O centenário de Nelson Rodrigues

CULTURA
Por Euler de França Belém
Fonte: Revista Bula
O Brasil comemora o centenário de nascimento de Nelson Rodrigues. Num tempo de onda moralista, o jornalista e dramaturgo surpreende pela genialidade de suas peças e crônicas

Nos tempos de uma poderosa tsunami moralista, na crença de que uma sociedade dos puros é possível e que já existe fora do Brasil, Nelson Rodrigues é essencial. Por isso vale a pena conhecer sua obra e, mesmo, sua vida — menos insípida do que se imagina. É do balaco-escracho a biografia “O Anjo Pornográfico — A Vida de Nelson Rodrigues” (Companhia das Letras, 457 páginas), do jornalista e escritor Ruy Castro. Se outros biógrafos são “frios” e pudicos, como o brasilianista John F. W. Dulles, ao narrar a história do político, jornalista e escritor Carlos Lacerda, Ruy Castro é expansivo e nada ortodoxo ao contar a vida do maior dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, morto aos 68 anos, em 1990, de trombose e insuficiência cardíaca, respiratória e circulatória. Além da biografia, o estudioso organizou parte da obra do cronista e romancista para a Companhia das Letras. Ao ser lançada, em 1992, foi saudada por Otto Lara Resende, Paulo Francis e Carlos Heitor Cony como uma obra-prima. Sempre exagerado (como ignorar a biografia de Lima Barreto, por Francisco de Assis Barbosa, e a de Assis Chateaubriand, por Fernando Morais?) mas parcialmente verdadeiro , Francis escreveu: “A biografia moderna, sem eufemismos, nasce no Brasil com este livro”. Otto, grande amigo de Nelson, notou escorregões, mínimos, e disse que é uma biografia exemplar. Leia mais
Sobre “O Anjo Pornográfico” é preciso dizer: poucas vezes se viu um livro tão bem-escrito, em linguagem de gente, e pesquisado no Brasil. Ruy Castro é de uma clareza exemplar e, sem perder a profundidade, escreve com uma leveza extraordinária. Duvido que uma pessoa, mesmo indiferente a Nelson e à sua obra, consiga parar de ler a biografia. O Nelson “de” Ruy Castro é mais fantástico e brilhante que o Nelson descrito até agora pelos críticos literários ou teatrais. A exceção fica por conta do mais notável crítico do teatro brasileiro, Sábato Magaldi, que, aliás, assina as orelhas do livro. Ruy Castro, por sinal, firma Nelson como escritor — não “apenas” como jornalista e dramaturgo.

“Não procurou Ruy Castro parafrasear a inconfundível literatura de Nelson Rodrigues. Mas a sucessão de capítulos sugere que o espírito do dramaturgo e ficcionista baixou sobre o biógrafo, e ‘O Anjo Pornográfico’ se torna uma autêntica autobiografia. Volume que se devora com sofreguidão de um romance de aventuras”, escreve Sábato Magaldi, indicando que entendeu muito bem a “filosofia” do livro. Ruy Castro escreveu um cartapácio que em nenhum momento consegue ser chato.

Para entender Nelson, Ruy Castro começa a biografia com Mário Rodrigues, o pai do dramaturgo, escritor, cronista, jornalista (e mais algumas coisas, como analista de futebol). Mas, antes, esclarece: “Se a narrativa de ‘O Anjo Pornográfico’ lembra às vezes um romance é porque não há outra maneira de contar a história de Nelson Rodrigues e de sua família. Ela é a mais trágica e rocambolesca do que qualquer uma de suas histórias, e tão fascinante quanto. É quase inacreditável que o que se vai ler aconteceu de verdade no espaço de uma única vida”. Ruy Castro diz algo que certamente choca quem aprecia o teatro de Nelson: “... o teatro nem sempre foi o palco principal de Nelson Rodrigues. Talvez nunca tenha sido. Esse, se houve um, foi o jornal”. É uma afirmação, com leve dúvida, radicalíssima. Nelson passou mais de 40 anos dentro das redações, quase sempre como estrela. Mas pobre.

