CULTURA
Por Vitor Nuzzi - RBA
Por Vitor Nuzzi - RBA
Foi um festival com Tom Jobim vaiado e
uma música que irritou os quartéis. E ficou para sempre no imaginário nacional
Cynara
e Cybele interpretaram Sabiá: a vaia não era dirigida exatamente à música de
Tom e Chico,
mas à decisão do júri de desclassificar a canção de Vandré
Com 41 anos, veterano e consagrado, um
dos participantes fazia sua estreia em festivais naquele 1968. Além disso,
havia apostado contra a própria música, por insistência de seu parceiro na
composição, que inicialmente se chamava Gávea. O “calouro” se chamava Tom
Jobim. Seu parceiro era Chico Buarque. A música, Sabiá. Era a decisão da fase
nacional do Festival Internacional da Canção (FIC) promovido pela Rede Globo,
em 29 de setembro de 1968, em um superlotado ginásio do Maracanãzinho, no Rio
de Janeiro.
O FIC de 1968 rendeu vaia inesquecível
para Tom Jobim – Chico escapou, pois estava na Itália – e grande polêmica para
a mais cantada música da noite: Pra não Dizer Que não Falei das Flores
(Caminhando), de Geraldo Vandré. A vaia não era dirigida exatamente à música de
Tom e Chico, mas à decisão do júri de desclassificar a canção de Vandré, que
falava mais alto ao coração da plateia, um chamamento à ação naqueles tempos
difíceis: “Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer”.Leia mais
O júri reunia, entre outros, o
pesquisador Ary Vasconcelos, a atriz Bibi Ferreira, o compositor Billy Blanco,
o jovem maestro Isaac Karabtchevsky, o escritor Paulo Mendes Campos, o diretor
do Museu da Imagem e do Som (MIS) Ricardo Cravo Albin e o desenhista Ziraldo. À
época na TV Tupi, Bibi deu nota maior para Caminhando. Mesmo assim, enfrentou a
fúria do público. “Lembro que quando saí eu estava triste, acabrunhada. Mas
fiquei muito mais quando ouvi os palavrões para cima de mim”, conta. “Eles
gritavam ‘vaca, vaca’”, recorda Bibi, aos risos.
O próprio Vandré decidiu interceder, defendendo os vencedores |
Cravo Albin definiu a reação do público
como “uma das coisas mais assustadoras da minha vida”. E sentiu de perto essa
fúria. “Eu estava no meu pequeno Volkswagen vermelho, com Eneida (Costa Martins)
ao lado e Paulo Mendes Campos, Alceu Bocchino e Ary Vasconcelos sentados atrás,
quando veio aquela turba na nossa direção.” Albin se lembra de alguns gritando
“é o júri, é a turma do júri”, e começaram a bater no carro. “Comentário da
comunista Eneida: poderia imaginar tudo na vida, jamais que seria salva pela
polícia”.
O clima político já fervia, após
episódios como a morte do estudante Edson Luís, a greve dos metalúrgicos de
Osasco e a Marcha dos 100 Mil, no Rio. A situação piorou depois do festival, e
não são poucos os que incluem Caminhando na conta do AI-5, que seria decretado
em 13 de dezembro.
Vetos
e vaias
Na autobiografia escrita em 1991 com o
auxílio do jornalista Gabriel Priolli, o ex-diretor da Globo Walter Clark conta
que recebeu uma “ordem” para que Caminhando e América, América (de César Roldão
Vieira) não vencessem. O recado, segundo ele, partiu do ajudante de ordens do
general Sizeno Sarmento. Comandante do I Exército, Sizeno havia sido major da
Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial. No início do
governo Castelo Branco, após a derrubada de João Goulart, fora chefe de
gabinete do ministro da Guerra, Costa e Silva. A tal ordem nem sequer chegou ao
conhecimento dos jurados.
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o
Boni, assegura que o júri não sofreu pressão. “Nenhuma interferência, nem a
mais leve sugestão. O júri foi soberano”, diz o ex-diretor da Globo. Sobre o
relato de Clark, ele conta que não foi informado. “O Walter, talvez para não me
preocupar, nunca mencionou esse fato. Quando conversávamos sobre consequências,
a gente pensava no endurecimento da censura com nossos telejornais, novelas e
outros festivais, mas estávamos acostumados com isso e a só agir quando surgiam
problemas.” Segundo Boni, não havia temor em relação às tais “consequências”,
tampouco houve alívio com a decisão dos jurados, pois o recado de Vandré já
estava dado. “Ganhar ou não o festival não faria diferença.”
