É sempre imprevisível o desdobramento
que pode ter na vida de uma pessoa até então desconhecida o fato de ter sido
fotografada, por acaso, no lugar errado e na hora errada. Ou no lugar certo e
na hora certa. A História está coalhada desse tipo de instantâneo que
transforma o protagonista em símbolo de algo maior do que ele.
Nesta linha, vale esmiuçar uma foto
estampada na primeira página da “Folha de S.Paulo” desta terça-feira. Ela
mostrava, em primeiríssimo plano, um homem de estatura forte e fisionomia tensa.
Sua linguagem corporal era defensiva. Mantinha o olhar fixo em algum ponto
morto, talvez para evitar contato visual com a hostilidade à sua volta. Sua
alegre camisa xadrez amarela parecia destoar do ambiente carregado.
Era negro, cubano e médico.
Folhapress |
Ao fim da aula inaugural, os cubanos,
assustados, se viram cercados e obrigados a passar por um corredor humano de
colegas de profissão brasileiros que os vaiavam e chamavam de “escravos”,
“incompetentes”. Palavras de ordem como “Voltem para a senzala” foram entoadas
contra os estranhos ao ninho.
Por mera associação visual de imagem, o
flagrante de Fortaleza trouxe à mente uma foto — essa sim, icônica — captada em
Little Rock, no estado do Arkansas, 56 anos atrás. Ela transformou o rosto de
uma adolescente de 15 anos na imagem do ódio racial nos Estados Unidos e fez da
fisionomia da outra adolescente retratada a face da tenacidade negra. À época,
nenhuma das duas jovens americanas sequer notou o instante em que o fotógrafo
do “Arkansas Democrat” virou suas vidas pelo avesso.
Foi no dia 4 de setembro de 1957, seis
anos antes de o pastor Martin Luther King levar para Washington seu célebre
discurso-sonho de uma América menos desigual. Elizabeth Eckford era uma
adolescente reservada. Estava entre os nove alunos negros de Little Rock
selecionados para cumprir a ordem judicial de integração racial na cidade. Mas
se perdeu do seu grupo e precisou marchar sozinha em direção ao portão
principal da melhor escola local, até então reservada a alunos brancos.
À sua frente, teve a passagem barrada
por soldados armados da Guarda Nacional. Às suas costas, uma pequena multidão
começou a lhe lançar xingamentos. “”Vamos linchá-la”, “Dá o fora, macaca”. Uma
senhorinha branca a quem pediu ajuda lhe cuspiu no rosto.
Ao tentar sair dali sem correr, como lhe
ensinara a mãe, teve um séquito de jovens no seu encalço, além de três
adolescentes coladas no calcanhar.
Quando o flash do fotógrafo disparou,
uma das três entoava o bordão “Vai pra casa, nigger. Volta para a Africa”. Era
Hazel Bryan, de 15 anos, esbelta, coquete e popular aluna do colégio segregado.
A foto captou-a de olhos e sobrancelhas franzidos e de boca aberta contorcida
pela raiva. E, em primeiro plano, via-se a estudante negra Elizabeth, de
vestido de algodão branco, apertando um fichário e um livro contra o peito.
Prosseguia sua caminhada de cabeça erguida, com o medo escondido atrás de
óculos escuros.
Por mero acaso e apesar da pouca idade,
ambas foram assim catapultadas para a História — Hazel como o retrato do ódio
racial, Elizabeth, o da determinação — e tiveram o resto de suas vidas marcado
por aquele instantâneo.
O flagrante do episódio cearense difere
em quase tudo do caso que entrou para a história dos direitos civis americanos
como “Os Nove de Little Rock” — na natureza, no significado, na dimensão, na
consequência. Aproximam-se apenas por humanizarem de forma indelével, para o
bem ou para o mal, um noticiário até então sem rosto.
No caso de Little Rock, as duas
protagonistas eram meninas que repetiram em público o que aprenderam em casa.
No caso de Fortaleza, são todos adultos — o cubano negro, assustado, mais tarde
identificado como Juan Delgado, de 49 anos, que já trabalhou quatro anos no
Haiti — e as duas médicas brasileiras retratadas aos apupos. Olhando pelo
retrovisor, talvez preferissem ter ficado fora da foto. Ou do foco.
Em tempo: segundo dados do Censo de
2010, somente 1,5% dos médicos brasileiros se autodenomina negro e 13,4% se
autoclassificam como pardos. Já no cômputo geral dos agora mais de 200 milhões
de cidadãos brasileiros, contudo, 50,7% se autodeclaram pretos ou pardos.
*Dorrit Harazim é jornalista.
1 Comentários
"SOMOS NOSSA PRÓPRIA PRISÃO E NELA PRENDEMOS PESSOAS E COISAS.
ResponderExcluirNEM A COR ESTÁ LIBERTA: JAMAIS COMERÍAMOS UM BIFE AZUL..."
1968...
Não lembro se Capinam ou Torquato Neto definiu assim "isso"...