O pai de Nelson, o fascinante Mário Rodrigues, aprendeu a ler garotinho de colo. Aos 5 anos, fundou um jornalzinho. A parentada não ficou surpresa. Nem ele. A escola era um atraso de vida, e Mário, um rebelde, caiu fora. Fez biscates. Pastoreou cabra. Mas logo caiu numa redação, a do “Jornal de Recife”, como revisor. Um ano depois virava redator. Fez sucesso rápido. E não era uma pessoa fácil. “Sua capacidade de fazer amigos era tão grande quanto a de atrair inimigos. Aos amigos, tudo: era capaz de fechar bares apinhados e pagar para uma multidão”.

Em 1903, com 18 anos apaixonou-se por Maria Esther, de 15 anos. Mas não era ligado a religião e a família da adolescente não queira papo. Esperto, Mário decorou a Bíblia e, mesmo gago, pregou furiosamente na Igreja Batista. No ano seguinte, conquistada a família da namorada, casou-se com Maria Esther e, claro, abandonou a Igreja. Irrequieto, formou-se em Direito, em 1909, e continuou causando furor com seu jornalismo sensacionalista. Casadíssimo, era obcecado por sexo e comida. Aprendeu francês sozinho e lia muito. Maria Esther pôs na cabeça que teria 12 filhos. Teve 14.

Nelson Falcão Rodrigues nasceu em 1912, em Recife. O centenário de seu nascimento será comemorado em agosto. Era louríssimo e assim ficou até quase os dez anos. O nome foi uma homenagem ao almirante inglês Lord Nelson, vencedor da batalha de Trafalgar, em 1805. Misturado com política e jornalismo, duas atividades irmãs no Brasil, Mário acabou sendo acusado de ter recebido propinas ao trabalhar para o governo de Pernambuco. Irritado, mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1915, sem a família. Depois, levou a mulher e rebentos, famélicos, para o Rio. “Café com macaxeira, sem leite, era o almoço e o jantar da família. O próprio Nelson se queixaria no futuro de que todos os seus aniversários daquele tempo foram comemorados sem uma mísera cocada ou mãe-benta”, conta Ruy Castro.

Para os que acham que Nelson era tarado, Ruy Castro revela um episódio curioso. “Nelson fez 4 anos dias depois da chegada da família à Rua Alegre. Ainda usava camisinha de pagão acima do umbigo, sem calças e sem consciência da própria nudez, quando uma vizinha, dona Caridade, irrompeu pela porta e esbravejou para sua mãe: ‘Todos os seus filhos podem frequentar minha casa, dona Esther. Menos o Nelson!’ Todos ficaram surpresos, então dona Caridade contou que ‘vira Nelson aos beijos com sua filha Ofélia, de 3 anos, com ele sobre ela, numa atitude assim, assim. É claro que Nelson só havia tentado, esclareceu dona Caridade. Mas aquilo era suficiente para qualifica-lo, aos 4 anos completos, como um tarado de marca maior”. Ruy Castro ressalva que Nelson era um garoto que não gostava de dizer palavrões. E vivia com vergonha de sua cabeça, que era muito grande.

Puxando o pai, aos 7 anos, Nelson era um leitor voraz. “Como todo mundo então, ele começou com ‘Tico-Tico’, a primeira revista infantil brasileira, fundada em 1905”. Amou “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski, que leu, em folhetim, aos 13 anos, e sobre o qual escreveu com vívido interesse nas crônicas. Quis ser coroinha. Desistiu. E gostava de jogar bola, era meia-direita. Fumava como Freud. Lia Machado de Assis e Eça de Queiroz.

Em 29 de dezembro de 1929, querendo ganhar um dinheirinho, começou a trabalhar no jornal “A Manhã”, de seu pai. Com 13 anos, ainda usando calças curtas, mas foi obrigado a usar calças compridas, virou repórter policial, ganhando 30 mil réis por mês.

