Comissão de Enfrentamento à Tortura ‘recebe’ as chaves para abrir as ‘Masmorras de Hartung’

Fonte: séculodiário.com
Por José Rabelo
Nessa quarta-feira (28), ao anunciar a instalação da Comissão de Prevenção e Enfrentamento à Tortura, o presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), desembargador Pedro Valls Feu Rosa, deu um passo importante no sentido iniciar o processo de apuração e reparação dos crimes de torturas que ocorreram no Estado, grande parte deles na “Era Hartung” (2003 – 2010).
Durante a solenidade, nem Pedro Valls nem os membros que tomaram posse sequer mencionaram o nome do ex-governador. Mas não precisava, quem acompanhou as violações no sistema prisional capixaba sabe que as apurações desses crimes vão recair sobre os ombros do ex-governador e seu fiel secretário de Justiça, Ângelo Roncalli, que, apesar dos pesares, continua à frente da pasta. Leia mais
Logo na abertura, o presidente se mostrou chocado ao revelar que nem o Tribunal tem informações sobre os crimes de tortura. “Vamos começar a pagar uma longa dívida de tortura. Há um trabalho a ser feito”, afirmou. Ele reforçou que o trabalho não será fácil, pois, não há informações no banco de dados do Poder Judiciário relativos aos processos em tramitação. “Quero fazer um apelo à população. Quem tiver notícias de processos relativos à tortura, peço que encaminhe ao desembargador Willian Silva [presidente da comissão] para começarmos a busca pelo banco de dados do Tribunal de Justiça”, rogou o presidente. Pedro Valls avisou ainda que já solicitou um levantamento para identificar todos os processos relativos a crimes de tortura. Com as medidas, o presidente do Tribunal entrega à comissão as chaves para abrir as “Masmorras de Hartung”.

As “Masmorras de Hartung”, alcunha criada pelo jornalista Elio Gaspari para retratar as barbáries que se passavam no sistema prisional capixaba durante a “Era Hartung”, ganharam notoriedade mundial ao cruzar o Atlântico e pousar em Genebra, na Suíça, perante a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).

No dia 15 de março de 2010, o então presidente do Conselho de Direitos Humanos do Espírito Santo, Bruno Alves de Souza Toledo – atual chefe de gabinete do TJES -, levava ao conhecimento da comunidade internacional um dossiê impressionante com documentos, fotos e vídeos das graves violações cometidas no sistema prisional capixaba. As imagens, de tão fortes, tiveram o efeito semelhante a um soco na boca do estômago para os mais de 200 representantes de entidades estrangeiras que acompanhavam a apresentação do painel dedicado às violações no Espírito Santo - um dos mais comentados.

As imagens estarrecedoras exibiam internos que tentavam sobreviver em meio a ratos, insetos e fezes, confinados em contêineres sem ventilação, onde a temperatura, no verão, ultrapassava os 50 graus centigrados. Além das condições subumanas impostas aos presos, as imagens registravam corpos de internos esquartejados e depositados em latões de lixo ou espalhados como “troféus” pelas alas dos presídios.

Da denúncia levada à ONU até o final do seu mandato, Hartung fez o possível e o impossível para sepultar o escândalo mais vexatório do seu governo. Só com reformas e construções de novos presídios foram gastos mais de meio bilhão de reais. Tudo para tentar pôr uma pedra bem grande e pesada sobre o infortúnio episódio. A fortuna gasta com as novas unidades, no entanto, ao contrário do que pensava a dupla Hartung-Roncalli, não foi suficiente para reparar os danos cometidos aos internos e seus familiares, que continuam credores de uma dívida impagável.

A comissão implantada por Pedro Valls, porém, tem a chance de trazer à tona todos os crimes de tortura que aconteceram nos porões das “Masmorras de Hartung”. Seria uma oportunidade única para as instituições darem uma resposta aos familiares dos presos que morreram sob a tutela do Estado ou às próprias vítimas que deixaram as cadeias sequeladas, física e emocionalmente, pela brutalidade do sistema.

Alinhamento de forças

Ao anunciar a criação da Comissão em “tempo recorde”, pois está apenas faz duas semanas à frente do Tribunal, Pedro Valls deixa claro que a apuração dos crimes que aconteceram (ou ainda acontecem) no sistema prisional era uma preocupação antiga dele. Quem não se lembra do histórico voto do desembargador, em agosto de 2009, em que denuncia e exige apuração de diversos crimes de tortura cometidos nas prisões do Estado. Diz um trecho do voto: “Há poucos dias recebi um chocante relatório, subscrito pela Associação de Mães e Familiares Vítimas de Violência (Amafavv), cujo teor transcrevo parcialmente, mas que passa a integrar, em sua totalidade, este voto”, disse o desembargador que em seguida começou a ler o documento encaminhado pela Amafavv. “A notícia de vossa valiosa intervenção evitando a chacina de 15 pessoas nos motivou a encaminhar as seguintes denúncias recebidas em nossa Associação, cujos relatos chocam e provam que a crueldade dos crimes de tortura praticados pelas autoridades que compõem o sistema prisional deste Estado supera e muito as torturas das prisões da era medieval”, denuncia o relatório.

Nos trechos seguintes, Pedro Valls lê, indignado, as denúncias, uma a uma, e as comenta. Sobre um dos casos, denunciado por Século Diário, o desembargador afirma: “Vamos ver se eu entendi: alguém é preso, sofre violências até ficar paraplégico, é solto e ‘ponto final’? O pior é que, segundo relato que me foi enviado, está o mesmo a passar fome e carente dos medicamentos mais básicos. Eis aí algo a ser apurado até as últimas consequências e em todos os níveis. Formulo votos de que tudo isto tenha sido apenas um equívoco, por recusar-me a acreditar que a omissão e a covardia tenham chegado a níveis tão altos”, protesta o desembargador.

Parece que esses casos de torturas ficaram remoendo na cabeça do desembargador que estava esperando o momento certo para retomá-las e finalmente fazer a esperada Justiça.

Se o plano era este, o momento não poderia ser mais propício. À frente do Tribunal, e com o apoio de representante do próprio Poder Judiciário, da Assembleia Legislativa, da bancada federal e da sociedade civil organizada, Pedro Valls legitima a iniciativa de pôr a pratos limpos uma passagem nebulosa da história recente do Espírito Santo, marcada por um governador que deu as costas para as entidades de direitos humanos e cutucou com vara curta o brio dos militantes. A resposta dos movimentos de direitos humanos, que foi dada em Genebra, deixou uma mácula sem precedentes no governo de Paulo Hartung, que ficará eternamente conhecido pela alcunha de “carcereiro das masmorras”.

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