Miles Davis, o inquieto do jazz

Cultura
Por Paulo Moreira*
Foto: divulgação
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Lembro bem do dia em que Miles Davis morreu. Era um sábado e eu estava em casa com as minhas filhas quando a notícia surgiu no Jornal Nacional com aquela brevidade bem estilo Globo. Fiquei atônito. E fui ouvir os meus discos. Um deles, o álbum duplo Get Up With It, tinha uma história particular. Lá por 82, 83, eu e os meus amigos de sempre, Mauro Magalhães e Marcelo Jardim, tínhamos feito uma excursão exploratória no subsolo da Yes Discos, lá na esquina da Borges com a Salgado Filho. Alguém tinha nos dito que havia uma liquidação de discos de jazz. E eu encontrei esta pérola, importada, a um precinho camarada. É claro que comprei. Qual não foi a surpresa ao me deparar com o que estava naquele LP. Uma música densa, muito percussiva e com o Miles tocando órgão (!!!) ao invés do seu habitual trompete. De qualquer maneira, a música me intrigou. O disco era uma homenagem ao grande mestre Duke Ellington e a primeira faixa era uma viagem de mais de 30 minutos chamado He Loved Him Madly, ou seja “Ele o amava loucamente”, que era o sentimento de Miles em relação ao grande Duke. Leia mais

Recentemente, esta história teve seu círculo fechado. O flautista da canção, Dave Liebman, esteve em Porto Alegre para fazer um concerto com o Edu Martins Trio e a OCTSP. Numa das conversas que tive com Liebman, ele contou que Miles, ao saber da morte de Duke, lhe disse que deveriam fazer alguma coisa musicalmente como um tributo ao mestre. Um mês depois, Liebman foi chamado aos estúdios da Columbia por Miles que lhe disse: “pegue sua flauta e toque alguma coisa”. O músico lhe atendeu e Miles deu por encerrada a gravação. Qual não foi a surpresa de Liebman quando o LP foi lançado. Seu solo de flauta se estendia por incontáveis minutos, obra do grande parceiro e “montador” dos discos de Miles da década de 70, o saxofonista e produtor Teo Macero. Assim funcionava a mente musical de Miles Davis. Um gênio que muitas vezes, mostrava as outras facetas — nem tão bonitas e agradáveis — de seu caráter aos músicos, ao público, à crítica e à Polícia de Nova Iorque.
foto: divulgação
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Nascido em Saint Louis, filho de uma família de classe média — uma raridade na década de 20 –, Miles Davis ganhou seu primeiro trompete aos 13 anos. Foi descoberto pelo também trompetista Clark Terry e foi estudar na Julliard School of Music, em Nova Iorque. Em plena era do bebop, o jovem trompetista foi fisgado pelos sons de Dizzy Gillespie e, especialmente, de um saxofonista alto que estava fazendo sua particular revolução no jazz: Charlie Parker. Logo, estava tocando no quinteto do saxofonista e gravando com o baterista Max Roach e com os pianistas Bud Powell e John Lewis. Inquieto como sempre foi, Miles tinha um jeito diverso, mais relaxado, de tocar o frenético bebop. E, ao se juntar ao sax barítono Gerry Mulligan e ao arranjador canadense Gil Evans, perpetrou sua primeira revolução na história do gênero: o Cool Jazz, em gravações avulsas com noneto que, com o surgimento do long-play, foram reunidas num volume chamado The Birth of the Cool.
Porém, esta primeira revolução seria seguida de um período difícil de luta contra o vício da heroína. Para se livrar da droga, Miles voltou a Saint Louis, se enfurnou na casa da fazenda de seus pais e só saiu de lá depois de passar pelo cold turkey, a temida síndrome de abstinência. Ao voltar para Nova Iorque, juntou-se a um grupo de jovens músicos muito talentosos que marcariam o seu primeiro grande quinteto: John Coltrane (sax tenor), Red Garland (piano), Paul Chambers (baixo acústico) e Philly Joe Jones (bateria). Com eles, gravou grandes discos para dois selos diferentes: Prestige, onde estava contratado, e Columbia, para onde foi “desviado”. Para cumprir o contrato com a primeira, teve de enfrentar duas monumentais sessões de gravação que resultaram nos discos Relaxin’Workin’,Steamin’ e Cookin’, verdadeiros paradigmas da música que se fazia na época.