“Aos olhos de hoje parece esquisito que um jovem repórter, podendo escolher à vontade, como Nelson, pedisse para começar pe­la seção de polícia. Mas em 1925, nada mais natural. Exceto pelos redatores políticos e pelo editor da página literária, os re­pórteres políticos e pelo editor da página li­terária, os repórteres policiais, mesmo mal pagos, eram as estrelas da redação. [O com­positor] Orestes Barbosa, que ainda não pisava nos astros distraído, era um. Ne­lson não estava exagerando ao dizer, muitos anos depois, que ‘com um ano de me­tier o repórter de polícia adquiria uma ex­periência de Balzac’”. Esqueceu de acres­centar que, às vezes, pelo contrário, o re­pórter se torna quase um policial, perdendo, não raro, a humanidade.

Como repórter de polícia, Nelson mentia demais. Mais tarde, lamentaria: “Hoje o repórter mente pouco, mente cada vez menos”. Como repórter, Nelson surpreendeu a todos “por sua facilidade para emprestar carga dramática aos toscos relatórios que os repórteres traziam da rua. A especialidade de Nelson eram os pactos de morte entre jovens namorados”.

Aos 14 anos, Nelson fez amor — não é bem o termo — pela primeira vez. Gostou tanto que não parou de frequentar os bordéis. Como o salário era baixo, a saída foi assaltar os bolsos do pai. Enquanto Nelson faturava as prostitutas e tentava levá-las para o “bom” caminho, Mário era processado (12 vezes), mas não ficava amedrontado. O jornal “A Manhã” batia duro nos políticos e Mário escrevia: “Se não gostarem, processem-me”. Cansaram de processar. Os processos davam em nada. Sempre.

(Uma revelação de Ruy Castro: na década de 1920, intelectuais, escritores e jornalistas cheiravam muita cocaína. O poeta Manuel Bandeira e Mário de Andrade gostavam de umas cafungadas. Andrade não é citado por Castro, mas o escritor dizia que apreciava cocaína e outras drogas.)

O Mário Rodrigues que Ruy Castro nos revela era um sujeito engraçado. Escancarou as páginas de seus jornais para o proto-feminismo, para colaboradores como a jovem (psiquiatra) Nise da Silveira e apoiou a causa do voto feminino, do direito da mulher no trabalho, a andar na rua e a se vestir como quisesse. Mas, como quase todo liberal, Mário era liberal na rua, em casa, pelo contrário, Maria Esther penava com seu ciúme exagerado. Parto, por exemplo, só com parteira. Homem, mesmo médico, não podia encostar a mão em sua mulher.

Jogador de terno

Num certo período, o “Estadão” brigou feio com a “Folha de S. Paulo”, como se fossem pigmeus do jornalismo, porque a segunda publicava anúncios gratuitos de empregos. Mário fazia isso na década de 20. Torpedeado pelos jornais rivais, alegava, como o jornal da família Frias, que estava prestando serviço. Como se vê, a “Folha” não é tão original como tenta nos persuadir.

Não diferente de outros donos de jornais, de ontem e de hoje, Mário adorava receber dinheiro público para fazer jornalismo. Mas, como notou o quase sempre legível Carlos Heitor Cony, na época tratava-se, pura e simplesmente, de uma questão de sobrevivência. O mercado não dava conta de sustentar os jornais. Como até hoje não mantém nas regiões da periferia do capitalismo, de mercado privado frágil, como Goiás, Mato Grosso, Tocantins, Bahia.

Os homens públicos que não eram ligados a Mário levavam estocadas violentíssimas. Mário chamava Batista Luzardo de o “poldro relinchante”, Epitácio Pessoa de “Mussolini de fancaria”, Antônio Carlos de Andrada era o “cínico alvar”. Críticas até “leves”. Mário, como crítico, era heavy metal. Peso pesado. Foi um pré-Lacerda. Tinha de andar armado. Mas o revólver não tinha balas.

Em 1928, Nelson foi promovido para as páginas de editoriais. Escrevia artigos assinados, uma vez por semana. A escola ele largou em 1927, aos 15 anos. Achava a escola medíocre. Como Millôr Fernandes, falecido recentemente, aprendeu tudo sozinho, como autodidata. Aos 14 anos, criou seu próprio jornal, o tabloide “Alma Infantil”, com quatro páginas. Nelson “escrevia-o quase todo, paginava-o e mandava compor e imprimir nas máquinas de ‘A Manhã’”. A exemplo do pai, atacava seus “inimigos” com uma fúria terrível, demolidora. Nem padres escapavam do juveniilismo de Nelson.

