Saudade doi

Artigo do Grão-Mestre Barbosa Nunes*
Escrevendo na quinta feira, dia de “Corpus Christi”, solenidade que remonta ao século XIII, quando a Igreja Católica sentiu necessidade de realçar a presença do “Cristo todo”, no pão consagrado, circulei em uma manhã de clima agradabilíssimo, após uma abençoada chuva de madrugada. Trânsito tranquilo, ônibus vazios, pais com seus filhos nas praças inatingíveis em outros dias, enfim, estou impregnado de muita paz, que me traz enorme saudade. Sinto a presença de Cristo.
Saudade de ti Goiânia, hoje violenta, insegura, intransitável, com arranha céus já superiores a 30 andares,  aprisionando seus moradores que não têm mais liberdade de circulação. Este sentimento de saudade que sinto, é o mesmo, segundo a lenda surgida no período dos descobrimentos, que definia a solidão que os portugueses vindos para o Brasil, tinham das suas terras e dos seus familiares. Eram atacados por uma melancolia por se sentirem tão sós e distantes dos seus. Leia mais
Saudade não tem tradução para nenhuma outra língua. É palavra conhecida somente na língua portuguesa e em galego, uma das mais utilizadas nas poesias, nas músicas, significando a memória de algo que aconteceu e que dificilmente voltará a acontecer da forma como foi.
Sinto saudade da minha primeira escola, Grupo José Ludovico de Almeida, de minha terra natal, Itauçu – Goiás. Quantas coisas passam pela minha cabeça daquele tempo, pois, saudade é a presença da ausência.
Dois fatos marcados na minha memória, com muita emoção. Fui escalado pela professora “Colita” para falar no Dia da Bandeira. Meu pai, Juvenal, agora no Oriente Eterno, de quem não esqueço e meu coração está cheio de saudades dele, me levou a um homem sábio, advogado respeitado e pediu a ele que ajudasse seu filho a cumprir a tarefa que a professora passou.
Ele de pronto, muito atencioso, começou a teclar com rapidez a sua máquina de escrever e logo produziu uma página inteira e me disse: “Fique de frente pra mim, leia com voz alta”. Após minha leitura me parabenizou dizendo:
“Muito bem, mas lá na escola ficará melhor ainda. Leia o texto por dez vezes em sua casa em voz alta e no momento solene faça da mesma forma, não abaixe a cabeça, olhando para todos e pensando que você está lendo na sua casa”.
Foi a primeira aula de oratória que recebi. Alcancei nota máxima, que era 100, na época. Naquele dia fui ajudado e orientado por um maçom, que muito tempo depois fique sabendo ser uma referência para a Ordem, Cláudio das Neves, extraordinário advogado, mais ainda, do Tribunal do Juri.
Cláudio das Neves, que vítima de um assalto via sua camioneta ser levada pelo marginal, quando intrepidamente, passou à frente do veículo, tentando impedir que fosse levado, mas o ladrão não se rendeu, passando o carro sobre seu corpo. Cláudio das Neves foi socorrido, mas não resistiu e a sua grandeza de ser humano, já havia antecipado a doação do seu corpo para estudo na Faculdade de Medicina, o que foi feito com intermediação do Grande Oriente do Estado de Goiás e da sua Loja, “Liberdade e União”.
O outro me assustou, quando a mesma saudosa e bondosa “Colita”, comunicou que os alunos estavam dispensados, dando a notícia que o presidente Getúlio Vargas, suicidou. Não tinha eu 10 anos. Era uma manhã de 24 de agosto de 1954. Voltei para casa sem compreender o fato de uma pessoa tão importante e poderosa suicidar.
Lembro da primeira revista que li, “Seleções”, sempre emprestada pelo comerciante João Drumond e, de vez em quando, chegava o “Jornal Folha de Goiás”. Saudades das festas da igreja, das barraquinhas, parques, circos de touradas, leilões durante as novenas e grandes fogueiras. Saudades do Rio Meia Ponte, que nasce na minha terra, outrora com águas cristalinas, volumosas, cercado por lírios de São José. Margens verdes, muitos peixes. Isto corre na minha memória.
Hoje, Meia Ponte abandonado, morto pelo homem e pelos interesses de empresas que o margeiam. Os pequenos riachos que o alimentam, estão sendo destruídos pela ganância imobiliária que faz chegar ao seu leito esgotos e lixo, os mais diversos.
Uso a frase do estimado amigo, irmão, intelectual, cientista, membro do Conselho Federal do Grande Oriente do Brasil, médico Hélio Moreira, que em sua peça literária de posse na Academia Goiana de Letras, disse assim: “A marcha do tempo é irrecorrível. A imagem guardada na retina pode ter sofrido deformação, a paisagem que habitava nossa infância, pode ter desfigurado. Volte ao passado, mas voltando devagar, pé ante pé, pisando o chão com cautela, pois alguns relevos de nossa infância foram modificados”.
Certa vez em Teresina, Piauí, em trabalho maçônico do Programa Maçonaria a Favor da Vida – Contra as Drogas, recebi do Coordenador Estadual, médico e maçom, Valdeci, realizador contínuo de um grande trabalho de prevenção ao uso de drogas, uma bela estrofe sobre saudade.
 “Quem quiser plantar saudade, trate de escaldar a semente. Plante no solo bem duro, onde o sol seja mais quente. Pois se plantar no molhado, ela cresce e mata a gente”.
Vamos juntos, amigos e amigas, recordar o nosso tempo e incentivar os nossos filhos e netos, a também guardarem muita saudade, que às vezes dói, como diz Miguel Falabella, mas sempre é confortadora.
“Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, doem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é a saudade. Saudade de um irmão que mora longe, de uma cachoeira da infância, de um filho que estuda fora, do gosto de uma fruta que não se encontra mais; saudade do pai que morreu, do amigo imaginário que nunca existiu, de uma cidade; saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa. Doem essas saudades todas”.

*Barbosa Nunes, advogado, ex-radialista, membro da AGI, delegado de polícia aposentado, professor e Grão-Mestre da Maçonaria Grande Oriente do Estado de Goiás – barbosanunes@terra.com.br.

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