Ele desfez o primeiro grande quinteto porque Coltrane e Philly Joe Jones estavam mergulhados na heroína. Ele tinha largado e, no horizonte, estava disponível seu velho amigo Gil Evans. Com ele, Miles gravou três discos em sequência que se inscreveram na história do jazz como exercícios estilísticos com uma big band: Miles Ahead (1957); Porgy and Bess (1958); Sketches of Spain(1959/60). Mais adiante, a Columbia lançou outras gravações num LP, aí flertando com a bossa-nova e com a música brasileira, chamado Quiet Nights (1962). Sempre ranzinza, Miles reclamou deste lançamento, dizendo que era apenas meio álbum. No meio de tudo isso, o incansável Miles reformou seu quinteto, trazendo de volta Paul Chambers e John Coltrane (já recuperado do vício da heroína e começando a atravessar uma fase mística), buscando na Flórida um professor e saxofonista alto chamado Julian Adderley que, de tão gordo, era chamado de Cannonball (bola de canhão), o baterista Jimmy Cobb e a suprema heresia para o público negro: um pianista com cara de professor de matemática de colégio, Bill Evans.
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Gravou então o que é considerado, hoje em dia, como um dos maiores — se não o maior — disco da história do jazz: Kind of Blue. Tanto Miles quanto Evans estavam intrigados com os experimentos sonoros do compositor e arranjador George Russel com a música modal. Neles, eram usados modos ao invés de progressões de acordes para liberar os solistas. E com um time daqueles, o resultado só poderia ser um clássico da história da música. O problema é que cada um dos músicos participantes tinha seus próprios planos. Evans com seu trio, Cannnoball com seu quinteto e Coltrane com o quarteto.
De 1960 até 64, Miles procurou incansavelmente um novo grupo de músicos que se adequasse ao seu estilo de tocar. Passaram pela banda os saxofonistas George Coleman, Hank Mobley, Sonny Stitt e Joe Henderson. Esta busca terminou quando um baterista de 17 anos chamado Tony Williams e um pianista de 23 chamado Herbie Hancock entraram para a banda que já tinha o baixista Ron Carter. Faltava o saxofonista. Que estava tocando com Art Blakey & The Jazz Messengers: Wayne Shorter. Quando este aceitou o convite, formou-se então o segundo grande quinteto da carreira de Miles. Durante cinco anos, este grupo barbarizou o mundo do jazz com seu “freebop”, um hard bop com pitadas de modal jazz. Entre os discos gravados por este grupo, destacam-se Neffertiti e Sorcerer, ambos de 1967. Mas a inquietude de Miles não dava tréguas.
Fã confesso dos experimentos eletrônicos do Karlheinz Stockhausen e do rock de Jimi Hendrix (com quem quase gravou), além do soul de Sly and Family Stone e James Brown, Miles resolveu adotar a linguagem elétrica nos seus trabalhos. Trouxe da Inglaterra o baixista Dave Holland e o guitarrista John McLaughlin, acrescentou à mistura os pianistas Chick Corea e Joe Zawinul, ambos pilotando os recentes pianos elétricos Fender Rhodes, e o baterista Jack DeJohnette. Com eles, gravou o disco In a Silent Way (1969), seu primeiro grande experimento elétrico. A consagração viria no mesmo ano com o seminal Bitches Brew, um marco na história do jazz, incorporando as sonoridades do rock ao jazz, utilizando instrumentos elétricos e inaugurando uma nova fase no gênero, o jazz-rock. Este disco é tão importante para o desenvolvimento do jazz que cada instrumentista foi fazer seu próprio trabalho. Wayne Shorter, Zawinul e Airto Moreira fundaram o Weather Report. Já Chick Corea se juntou ao baixista Stanley Clarke e ao saxofonista e flautista Joe Farrel e montou o Return to Forever. John McLaughlin já havia participado do grupo Lifetime com Tony Williams e criou a lendária Mahavishnu Orchestra. Hancock e o claronista Bennie Maupin formaram o Headhunters.
