Por Fernando de Oliveira - Diário Regional
Zuenir já ganhou os cobiçados prêmios Esso de Reportagem e Vladimir Herzog de Jornalismo | Foto: Divulgação |
Aos 81 anos, o mestre do jornalismo brasileiro Zuenir Ventura, atualmente colunista de O Globo, acaba de lançar seu novo livro, Sagrada Família (Alfaguara), cuja feitura levou dez anos.
No romance, definido pelo publisher da editora Alfaguara, Roberto Feith, como uma espécie de Amarcord (obra-prima de Federico Fellini) literário, Zuenir mescla memória e ficção para repassar histórias da infância e adolescência vividas em meio a uma numerosa família em Nova Friburgo, região serrana do Rio de Janeiro, na década de 40.
“Este livro é uma mistura de memórias: as minhas, as dos outros e as inventadas. Sempre fiz livros sobre o passado, mas a partir da memória dos outros. Esta é a primeira obra em que trabalhei com um material que me dava total liberdade. Não houve nada melhor do que saber que eu poderia inventar à vontade”, diz o escritor, responsável por clássicos como 1968 – O Ano que Não Terminou e Cidade Partida.
Ele acrescenta: “O que eu queria mesmo era contar uma história que representasse a hipocrisia daquela época”.
Mineiro de Além Paraíba, Zuenir Ventura, que ingressou na imprensa em 1956, falou com exclusividade ao Diário Regional, de sua casa, na zona sul do Rio de Janeiro. Abaixo, Zuenir Ventura fala sobre seu novo livro, em que recorda a infância e adolescência na região serrana do Rio de Janeiro. Leia mais
Diário Regional – A memória de sua família serviu de fio condutor para o senhor escrever a história de Sagrada Família. Fale sobre a experiência de reconstruir o passado?
Zuenir Ventura - Mexer com o passado desperta sempre muitas emoções. Foi uma experiência às vezes dolorosa – por causa da lembrança das perdas e dos momentos difíceis – e às vezes prazerosa, pelo que ficou das boas recordações.
DR – Por que o senhor preferiu a narrativa ficcional?
Zuenir - Porque ela me daria, como me deu, mais liberdade narrativa. Em poucas palavras, na ficção, ao contrário do jornalismo, você pode mentir à vontade, ou seja, inventar.
DR – O estilo de narrativa empregado pelo senhor no livro já suscitou comparações a Nelson Rodrigues, Marcel Proust e ao Fellini de Amarcord. Qual sua opinião?
Zuenir - Isso me deixa muito lisonjeado, porque são autores geniais com os quais nem sonho me comparar. O que desperta essas comparações talvez seja o fato de que a matéria prima deles, como a minha, é a memória voluntária ou involuntária. Mas o meu livro é muito pessoal, muito particular, ou seja, minha experiência é única.
DR – O senhor já disse que escreveu o livro para “contar uma história que representasse a hipocrisia” dos anos 40, período em que viveu sua infância. O que mudou de lá para cá no que se refere à família?
Zuenir - Os anos 40, que é quando se passa a história do livro, são uma época de muito recato e pudor, mas também de muita dissimulação e hipocrisia. Não é um período muito estudado e, no entanto, é um marco divisor em termos de comportamento. O modelo de formação familiar era o patriarcal e o casamento tido como união eterna. Os papéis eram bem definidos: o pai era o provedor único e a mãe a dona de casa, que só eventualmente contribuía para o sustento do lar, costurando ou cozinhando para fora.
DR – E…
Zuenir - Já a família contemporânea ou pós-moderna é caracterizada pelo declínio da autoridade paterna e pela crescente autonomia feminina do ponto de vista econômico – ela em geral tem uma profissão e dupla jornada – e do ponto de vista emocional. Hoje, ao modelo materno tradicional, juntam-se a mãe solteira, a mãe adolescente, a mãe lésbica, a mãe de aluguel, a mulher que não quer ser mãe, enfim, uma diversidade de experiências
DR – O senhor foi pintor de paredes, bancário e trabalhou num bar e num laboratório de prótese. Como se tornou jornalista e escritor?
Zuenir - Por acaso. Como quase tudo que aconteceu em minha vida. As ocasiões é que me fizeram. Nunca havia pensado em ser jornalista ou escritor e hoje não consigo me imaginar fazendo outra coisa.
DR – Como foi o início de sua trajetória na imprensa?
Zuenir - Comecei no arquivo de um jornal, recortando notícias e organizando pastas para atender aos pedidos dos repórteres e redatores. Um dia, o diretor queria alguém para fazer o obituário do escritor francês Albert Camus. Me ofereci e, a partir de então, fui para a redação de onde, digamos, nunca mais saí.
DR – Quem foram seus mestres?
Zuenir - Tive, entre outros mestres como Manuel Bandeira, Cleonice Berardinelli, Celso Cunha, Hélcio Martins – todos estes na Faculdade de Filosofia. No jornalismo, contei no início com o impulso de colegas como Luiz Garcia, Lúcio Nunes, Luiz Lobo e o próprio Hélcio Martins, que me levou para trabalhar com ele no Arquivo do jornal Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda.
DR – O que representou em sua carreira a premiada série de reportagens sobre o assassinato de Chico Mendes, que está reunida no livro Chico Mendes: Crime e Castigo (Cia. das Letras)?
Zuenir - Conhecer o Acre, contribuir para divulgar a bela história de quem foi um mártir da causa ambiental, como Chico Mendes, foi um dos momentos mais importantes de minha carreira, não só do ponto de vista profissional como existencial.
DR – O senhor vê a internet como uma ameaça ao jornal impresso e ao livro?
Zuenir - Não participo dessa visão apocalíptica de que a internet vai acabar com o jornal e com o livro. Acho que vai haver, já está havendo, convergência, não antagonismo e muito menos guerra. Mas sempre que surge uma tecnologia nova, a anterior tem que se reciclar, se aperfeiçoar. O jornalismo de pós-internet não pode ser o mesmo de quando comecei nos anos 50.
DR – Aos 81 anos, o que o senhor pensa sobre a vida e o que ainda quer dela?
Zuenir - Aos 81 anos, acho que a vida já me deu mais do que merecia: uma mulher e dois filhos maravilhosos, uma neta, que é um tesouro, amigos queridos, leitores generosos. O que eu quero mais? Ah, sim, ver Alice crescer, se não for pedir demais à vida.
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