Repórter do Times exclui Elis Regina e Noel Rosa da música brasileira

Cultura
Por Euler de França Belém - Revista Bula
 Larry RohterO repórter do “New York Times” Larry Roh­ter (foto) não é um in­térprete do Brasil que tenha o porte e o refinamento intelectual de Gil­berto Freyre (“Casa Grande & Sen­zala”), Sérgio Buarque de Holanda (“Raízes do Brasil”), ou, para citar um brasilianista, Thomas Skidmore (“Preto no Branco — Raça e Na­cionalidade no Pensa­mento Bra­sileiro”). Deve ser citado também o grande antropólogo belga Claude Lévi-Strauss, autor de “Tristes Tró­picos”, um livro que permanece gra­ças à sua prosa viva e perceptiva, assim como ocorre com a sociologia “romanceada” do pernambucano Gilberto Freyre. Mesmo assim, no livro “Brasil em Alta — A His­tória de um País Transformado” (Geração Editorial, 391 páginas, tradução de Paulo Schmidt e Wladir Dupont), Rohter tenta fazer um balanço da história do Brasil, com várias angulações, de Pedro Álvares Cabral, até um pouco antes, ao citar os índios, aos dias da presidente Dilma Rousseff. Há, em quase todos os capítulos, o tom do conselheiro, daquele que, de fora, parece entender tudo e, por isso, sabe quais caminhos devem ser trilhados. Con­centro-me no ensaio “Cri­atividade, cultura e ‘canibalismo’”, de 40 páginas. Curiosamente, apesar de omissões, é o texto mais interessável do livro. De cara, fica-se sabendo que Chiquinha Gonzaga, Noel Rosa, Mário Reis, Ataulpho Alves, Cartola, Jacob do Bandolim, Bidu Sayão, Guiomar Novaes, Elizeth Cardoso, Elis Regina e Dorival Caymmi não existem e, por isso, não são citados por Rohter. Se a história brasileira começa em 1500, ou antes, com os índios, como explicita Rohter, a música patropi começa na década de 1950, com a bossa nova. Por que, num livro que busca as raízes políticas do país, esquecer algumas de suas raízes culturais? Leia mais