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E Miles seguiu em frente, experimentando cada vez mais durante os cinco primeiros anos da década de 70. Nos discos desta fase, destacam-se o já citado Get Up With It e On the Corner. Mas, em 1975, a máquina começou a enguiçar. Anos de uso de drogas mais um problema no quadril fizeram Miles sair do circuito por cinco anos e se entocar na famosa casa de Malibu, palco de histórias que não devem ser contadas para as crianças. Ele só voltou em 1981, ajudado pela atriz Cicely Tyson, com quem havia retomado o relacionamento, e escudado pelo baixista Marcus Miller, responsável por grande parte da música nos seus últimos dez anos de vida. Seu retorno foi morno com The Man With the Horn, mas o negócio esquentou com o disco ao vivo We Want Miles (1982) e Star People, uma investigação do blues pela ótica de Miles Davis.
Seus últimos anos de vida foram marcados pela polêmica em que se envolveu com o também trompetista — e jovem adversário na Columbia Records — Wynton Marsalis. Representante da turma dos neoclássicos, Wynton desdenhava os experimentos estilísticos de Miles, afirmando que “aquilo não era jazz”. Arrogante como sempre, Miles mandou o guri calar a boca, dizendo que ele era “um jovem legal, apenas confuso”. Os discos foram se acumulando: You’re Under Arrest (1985); Tutu (1986), fruto de seu novo contrato com a Warner Brothers; Amandla (1987) e o derradeiro Doo-Bop (1991), um experimento com o hip-hop. Miles Davis morreu de pneumonia e insuficiência respiratória em 29 de setembro de 1991. Postumamente, foi lançado um disco feito meses antes de sua morte no Festival de Jazz de Montreux, quando o maestro Quincy Jones montou uma orquestra para regravar os arranjos de Gil Evans. Miles participou de algumas faixas, mas já estava doente.
Uma lenda da música do Século XX, Miles Davis foi um dos mais importantes músicos de jazz de todos os tempos ao lado de Duke Ellington e Louis Armstrong. Ele passou por várias revoluções na música, começando com o bebop dos anos 40, o cool jazz no início dos anos 50, a música modal do disco Kind of Blue e o jazz elétrico dos anos 70. Além disso, passeou por inúmeros estilos, sempre deixando impressa sua marca de trompetista e  bandleader. Seu modus operandi era o de juntar sempre os melhores e dar espaço para que seus talentos pudessem acrescentar qualidade à sua música. E nisso ele foi mestre. Poucos líderes tiveram à sua disposição nomes como John Coltrane. Phlly Joe Jones, Paul Chambers, Bill Evans, Cannonball Adderley, Herbie Hancock, Tony Williams, Wayne Shorter, Chick Corea, Joe Zawinul, John McLaughlin, Dave Holland, Jack DeJohnette, Lenny White, Bennie Maupin, Dave Liebman, Keith Jarrett, Marcus Miller, Mike Stern, Al Foster, John Scofield, Branford Marsalis, entre muitos outros. Nestes 22 anos sem Miles, a música ficou certamente mais pobre.
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* Paulo Moreira é jornalista e radialista há 32 anos. Apresenta diariamente há 14 anos na FM Cultura o programa SESSÃO JAZZ, que vai ao ar de segunda a sexta, das 20h às 22h. Além disso trabalha na Coordenação de Música da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, na assessoria de imprensa e na curadoria dos projetos “Sons da Cidade” e “POA Instrumental”. Tem duas filhas, uma neta e, especialmente, é colorado.
*Fonte: Sul 21

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