arqueológicos à luz da ciência. Antes a
Arqueologia supunha que as comunidades errantes, semi-nômades e sempre a beira
da extinção, que eram a forma celular de organização social da época, não
seriam capazes de unir forças e valores capazes de erigir estruturas
arquitetônicas de grande porte. Este conceito de fragilidade dos grupos de
caçadores-coletores teve que ser revisto. Na realidade, tinham um grande
potencial de estruturação hierárquica e social, que possibilitava a canalização
de recursos para obras monumentais.
Se
não bastasse este novo paradigma revolucionário, o mais impressionante ainda
estava para ser descoberto. O local exato da explosão criativa do Neolítico, o
lócus onde um visionário semeou o primeiro grão, era exatamente o sítio de
Göbleki Tepe. Exames de DNA em diversas amostras de trigo atualmente em uso no
mundo trouxeram uma informação espantosa. A variante selvagem de trigo
existente próxima ao templo, que brota na montanha de Karaca Dag (distante 32
km) deu origem a praticamente todas as formas de trigo comerciais consumidas
pela humanidade. Portanto, foi ali que os primeiros plantadores semearam a
terra, inaugurando a fase da agricultura.
Sobre
a domesticação de animais, acredita-se que os primeiro porcos selvagens criados
especificamente para abate também surgiram nos arredores de Göbekli Tepe.
Analisando
todos estes dados, fica claro que só após surgirem os templos – e mais
especificamente este no sul da Turquia - foi possível ao homem dar o grande
salto evolucionário que geraria toda a arquitetura social moderna. Os primeiros
rituais estilizados, a eclosão do pensamento simbólico e a estruturação das
idéias elementares sobre transcendência foram, simplesmente, os elementos
desencadeadores deste fenômeno criativo global.
5
- CONCLUSÃO
Com
seus trabalhos ritualísticos a plena força e vigor, o templo de Göbekli Tepe
alterou definitivamente a hedonística paisagem e o estilo de vida dos seres
humanos. A passagem do estágio da caça-e-coleta, para a fase do trabalho pesado
na terra, foi um episódio tão significativo em nossa história que deu origem a
uma vasta mitologia – como o mito da “queda”, ou da expulsão do paraíso - que
se apresenta em várias culturas antigas. O homem abandonou a fase da inocência
e da servidão à natureza, por sua livre vontade, e com espírito indômito se
aventurou em busca do verdadeiro saber e do domínio de sua realidade. A
ingestão do fruto proibido da “árvore do conhecimento” pode ser a metáfora da
criação do templo primordial.
Por
isso os mistérios das antigas tradições despertam uma imensa atração aos
iniciados. Este sentimento, que nos motiva a persistir na manutenção justa e
perfeita dos ensinamentos dos magos ancestrais que atravessaram gerações, foi o
mesmo que levou os primeiros pensadores a erigirem seu templo primaz e, assim,
possibilitar em seguida a criação de tudo que temos a nossa volta - a chamada
sociedade humana.
Estas
maravilhosas descobertas nos remetem a um patamar superior na infinita escada
rumo ao pleno conhecimento. Nesta nova perspectiva vislumbramos a certeza de
que, no futuro, os templos continuarão a ter a mesma importância e valor que já
demonstraram no passado, contribuindo eternamente para a evolução da
humanidade.
Carlos
Alberto Carvalho Pires, M.M.
A.'.R.'.L.'.S.'.
Acácia de Jaú – 308 Or:. de Jaú / SP - Brasil
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