Rohter dá o devido valor a um músico sofisticado: “Pixinguinha pode ser considerado o equivalente brasileiro de Louis Armstrong: um brilhante instrumentista, improvisador e chefe de banda, que sintetizava várias correntes musicais afros num novo estilo vivaz que cativou o mun­do. (...) Foi a ascensão de Pi­xin­gui­nha que marcou o início do diálogo constante entre a música pop bra­sileira e a norte-americana”.
Ao contrário do biógrafo Ruy Castro, o crítico americano é econômico nos elogios a uma cantora que fez muito sucesso no Brasil e nos Estados Unidos: “... a batida e a energia de Carmen Miranda eram irrefreáveis e ajudaram a estabelecer o samba como uma dança de salão popular nos Estados Unidos e na Europa”. Sobre Heitor Villa-Lobos: “É o compositor mais tocado e influente que já saiu da A­mérica Latina”.
Um computador pode ser aposentado por outro mais moderno. Mas música não é igual a tecnologia. Noel Rosa é “pior” do que Chico Buarque, porque este surgiu depois e, teoricamente, é mais inovador? Alguém dirá que Stravinski é “superior” a Mozart? Mesmo assim, Roh­ter diz que, em 1955, quando morreu Carmen Miranda, “a música brasileira a havia deixado para trás e já dera início à próxima inovação a desfrutar de popularidade global: a bossa nova”.
“A bossa nova nasceu do fascínio de Antônio Carlos Jobim pelo jazz norte-americano e pelos compositores clássicos românticos como Chopin, mas ele absorveu es­sas influências e produziu algo novo e tipicamente brasileiro”, a­credita Rohter, esquecendo de citar pelo menos uma influência local. Adiante, contradizendo-se, escreve: “O samba e seu derivado mais su­ave, a bossa nova”. Os tradutores, seguindo o original, escrevem sempre Antônio Carlos Jobim, co­mo se o compositor e músico não fos­se conhecido como Tom Jobim, a­qui e alhures.
A bossa nova é uma revolução musical, que, assinala Rohter, “retinha o ritmo contagiante do samba clássico, porém com uma abordagem mais suave e menos ruidosa, em que o piano e o violão têm pre­ce­­dência sobre instrumentos de sopro e percussão”.
Uma ressalva. O concretismo, no momento de sua cristalização, criou o mito de que só alguns poetas mereciam o rótulo de, quem sabe, eternamente modernos. Ao mesmo tempo que produziam “filhos”, notadamente em São Paulo, os concretistas tentavam criar seus predecessores, tanto no Brasil (Sousândrade, Pedro Kilkerry e Oswald de Andrade), quanto no exterior (Ezra Pound). A poesia de Sousândrade, Kilkerry e Oswald de Andrade, por meritória que seja, não tem a qualidade da de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Aliás, como não apresentaram nenhum antecessor com a consistência e renome de Drummond, passaram a supervalorizar João Cabral — com a intenção de diminuir o mineiro. João Cabral aceitou o namoro mas não quis o casamento sugerido pelos concretistas.
Manuel Bandeira bebeu nas águas dos Campos mas retomou o seu lirismo, que, no fundo, é mais moderno do que seu concretismo desajeitado. Drummond, sempre matreiro, talvez tenha percebido que o concretismo era mais um movimento cultural — daqueles que questionam valores e querem destruir tudo o que se fez de diferente — que uma poesia, ou um estilo de fazer poesia. Um dos imitadores, Paulo Leminski, escapou aos tentáculos dos irmãos Campos (Haroldo e Augusto), acabando por fazer um romance, “Catatau”, em que mistura Rabelais com Ja­mes Joyce, e uma poesia mais libertária. Régis Bonvicino poderia ter se tornado epígono, mas distanciou-se e tornou-se um poeta que dialoga com a tradição interna e externa com desenvoltura. Nel­son Ascher parece ter escapado à camisa de força do concretismo e estabeleceu-se como poeta de nível, na tradição da poesia patropi de qualidade. A poesia de Arnaldo Antunes ainda parece engessada. Curiosamente, Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari são melhores poetas quanto menos parecidos com os “bardos” do mo­­vimento concretista. Ha­roldo, quando parece mais próximo de Octávio Paz, talvez em “Galá­xias”, mostra-se um poeta poderoso, até discursivo.
A bossa nova é uma espécie de concretismo da música — quase uma ditadura de civis. Antes dela, nada. Depois dela, ninguém. Mário Reis cantava baixo, diferentemente dos cantores de vozeirão, como Francisco Alves e Orlando Silva, e sem dúvida foi modelo (admitido) para João Gilberto. Mas, para João Gilberto se tornar o Machado de Assis da música brasileira, ponto de partida e de chegada, raramente isto é dito de modo enfático. Não resta dúvida que, com “Chega de Sau­dade”, escrita por Tom Jobim e pelo poeta Vinicius de Moraes, e “Bim Bom”, de João Gilberto, a bossa nova é uma revolução musical. Nas artes, porém, as rupturas não são necessariamente excludentes.
Os tradutores escrevem “o guitarrista [João] Gilberto”. Se fosse nos Estados Unidos, tudo bem — pois, lá, guitarrista é o mesmo que violonista. No Brasil, guitarrista toca guitarra e violonista toca violão. João Gilberto é violonista afinado e exigente. Se a bossa nova bebeu no jazz — e no samba local —, o jazz, depois de certo tempo, começou a beber na bossa nova. O guitarrista Charlie Byrd e Stan Getz gravaram o disco “Jazz Samba”, “que gerou”, afirma Rohter, “os sucessos compostos por Jobim ‘Samba de uma nota só” — o qual ganhou um Grammy para Getz — e ‘De­sa­finado’. O passo seguinte para Getz foi ir direto à fonte: ele colaborou com João Gilberto e sua esposa, Astrud, e com Jobim para fazer outro álbum, chamado ‘Getz/Gil­berto’. A primeira canção-solo desse disco, ‘Garota de Ipanema’, de Jobim, fez Getz ganhar mais alguns Grammys e convenceu os dois cantores mais renomados dos Estados Unidos, Frank Sinatra e Ella Fitz­gerald, a gravar os próprios discos de bossa nova”.
Quando a bossa nova dominava as paradas de sucesso norte-americanas e, segundo Rohter, “parecia prestes a se tornar a forma de música ‘pop’ mais popular no mundo inteiro, o rock, via britânicos, tornou-se hegemônico. Ainda assim, a bossa nova permaneceu. A arte de seus principais artistas, como Tom Jobim, João Gilberto e a cantora Nara Leão, permanece viva. Não foi “superada”.
Da bossa nova, Rohter salta para o tropicalismo, citando Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Be­thâ­nia, Gal Costa, Tom Zé e Torquato Neto. “O ecletismo deles, especialmente seu entusiasmo por guitarras elétricas e rock and roll, escandalizou a velha guarda musical. Pelo mesmo motivo, a esquerda radical os via como agentes do imperialismo nor­te-americano, tentando sabotar a integridade da cultura brasileira e enfraquecer o engajamento políticos do jovens.” O disco “Tropicália ou panis et circensis” é apontado como uma obra-prima.
Para Rohter, “os principais atributos de [Milton] Nascimento eram a sua voz, um tenor puro de doer, que ele frequentemente deixava subir para um falsete etéreo, e seu elaborado senso de harmonia, que rapidamente fez dele um favorito dos músicos de jazz”. Milton colaborou com o saxofonista Wayne Shorter, Pat Metheny, Herbie Han­cock, Ron Carter, George Duke, Quincey Jones, do jazz, e Jon An­derson, do Yes, Duran Duran, Peter Gabriel, Paul Simon, Sting, Cat Stevens e James Taylor, “pops”.
Embora pródigo em elogios a Chico Buarque, suas letras são “ágeis e inteligentes, engenhosas e subversivas”, Rohter comete o desatino de dizer que o compositor e cantor é “popular em todos os grupos e classes sociais”. Deve tê-lo confundido com Roberto Carlos.
Jorge Ben, Luiz Melodia e Tim Maia, que fundiram “música soul com pop brasileiro”, foram seguidos por Ed Motta, Luciana Mello e Max de Castro. Rohter destaca os roqueiros Arnaldo Antunes, Titãs e Paralamas do Sucesso e as bandas Los Hermanos, “pop”, Charlie Brown Jr. e Jota Quest, “punk”, “e grupos de inspiração reggae como Skank e Cidade Negra. Entre as cantoras merecem registro Adriana Calcanhoto, Ana Carolina, Cássia Eller, Maria Rita e Vanessa da Matta. Rohter não o diz, mas fica-se com impressão de que, como compõem, Calcanhoto, Carolina, Eller (morreu), Maria Rita e da Matta são melhores cantoras do que Carmen Miranda, Gal Costa, Maria Bethânia, Elis Regina (Maria Rita, um cantora menor, se comparada à mãe, é citada, mas Elis não é mencionada nem de passagem). Rother deixa a impressão de priorizar músicos e de não levar muito em consideração cantores.

No geral, o livro divulga bem a música brasileira em 18 das 40 páginas do capítulo comentado. Ampliado, deveria ser publicado separadamente pela Geração Editorial.

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