A chamada “Oração do Papa João XXIII aos
Maçons”, reproduzida há décadas em revistas, discursos e sites ligados ao tema,
não tem qualquer fundamento documental. Trata-se de um texto apócrifo, sem
registro nos arquivos do Vaticano, sem menção em fontes jornalísticas
confiáveis e sem referência em documentos oficiais da Igreja.
Segundo a versão mais conhecida, o texto teria
sido publicado em 1966 pelo prestigiado Journal de Genève. No entanto, buscas
em acervos do periódico não identificam nenhuma edição contendo a suposta
oração. Além disso, há um obstáculo cronológico incontornável: João XXIII
faleceu em 3 de junho de 1963, três anos antes da alegada publicação. Ou seja,
não existe possibilidade histórica de ligação direta entre o papa e o texto.
Contexto
doutrinário da época
Durante o pontificado de João XXIII
(1958–1963), permanecia vigente a proibição formal da Igreja Católica à
filiação de católicos em organizações maçônicas, conforme o Código de Direito
Canônico de 1917, que determinava excomunhão automática aos membros dessas
sociedades.
Embora João XXIII tenha promovido um ambiente de diálogo que culminou no Concílio Vaticano II, nenhum documento, homilia ou encíclica seu sugere gesto de reconciliação com a maçonaria. A questão era tratada como problema teológico e institucional, relacionado ao compromisso com a fé católica e à rejeição ao “relativismo religioso”.
Por
que o texto é considerado falso
Pesquisadores renomados — entre eles Peter
Hebblethwaite, biógrafo oficial de João XXIII — confirmam que não há qualquer
menção à oração nos diários, cartas ou discursos do pontífice. A linguagem
empregada no texto também não corresponde ao estilo pastoral e teológico do
papa, evidente em obras autênticas como Pacem in Terris (1963).
Nenhuma publicação do Vaticano, sejam boletins,
anuários ou documentos oficiais, reconhece o texto. Termos como “Grande
Arquiteto do Universo” e referências a símbolos maçônicos denunciam uma
construção ideológica alheia à doutrina e ao vocabulário da Igreja.
Como
o texto se espalhou
A análise histórica indica que a “oração”
surgiu no final da década de 1960, sendo difundida por revistas e boletins
maçônicos. Na década de 1970, sua reprodução no Diário do Congresso Nacional
ampliou sua circulação no Brasil. A partir dos anos 2000, com a popularização
da internet, o texto passou a ser replicado sem critério em blogs e redes
sociais, quase sempre sem fontes verificáveis.
Hoje, apesar das inúmeras refutações, a peça
continua sendo utilizada como símbolo retórico de uma suposta aproximação entre
Igreja e Maçonaria — aproximação que jamais ocorreu oficialmente.
A
posição oficial da Igreja Católica
Desde o século XVIII, a Igreja mantém posição
firme contra a maçonaria. Entre os principais documentos:
1738 —
Bula In Eminenti Apostolatus Specula, de Clemente XII, a primeira condenação
formal.
1884 —
Encíclica Humanum Genus, de Leão XIII, reafirmando a incompatibilidade entre fé
cristã e doutrina maçônica.
1983 —
Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, reiterando que a filiação
permanece “em grave contradição com a doutrina da Igreja”.
2023 —
Carta aprovada pelo Papa Francisco reforça novamente a irreconciliabilidade
entre fé católica e maçonaria.
Essas manifestações deixam claro que não houve
mudança doutrinária: católicos não devem integrar lojas maçônicas.
A
Maçonaria como instituição filosófica e civil
A maçonaria contemporânea não é religião, mas
uma instituição filosófica e filantrópica que integra o terceiro setor. Suas
atividades envolvem estudos sobre ética, moral e virtude cívica, além de ações
beneficentes e comunitárias. No Brasil, lojas mantêm hospitais, escolas,
creches e projetos sociais, desempenhando papel relevante no voluntariado.
O respeito à liberdade de consciência é um
princípio fundamental. Por isso, em suas sessões, não se discute religião nem
política partidária. A fé é entendida como aspecto íntimo, e cada membro é
avaliado por sua conduta moral, não pela confissão religiosa.
O conceito do “Grande Arquiteto do Universo”
funciona como símbolo universal do Criador, capaz de unir pessoas de diferentes
tradições espirituais, sem imposição dogmática.
O
papel social histórico da maçonaria no Brasil
Desde o século XIX, a maçonaria brasileira
esteve presente em movimentos abolicionistas, republicanos e educacionais,
reunindo pensadores como José Bonifácio, Gonçalves Ledo e Rui Barbosa. Nos
séculos seguintes, consolidou-se como importante força comunitária, promovendo
educação, saúde e assistência a populações vulneráveis.
Hoje, permanece ativa em campanhas
filantrópicas, programas de alfabetização, doação de sangue e projetos de
capacitação profissional.
A
falsa reconciliação criada pela oração apócrifa
A persistência desse texto falsamente atribuído
a João XXIII produz um mito conciliador entre dois universos distintos: o
institucionalmente religioso e o filosófico. Ao imputar ao papa palavras
inexistentes, cria-se uma narrativa idealizada de aproximação que nunca
existiu.
A maçonaria, por sua vez, nunca buscou
aprovação religiosa. Sua legitimidade fundamenta-se nos valores universais da
liberdade, igualdade, fraternidade e aperfeiçoamento moral — princípios que
independem de chancela teológica.
Por
que mitos assim persistem?
A circulação dessa oração ajuda a compreender
como desinformações religiosas influenciam percepções e distorcem debates entre
fé e razão. Em tempos de internet, textos apócrifos e citações inventadas
ganham alcance rápido, reforçando a importância da verificação documental e da
crítica histórica.
Cabe ao jornalismo e à pesquisa acadêmica
separar fato de ficção, distinguindo documentos genuínos de peças simbólicas
criadas em contextos de disputa ideológica.
Entre
a tradição teológica e o campo da razão
A “oração” atribuída a João XXIII é fruto das
tensões culturais do século XX. Seu sucesso revela o apelo de narrativas
conciliatórias em ambientes de conflito entre religião e filosofia.
A Igreja continua firme em sua posição
teológica, enquanto a Maçonaria segue como instituição laica, humanista e
ética, colaborando com a sociedade e estimulando o desenvolvimento moral de
seus membros.
O
significado das orações apócrifas
Durante as décadas de 1960 e 1970, quando a
relação entre Igreja e Maçonaria era especialmente tensa, proliferaram textos
atribuídos a papas e santos para legitimar agendas de aproximação ou ruptura. A
oração “de João XXIII” é um exemplo típico dessas construções ideológicas.
Esses episódios reforçam a importância da
memória documental e da checagem rigorosa das fontes, sobretudo no ambiente
digital, onde conteúdos falsos são rapidamente difundidos.
Conclusão:
restaurar a verdade histórica
A longa sobrevivência desse texto apócrifo
demonstra o poder simbólico de personagens como João XXIII e a força emocional
de mensagens de conciliação. Mas ela também expõe a fragilidade dos mecanismos
de verificação num mundo de reprodução instantânea.
A tarefa do jornalismo e da pesquisa histórica
é proteger a integridade da memória cultural e espiritual, distinguindo
tradição legítima de mitos fabricados — e garantindo que o debate entre fé,
razão e filosofia seja conduzido com rigor, respeito e lucidez.
Fonte: https://jornalgrandebahia.com.br


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