Desorganizado, o intuitivo Mário perdeu ‘A Manhã” para o sócio. Mas não perdeu a criatividade e fundou “Crítica”. Seu lema: “Declaramos guerra de morte aos ladrões do povo”. Cada manchete, dizia Nelson, era “um berro gráfico, um uivo impresso”. O ousado projeto gráfico era do paraguaio Andrés Guevara. Enrique Figueiroa, mexicano beberrão mas talentoso, era um dos ilustradores. O jornal teve a ousadia de publicar uma fotografia do conde Francisco Matarazzo com a palavra ladrão na testa.

Tragédia do irmão assassinado

Mário Filho, irmão de Nelson, era o diretor de esportes de “Crítica”. “Numa época em que os jornais dedicavam uma ou duas míseras colunas ao futebol e que tinham o maior dengo pelas regatas, Mário Filho resolveu investir nele. Guevara deu-lhe infraestrutura gráfica. Acabou com as fotos dos jogadores de terno e gravata, como se estivessem posando para o lambe-lambe. Passou a mostrá-los em ação, numa cena da partida, com as camisas e casquetes de seus clubes.

A vida não era coisa de PC Farias pré-queda de Fernando Collor ou de Carlos Cachoeira pré-prisão para Nelson e família. Mas o edifício familiar começou a ruir por causa de uma reportagem sensacionalista pu­blicada por “Crítica” em 1929. A reportagem registrava a separação de Sylvia Seraphim do doutor João Thibau. “Crítica” apontou como causa da separação o adultério de Sylvia, uma poeta que o tempo tragou. Sylvia tentou vetar a matéria. Não conseguiu. Leu o texto publicado e, desesperada, correu à redação de “Crítica” para matar Mário. Só encontrou o belo Roberto, o irmão de Nelson que descobriu Portinari. Matou-o. Com um tiro no abdômen.

Roberto era o irmão mais amado pela família e sua morte foi como um terremoto. 67 dias depois da morte de Roberto (um dos principais ilustradores de “Crítica”), morre Mário, em 1930, com 44 anos, de trombose cerebral. Na verdade, a causa da morte de Mário foi a morte de Roberto. Sylvia se matou um pouco mais tarde.

Com a Revolução de 1930, a que pôs Getúlio Vargas no “trono” presidencial, “Crítica” teve sua redação e oficinas invadidas e empasteladas. A família, Maria Esther com 12 filhos, começou a passar fome. Ninguém queria empregar os filhos de Mário Rodrigues.

Relata Ruy Castro: “Pão com manteiga tornou-se refeição principal e eles tinham latões de manteiga. Esgotado o último latão, apelaram para os de azeite espanhol, para passar no pão. E, esgotado o azeite, passaram banha de porco no pão, até que ela também acabou. Estabeleceram um rodízio: dia sim, dia não, todos tomavam uma xícara de café com leite, que era a única refeição; nos dias alternados, apenas as duas menores, Elsinha e Dulcinha, tomavam café com leite — as duas irmãs maiores passavam o dia deitadas, para a fome não aumentar”. O que fazer?

Os Rodrigues, agora chefiados por Mário Filho, saíram à caça de emprego nos jornais. Todo mundo torceu o nariz. Irineu Marinho fundou “O Globo” em 1925, porém, 21 dias depois de fazer o jornal circular, morreu de infarto na banheira. Roberto Marinho, com 21 anos, arrombou a porta do banheiro, mas o pai já estava morto. Herdou o jornal, mas deixou no comando Euricles de Matos. Roberto Marinho então preferia dirigir carros-esporte, lutar boxe, remar e jogar sinuca. Euricles negou emprego aos Rodrigues.

Em 1931, para a felicidade dos famintos Rodrigues, Euricles morreu e Roberto Marinho assumiu a direção de “O Globo”. Contratou logo Mário Filho, seu parceiro de sinuca. Mário assumiu a página de esportes e, népota esclarecido, levou Nelson e Joffre com ele. Mas Roberto Marinho só concordou em pagar salário a Mário.