Para ele, na decisão do júri prevaleceu
a qualidade musical. À pergunta sobre sua preferência, responde: “Como amante
da música, eu ficaria com Sabiá, mas como homem de marketing eu preferiria
Caminhando”. Seja como for, Boni conta que saiu frustrado do Maracanãzinho
naquela noite: ver Tom e Chico sendo vaiados era doloroso e Vandré ter perdido
dava uma sensação de vazio.
O público, estimado entre 20 mil e 30
mil pessoas, queria a vitória de Pra não Dizer Que não Falei das Flores. E se
manifestou com veemência depois de conhecer a decisão. Os nomes foram sendo
anunciados. Os Mutantes terminaram em sexto lugar, com Caminhante Noturno, e
ganharam prêmio de melhor interpretação. Ao jornal Última Hora, Rita Lee daria
sua definição de Caminhando: “Um drama encenado no palco, com duas posições
(acordes) e poesia chorada”. Em quinto, Dia de Vitória, dos irmãos Marcos e
Paulo Sérgio Valle. Em quarto, Passacalha, de Edino Krieger, com o Quarteto
004. Em terceiro, Andança, de Edmundo Souto, Danilo Caymmi e Paulinho Tapajós,
cantada pela novata Beth Carvalho e pelos Golden Boys. “A música nos tocou de
imediato”, conta Roberto Corrêa, dos Golden Boys.
A tensão cresce
Quando o apresentador Hilton Gomes
anuncia o segundo lugar para Pra não Dizer Que não Falei das Flores, as vaias
não paravam. O próprio Vandré decidiu interceder, defendendo os vencedores, que
ainda nem haviam sido anunciados. “Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de
Hollanda merecem o nosso respeito. A nossa função é fazer canções. A função de
julgar, neste instante, é do júri que ali está.” E vaias, muitas vaias, para o
eclético júri. “Pra vocês que continuam pensando que me apoiam vaiando... Tem
uma coisa só mais. A vida não se resume em festivais.” E começa a batida ao
violão. A multidão agitava lenços brancos – “caloroso adeus ao artista cuja
canção vai ser cantada por muito tempo”, descreveu o jornal O Globo na edição de
30 de setembro.
Certo da derrota, Tom Jobim perdeu a
aposta para Vinicius de Moraes (uma caixa de uísque) e ganhou o prêmio
principal, que dava para comprar um Ford Galaxie ou dois Fuscas. E foi
comemorar em casa, no Leblon. Seu parceiro em Sabiá, Chico Buarque, mandaria
depois um telegrama, fazendo trocadilho: “Eu sabiah, eu sabiah, eu sabiah”.
Cynara e Cybele estavam lá. Mas a festa mal chegou a começar. O cronista Paulo
Mendes Campos telefona à procura de Fernando Sabino, e avisa que Sérgio Porto,
o Stanislaw Ponte Preta, havia morrido naquela noite.
Ziraldo deu nota 10 para Caminhando e 5
para as outras músicas, inclusive
Sabiá. “O que ninguém percebeu na época,
nem eu, é que a letra de Sabiá era também inconformista, uma canção de
protesto. ‘Me deitar à sombra de uma palmeira que já não há, colher a flor que
já não há... as noites que eu não queria... anunciar o dia!’ Estava tudo lá, de
maneira velada”, recorda. Como muitos, ele viu algo de heroico na composição de
Vandré. “Era uma emoção ver aquele cara sozinho naquele palco enorme
enfrentando apenas com seu violão a fúria dos militares. Que era imensa naquela
época”, observa Ziraldo.
O desenhista atesta que os jurados não
sofreram pressão. Também segundo Billy Blanco, não houve interferência. “Os jurados
julgaram o que quiseram”, afirma o compositor e arquiteto, na época com 44
anos. Ele torcia por Vandré, mas deu 10 para as duas. “A música de Tom era
perfeita”, explicou Billy Blanco, autor dos Estatutos da Gafieira, entre outras
pérolas da MPB. Blanco morreu em 2011.
Experiente em júris, o jornalista Eli
Halfoun se assustou com a reação do público, “foi a maior vaia que ouvi na
minha vida”, mas reitera a ausência de qualquer tipo de pressão, assim como seu
colega Carlos Lemos: “Não conheço ninguém do júri que tenha sofrido”. À época
com 39 anos, chefe de reportagem do Jornal do Brasil, Lemos passava por sua
segunda – e última – experiência como jurado. E cravou a música de Tom e Chico
em primeiro. “Sabiá era uma música esplendorosa, de alta qualidade, enquanto
Caminhando era um mito político.”
