Por Edval Lourenço - R. Bula
Minha
geração tem um cacoete: quem não morreu ficou velho. Mas não pense que minha
geração é dessas que passam pela vida impunemente. Não. Minha geração é bicho
feral. Minha geração disse a que veio. Não apenas disse, mas fez o que prometeu
fazer: mudar o mundo. Olhe que não é uma tarefinha à-toa do tipo construir uma
Transamazônica ou uma Ferrovia Note-Sul, que são obras de vulto, mas têm, até
certo ponto, apenas impacto local. A nossa geração é maior: veio para mudar o
mundo. E aprontou.
Minha
geração é essa que brotou no início dos anos 50 do século passado e foi o
fermento de todos os movimentos undergrounds. A gente inventou a minissaia, o
topless, a calça Lee, a sandália franciscana, a liberdade individual. A gente
inventou a pílula, disseminou os alucinógenos e adotou o desbunde como um
comportamento bacana. A gente clamou por liberdade, repactuou os costumes.
Adorou Sartre, Marx e Godard. Devorou Salinger e Kerouac. Botou mochila nas
costas, pegou carona com gente estranha, rodou o mundo sem direção, fez sexo
livre e dançou rock n’ roll na lama em Woodstock. Relinchou com Jane Joplin nas
noites de doideira e a ala mais certinha até amou os Beatles e os Rolling
Stones. Leia mais
A
gente botou fogo em Paris, em 68, num ato de celebração da felicidade levada às
raias da loucura. Foi uma coisa tão estupenda que até Sartre, um de nossos
ideólogos, morreu sem entender direito o que realmente houve e quais os
verdadeiros desdobramentos naquele dia de sagrada fúria. A gente pegou em
armas, montou uma guerrilha na selva de Xambioá para demolir a ditadura. Vestiu
camiseta de Guevara, sequestrou aviões, arrombou cofres, cortou cana em Cuba,
paparicou Allende e fugiu pra Moçambique num voo desgovernado. Os mais tímidos,
ou que estavam na bêca, puxando cabo de enxada como eu, deliraram diante dos
radinhos de pilha e passaram procuração para Chico e Caetano conduzirem suas
tochas. Na primeira oportunidade sumiram no mundo. Nosso estilo de vida foi o
caldo para a disseminação do vírus HIV.
Um
dia a gente voltou para casa, meteu a cara no trabalho. Inventou as redes
sociais, criou novos jeitos de se relacionar em todos os ambientes. Mimou os
filhos com supérfluos e plumas da psicologia mal entendida. Fermentou o PIB do
mundo num nível jamais imaginado. Encheu as ruas e becos de automóveis. Ligou o
dane-se nas emissões de gás estufa. A gente foi o cróis.
Olha,
não foi pouco o que a minha geração fez. Nenhuma outra geração fez tanto quanto
a nossa. Para o bem e para o mal. Porque não há quem faça uma coisa sem
estragar outra. A vida ficou melhor e pior: muito mais intensa.
Nosso
rescaldo é triste como o rescaldo de qualquer grande incêndio. Nossos
procuradores Caetano e Chico estiveram por último defendendo a censura às biografias.
Nossos revolucionários políticos, ou estão presos na Papuda pelos crimes do
Mensalão ou estão aparelhando o Estado para o exercício do poder pelo poder.
Nossos filhos e netos formaram as gerações mais psicadas da história,
fomentando uma sociedade em que as drogas e a violência atingem proporções
epidêmicas. Coisas menores, como a Transamazônica e a Norte-Sul ficaram
inconclusas ad eternum. Mas uma coisa posso lhes assegurar: depois da nossa
intervenção, nada mais será como foi um dia.
Por
tudo isso, pelo sim e pelo não, tenho que confessar: dá saudade até do que era
pra ser e não foi.
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