Nelson trabalhava também em “O Tempo”. Era tão pobre que só tinha um terno, todo puído. “Nelson andava de sapatos sem meias, porque não tinha meias, e usava a mesma camisa três ou quatro dias. Certa noite Roberto Marinho chamou Mário Filho à varanda de ‘O Globo’ e disse-lhe: ‘Seu irmão trabalha com a barba por fazer. E ontem estava cheirando mal’. Era o terno que estava fedendo.” O cabelo dele era cortado por Stella, sua irmã, e era cheio de caminhos de ratos.
Mesmo em “O Globo”, Mário Filho partiu para outra aventura: criou “Mundo Esportivo” e, entre outras coisas, inventou o concurso de escolas de samba.

Roberto Marinho

Em 1932 finalmente Nelson foi contratado por “O Globo”. Ganhava 500 mil réis e dava todo o dinheiro para a mãe, que lhe passava uns trocados para o cigarro. Em­bora pegasse carona com o doutor Roberto, que ele só chamava de Roberto, Nelson gostava de chamá-lo, por trás, de “analfabeto”. Outro emprego de Nelson, nessa época, foi o de redator de textos para anúncios de filmes em jornais.

Em 1934, depois de passar fome, com o organismo debilitado, Nelson estava tuberculoso. “Não existia ainda a estreptomicina. Era uma doença tão fatal que, ao saber que estavam tuberculosos, muitos já se matavam de uma vez com formicida. Os três anos de pobreza e má alimentação, que haviam tornado Nelson vulnerável ao bacilo, finalmente vinham cobrar-lhe a conta. Não tinha dinheiro para as radiografias. Doutor [Isaac] Brown conseguiu-lhe radiografias gratuitas e estas deram positivo: tubérculos no pulmão direito, ainda em estágio inicial. Pena que não tivessem descoberto isso de saída”, escreve Ruy Castro.

Doente, com o moral no chão, Nelson foi para Campos do Jordão. Roberto Marinho, num gesto de decência, continuou pagando o salário do jornalista à sua família. Nos pesadelos de febre, Nelson imaginava o dono de “O Globo” suspendendo o seu salário. Acordava banhado em suor. Imaginava-se matando Roberto Marinho. Mas o “doutor” Roberto pagou regiamente o salário do profissional.

Mais tarde, Joffre, irmão de Nelson, também tuberculoso, foi internado. Um de seus patrões, Geraldo Rocha, cortou-lhe o salário. Roberto Marinho continuou pagando. Joffre não resistiu e morreu aos 21 anos. Nelson voltou a ficar doente. “Ficara quase 15 dias sem comer, deprimido pela morte de Joffre. Seu sentimento de culpa o torturava e ninguém lhe tirava da cabeça a certeza de que fora o transmissor. A doença encontrou ali o nicho perfeito para instalar-se de novo. E, assim, em fevereiro de 1937, Nelson voltou para o Sanatorinho”, escreve Ruy Castro.

Cansado de escrever sobre esportes, o persuasivo Nelson convenceu Roberto Marinho de que era um excelente crítico de ópera e ganhou o “cargo”. Em 1937, ao chegar à redação de “O Globo”, Nelson sentiu o cheiro de mulher nova no pedaço. Era Elza Bretanha, de 19 anos. Nelson disse: “Está no papo”. Elza, percebendo as intenções do assanhado Nelson, gritou logo: “Comigo, só casando!” Nelson ficou “doido”.

Roberto Marinho irritou-se: “Escute aqui, você, por acaso, fez curso de Ana Néri? Está sabendo que vai se casar com um rapaz muito inteligente e de grande talento, mas pobre, absolutamente preguiçoso e doente? Sua mãe está coberta de razão”.

Nelson, de fato, era preguiçoso. Roberto Marinho apontava o relógio e dizia: “Eu não admito! Isto aqui tem horário!” Nelson devia chegar à redação às 9h, mas só chegava depois das 11h. Indignado, Nelson pedia demissão. Roberto Marinho reconsiderava, e Nelson voltava. Outras vezes, Roberto Marinho não ligava, e Nelson acabava voltando. Nelson, segundo Ruy Castro, escrevia muito rápido, era o mais rápido da redação.