Julgamento justo
Bibi Ferreira não lembra que notas deu,
mas sabe que a maior foi para Caminhando.
“Não por uma questão política, até
porque o Chico também era engajado”, afirma Bibi, que já gostava do trabalho de
Vandré. “Ele era aquele sucesso, e um rapaz muito bonito.” Ela acredita que de
fato houve pressões para que Caminhando não vencesse, mas isso nunca chegou ao
júri. “Era um pessoal muito correto”, diz Bibi, para quem os festivais “eram
realmente o canto do povo”.
O maestro Alceu Ariosto Bocchino
sustenta que teve como única preocupação observar as características de cada
composição de um ponto de vista brasileiro – ele lembra que o júri integrava a
parte nacional do FIC. “O aspecto brasileiro tinha de prevalecer”, comenta. “A
inspiração de Vandré foi boa. Não discuto a letra, porque ele tinha uma maneira
de pensar”, diz Alceu, professor de piano na Escola de Música e Belas-Artes do
Paraná. “Agora, ele se acompanhou num ritmo que não era brasileiro. Ele pecou
no acompanhamento”, analisa o maestro, para quem Sabiá era uma legítima modinha
brasileira.
Ricardo Cravo Albin declarou a O Globo
que Caminhando já era uma canção consagrada, enquanto Sabiá conquistaria o
público progressivamente. Vem dele a revelação de que o “grupo do Museu” – um
núcleo formado por integrantes do MIS – conspirou, de certa forma, para que
Sabiá fosse a vencedora. “Eu tramei junto com membros do júri”, afirma. Entre
os “conspiradores”, segundo ele, estavam Eneida, secretária-geral do Conselho
Superior de Música Popular, Ary Vasconcelos e o escritor Paulo Mendes Campos.
“Eu era uma pessoa querida de boa parte do júri”, lembra. Albin deu nota 10
para Sabiá e 8 para Caminhando.
Presidente do júri, o jovem Isaac
Karabtchevsky, então com 28 anos, diretor artístico da Orquestra Sinfônica
Brasileira, conta que só daria nota – o chamado voto de Minerva – caso houvesse
empate. “Houve, sim, um debate por parte do júri, por vezes até passional. A
música causa esse tipo de discussão em todos os níveis”, diz.
O inglês Patrick Campbell-Lyons, que com
um parceiro grego representava a Jamaica na parte internacional do FIC,
arriscava uma explicação: “Vandré é esquerdista? Por isso que ele não venceu”,
afirmou a O Globo. Patrick e o grego Alex Spyropoulos concorreram com
Waterfall. O intérprete ainda daria o que falar: Jimmy Cliff, este, sim,
jamaicano, aos 20 anos.
Vandré declarou que o mais importante
era mostrar sua música. “A estrutura vigente inventou os festivais e coloca uma
nota de dinheiro no alto de um pau de sebo, para os compositores ficarem se
escoiceando. Eu não tenho nada a ver com isso, respeito meus companheiros e não
entro em competição. Quero apenas mostrar minha canção.” O que ele disse,
curiosamente, não difere muito do que pensava seu concorrente. “Nunca
participei (de festivais) porque não gosto dessa história de Caim e Abel, de um
comer o outro, de levantar mais peso do que o outro, ser mais malvado do que o
outro. O raciocínio comparativo é falso. Não se pode comparar um sabiá com um
bem-te-vi (…)”, disse Tom Jobim à revista Manchete.
Com o AI-5, um jovem perdeu o emprego e
largou o cursinho. Leon Cakoff (1948-2011), que era secretário de Vandré, em
vez de físico virou jornalista, até se tornar o criador da mais importante
mostra internacional de cinema no Brasil. Os FICs terminariam em 1972, já em
decadência. Apenas duas canções brasileiras levaram o Galo de Ouro, prêmio dado
aos vencedores: Sabiá, em 1968, e, no ano seguinte, Cantiga por Luciana
(Edmundo Souto e Paulinho Tapajós), interpretada por Evinha.
Texto adaptado de capítulo de livro
(inédito) sobre Geraldo Vandré, de autoria do repórter
1 Comentários
Adorei o texto,bem escrito e informativo.
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