Luis Fernando Verísssimo |
Vivemos sob o signo da
hipocrisia. A volta da democracia no Egito, com a queda do Mubarak e a primeira
eleição livre em muitos anos, foi saudada por todo o mundo como um desabrochar
primaveril. Só uma coisa deu errado: ganhou a eleição quem não deveria.
A Irmandade Muçulmana no poder
só deu razão a quem diz que islã e democracia são incompatíveis, ou aos que
dizem que a democracia é linda, mas não pode ser suicida.
Veio o golpe dos militares,
que nunca deixaram de ser a única força política consequente no Egito, e cujo
objetivo declarado não é só substituir os muçulmanos no poder, mas acabar,
literalmente, com eles.
Os líderes muçulmanos estão
presos e seus seguidores sendo assassinados nas ruas, à vista do mundo inteiro,
que faz sons protocolares de reprovação, mas não quer se meter.
Os Estados Unidos, que
sustentavam a ditadura Mubarak e há anos sustentam, com dinheiro e material, o
exército egípcio, enquanto pregam democracia para todos — sem exageros, claro
—, não sabem até onde levar sua “realpolitik”, que é o nome pomposo da
hipocrisia.
Mas se, num acesso de
autocrítica, os americanos cortarem a ajuda para o massacre, não faltará ajuda
das petromonarquias da região, como aquele outro exemplo de democracia relativa
apoiada pelos Estados Unidos, a Arábia Saudita. Enfim, as primaveras, como a
democracia, são lindas, mas também podem ser vésperas de verões infernais.
Essa meleca — e a meleca maior
que é toda a situação no Oriente Médio, incluindo a questão Israel/palestinos —
é fruto de muitos anos de hipocrisia, começando com a hipocrisia das potências
imperialistas, que pilharam meio mundo disfarçadas de evangelizadoras e
civilizadoras, e, no caso do Oriente Médio, chegaram a impor fronteiras e
inventar países.
A própria geografia da
interminável crise em que vive a região é uma herança da passagem dos ingleses,
que deixaram o lixo da sua farra para trás. Mas tanto os países artificiais
quanto os históricos, como o Egito, tiveram culpa pela sua desgraça atual.
Nos anos 60 e 70 ensaiou-se a
criação de uma nova ordem econômica mundial, independente da ordem sacramentada
pelo neoimperialismo anglo-americano. Os dólares do petróleo financiariam essa
tentativa de emancipação dos pobres. Mas não aproveitaram a abertura.
Os emires apoiavam a ideia da
revolta em tese, mas continuaram aplicando seus lucros no sistema bancário
dominante. E o neoimperialismo, enquanto exaltava a democracia liberal, se
encarregava de impedir qualquer alternativa para o seu domínio.
No Egito, agora, os hipócritas
se impõem criminosamente. Quem diria que toda a história recente do mundo
caberia numa letra de bolero?
Luis Fernando Veríssimo é
escritor.
0 Comentários