Ciumento como o pai, Nelson escreveu um bilhete duro a Elza: “Ontem eu vi você com o Amauri. E quero perguntar a você uma coisa: você compreende agora por que o ‘Alemão’ não quis nada com você? E por que nenhum homem que se preze quererá nada com você? E por que vou chamá-la, com pura e seca justiça, de menina sem dignidade, sem pudor, sem nada que justifique um simples e banal cumprimento meu? Você compreende isso? Se compreende, meus parabéns. Agora um apelo: afaste-se do meu caminho e chore por sua lamentável alma”. Coisa de homem apaixonado e recalcado. Em 1940, Nelson e Elza se casaram, escondidos da família dela. A mãe de Elza ficou sabendo e não queria aceitar o casamento religioso. Só foi convencida pela argumentação convincente de uma tia de Elza: “Esse homem é digno, Concetta. Eles já estão casados há mais de uma semana e Elza continua virgem”. Casado, o machista Nelson tirou Elza do emprego, colocou telefone em casa e ligava quase de hora em hora e dizia: “Meu anjo, esteja sempre de banho tomado, vestida e cheirosa, à minha espera”. Dava todo o salário a Elza, antes passava algum para a mãe.

Teatro foi a isca do dramaturgo para ganhar dinheiro

Com o bolso duro, e a mulher Elza Bretanha grávida, Nelson Rodrigues “estava passando pela porta do Teatro Rival, na Cinelândia, onde uma fila se atropelava para ver Jaime Costa em ‘A Família Lero-Lero’, de R. Magalhães Jr. Nelson ouviu alguém comentar. “Essa chanchada está rendendo os tubos!’ Por que não escrever teatro? Não lhe parecia mais difícil do que escrever um romance. Pelo menos, era mais rápido. Com os dedos salivando, Nelson resolveu tentar”, escreve Ruy Castro.

Em 1941, Nelson escreveu sua primeira peça, “A mulher sem pecado”. Ninguém queria encená-la. Jaime Costa e Dulcina rejeitaram a peça. Ruy Castro pergunta: “Por que ele resolveu escrever teatro?” O biógrafo responde: “Pelo dinheiro — mas, se fosse só por isso, teria escrito uma comédia. Nelson gostava de contar que começara ‘A mulher sem pecado’ como uma chanchada, mas que, em poucas páginas, a história daquele marido paralítico e ciumento adquirira uma tintura dramática que ele não previra. Não há por que contestar. A própria leitura do texto demonstra isso — embora, hoje, ‘A mulher sem pecado’ pudesse ser encenada como chanchada, sem nenhum prejuízo. Seja como for, era um tenebroso drama para seu tempo, e Nelson achou melhor cercar-se de opiniões ‘respeitáveis’ antes de sair oferecendo o texto à praça. O primeiro que procurou foi Henrique Pongetti”. Pongetti aprovou a peça. Carlos Drummond de Andrade, então chefe de gabinete do ministro da Educação de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema, disse, lacônico: “Interessante. Muito interessante”. Gostou da frase “a fidelidade devia ser uma virtude facultativa”. Ruy Castro nota que nas peças da época o corno era sempre feliz. “Na de Nelson, o marido ciumento torturava de tal forma sua mulher que ela acabava fugindo com o motorista.”

Em 1941, nasceu o primeiro filho de Nelson, Joffre. Também com parteira. Nelson, ciumento como o pai, não admitia que médicos tocassem em Elza. O jornalista-dramaturgo não podia sequer pegar o menino no colo, para evitar qualquer contágio (tuberculose). Joffre acabou tuberculoso, mas sobreviveu.

Em 1942, “A mulher sem pecado” foi encenada pela Comédia Brasileira, com direção de Rodolfo Meyer, no Teatro Carlos Gomes. Nelson vivia pedindo para os amigos promoverem a peça. “Ih, lá vem o chato do Nelson Rodrigues!”, muitos diziam.

Roberto Marinho adorou a peça e perguntou ao poeta Manuel Bandeira o que ele havia achado. “Esse rapaz, o Nelson, tem um grande talento. A peça é formidável!” Roberto Marinho demitiu o crítico Bandeira Duarte, que havia demolido a peça.

Álvaro Lins escreveu: “Este é um autor que conhece as condições do gênero teatral”. Lins achou a peça um exemplo de teatro que continha “arte literária, imaginação, visão poética dos acontecimentos; técnica de construção; que não era uma cópia servil de cenas burguesas de sala de jantar; e, sim, a interpretação de sentimentos dramáticos ou essenciais da vida humana”.

“Só os imbecis têm medo do ridículo”, dizia Nelson

“A Falecida”, de 1953, era considerada por Nelson como uma tragédia carioca. (Em 1952 iniciou um caso com Yolanda. Esta disse que seus três filhos eram de Nelson. Ele negava. Dizia que era pai do menino, não das meninas.) Em 1954, o público vaia “Senhora dos Afogados”. “Perdoa-me por me traíres”, de 1957, teve o próprio Nelson como um dos atores. Justificou-se: “Só os imbecis têm medo do ridículo. Considero um soturno pobre-diabo o sujeito que não consegue ser ridículo de vez em quando”.

Sobre “Perdoa-me por me traíres”, Nelson escreveu: “Morbidez? Sensa­cio­nalismo? Não. E explico: a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. A partir do momento em que Anna Kariênina, ou [Ema] Bovary, trai, muitas se­nhoras da vida real deixarão de fazê-lo. No ‘Cri­me e Castigo’, Raskolnikov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele ma­tou por todos. E, no teatro, que é mais plás­tico, di­reto, e de um im­pacto tão mais puro, esse fe­nômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a plateia, é pre­ciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de in­sanos, e em su­ma de uma rajada de monstros. São os nossos mo­ns­tros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los”.

Os críticos não gostaram da peça. Paulo Francis criticou e recebeu uma por­­rada de Nelson: “Eu li muito mais do que o Paulo Fran­­cis! Ele pula de um livro para o ou­tro como uma gazela!” Henrique Oscar ganhou uma paulada: “Leonardo da Vin­ci está morto, mas Henrique Os­car viverá para sempre, porque a burrice é eterna”.

Na “Última Ho­ra”, Francisco de As­­sis Barbosa procu­rou animar Nelson: “Não ligue para isso, Nelson. A peça é genial, digna do melhor Skakespeare! Você foi profundo!” Nelson captou a mensagem (exagerada, por certo) e disse: “Você acha mesmo, Chico?” “Acho, perfeitamente!” Nelson leu o trecho datilografado e disse: “Você esqueceu o negócio do Sha­kespeare”. Barbosa acrescentou: “Digno do melhor Shakespeare”. Nelson perguntou: “Você não vai assinar?” “Claro. Quer também que eu reconheça a firma?”, brincou Barbosa. Nelson, seriíssimo: “Qual é o cartório?” Os gênios são assim mesmo... E Nelson, como os bons escritores e dramaturgos, melhora com o tempo.

“Os Sete Gatinhos”, de 1958, deu lucro. E ganhou elogios de Paulo Mendes Campos, crítico e amigo de Nelson: “Acho ‘Os Sete Gatinhos’ a melhor peça de Nelson Rodrigues e um dos trabalhos mais belos, mais fortes e mais impressionantes do teatro mundial contemporâneo”. (Na vida privada, continuava desorganizado. “Se Elza não lhe pusesse as meias em cima da cama ou não lhe abotoasse os suspensórios, sairia descalço ou com as calças caindo pela rua.”)

No romance “Asfalto Selvagem” Nelson pôs amigos e inimigos, a maioria jornalistas, como personagens — seguindo, certamente, o Dante de “A Divina Comédia”. Alguns gostaram. Otto Lara Resende não apreciava muito. E odiava que Nelson ficasse pegando no seu pé para que produzisse mais. Otto, na opinião de Nelson, era um gênio e desperdiçava seu tempo conversando quando podia escrever obras sensacionais. Uma opinião absolutamente correta. Otto é bom escritor, mas sua prosa é aquém de sua verve e talento. Trata-se de um autor superestimado pela patota carioca.

Otto era o autor de grande parte das frases geniais de Nelson, que, não tendo medo do ridículo, assumia a autoria de todas. “O Beijo no Asfalto”, de 1960, com Fernanda Montenegro, ficou sete meses em cartaz. Com sucesso. Fernanda Montenegro e Fernando Torres sugeriram a Nelson pôr palavrões na peça. “Foi quando muitos se deram conta de que, até então, nenhuma peça de Nelson contivera um único palavrão!”, surpreende-se Ruy Castro.

Se dizendo reacionário e até incompreendido pela burguesia, Nelson brigava com a esquerda e arrumava mais um amor, Lúcia, com quem teve uma menina doente, Daniela, cega e surda. Foi cruel e destruiu o relacionamento com Lúcia.

Em 1962, uma peça deixou Otto Lara Resende irritado com Nelson. “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária” tinha inclusive frases “de” Otto — como “o mineiro só é solidário no câncer”.

A partir de 1963, o cinema “descobre” Nelson. “Bonitinha, mas Ordinária”, de 63, foi visto por 2 milhões de espectadores. “A Falecida”, de 1965, foi um fracasso comercial. Antes, em 63, “escreveu para Walter Clark a primeira novela brasileira de todos os tempos: ‘A Morta Sem Espelho’”. A peça “Toda Nudez Será Castigada”, solicitada por Fernanda Montenegro, foi recusada por ela mesma. “Você nos prometeu uma comédia, Nelson, e isso é uma tragédia”, disse Fernanda.
Lacerda pediu um romance a Nelson, este levou “O Casamento”. Lacerda, que havia fundado a Editora Nova Fronteira, ficou escandalizado e passou o livro para a Editora Guanabara, de seu amigo Alfredo Machado (criador da Editora Record). O ministro da Justiça de Castello Branco, Carlos Medeiros Silva, proibiu o romance. (Outra tragédia: em 1967, devido a uma forte chuva, o prédio de Paulinho, irmão de Nelson, caiu e ele e a família morreram soterrados.)

O Nelson Rodrigues reacionário foi bem explicado pelo psicanalista Helio Pellegrino. “Helio entendia que o reacionarismo de Nelson era apenas a unção do indivíduo sobre a coletividade. Helio podia não concordar, mas achava graça na frase de Nelson: ‘A massa só serve para parir os gênios. Depois que os pariu, volta a babar na gravata’”. O que Helio e a esquerda não compreendiam é que Nelson, ao criticar o totalitarismo do socialismo, estava certo. A história — os mais de 100 milhões de mortos do socialismo, a estagnação econômica e a perda da liberdade — deu-lhe razão.
Quando Helio e Zuenir Ventura fo­ram presos pela di­tadura, Nelson con­seguiu a libertação de ambos, che­gando mesmo a mentir para os mi­litares. Várias pes­soas foram be­ne­ficiadas pela generosidade do dramaturgo e, so­bre­tudo, por sua a­mi­zade com al­guns militares de proa. Seu filho Ne­lsinho, de es­querda, foi preso e torturado pela di­tadura. Até en­tão Nelson não acre­ditava em tortura. Achava que era “propaganda” da es­querda. Ele di­s­cordava das ide­ias do garoto, mas o defendeu.

Nel­son morreu pra­­ticamente sem na­­da de seu. Era um homem em per­­manente estado de pai­xão, ou, co­­mo es­creveu Car­los Heitor Co­ny, “um ho­mem em pe­rmanente ve­lório por si mes­mo e pelos outros”. Mas o Brasil só re­conhece seus gênios de­pois que eles mor­rem, sobretudo se esses gênios não fo­rem politicamente corretos, isto é, gente de esquerda. Nelson era conservador, sim, mas como indivíduo provou ser muito me­lhor que muitos es­quer­distas, aos quais faltavam sua generosidade. E, como homem de criação teatral, permanece insuperável. Um dramaturgo e cronista do primeiro time. Suas crônicas chocam, às vezes, e sempre deixam o leitores com um sorriso nos lábios. Algu­mas, de tão boas, poderiam ter sido transformadas em contos ou mesmos romances.

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